Laisa Stroher, Ana Akaishi, Guido Ottero, Celso Carvalho, Francisco Comaru, Toni Zagato, Paula Santoro*
Na última sexta-feira, dia 09 de setembro, o Ministério Público ajuizou ação pedindo a suspensão de todos os Projetos de Intervenção Urbana – PIUs na cidade de São Paulo, enquanto não termina a revisão do Plano Diretor Estratégico de 2014. Além deste, muitos são os imbróglios jurídicos em torno deles, como a exigência de elaboração de Estudos de Impacto Ambiental prévio, a aprovação de transformações urbanas sem leituras do quadro de necessidades habitacionais, entre tantas outras. Mas nesta publicação queremos discutir uma premissa equivocada que tem sido o ponto de partida para o desenho destas políticas de transformação urbana. Via de regra elas têm como principal motor da transformação um estímulo à produção imobiliária, sem partir dos desafios e também da riqueza social, cultural, arquitetônica e ambiental existente nos territórios onde incidem.
Não está sendo diferente com o Projeto de Intervenção Urbana – Setor Central (PIU-SCE), instituído pelo Projeto de Lei nº 712/2020, aprovado pela Câmara Municipal no final de agosto, que aguarda sanção do prefeito Ricardo Nunes. Nesse texto vamos discutir como o PIU ampliou privilégios imobiliários, aprofundando questões que apresentamos anteriormente aqui. Nos próximos, vamos debater a falta de uma política para enfrentar o quadro de necessidades habitacionais e o patrimônio histórico.
O Centro tem dinâmica imobiliária, e está crescendo em população
Desde que deixou de ser o espaço de moradia da elite paulistana nos anos 1980, o Centro de São Paulo se popularizou, abrigando pessoas de menor renda, imigrantes de várias nacionalidades, acolhendo espaços de moradia, trabalho e sociabilidade para estas populações, inclusive para grupos LGBTQIA+ e populações não brancas. Há pelo menos uma década, no entanto, já se observa um retorno de uma classe média branca ao Centro, acompanhado de um aumento da densidade populacional e da dinâmica imobiliária nas suas bordas. O PIU é mais um projeto que visa transformação via produção imobiliária, que entrega bens públicos para estimular a continuidade da produção de edifícios verticais para classe média e alta, relegando e ameaçando grupos sociais que hoje moram e trabalham no Centro, além do patrimônio cultural e ambiental que trazem vida e identidade ao território.
Já era uma zona de privilégio para o complexo imobiliário-financeiro viabilizada pela Operação Urbana Centro
Para as construtoras realizarem prédios cuja área construída seja maior que o tamanho do seu terreno, o Plano Diretor Estratégico de 2014 definiu que é necessário pagar uma contrapartida – a outorga onerosa do direito de construir – que deveria ser usada para melhorar as condições dos bairros, e ao mesmo tempo atender às novas demandas com a chegada de novos moradores. O Centro ficou fora dessa regra, pois era regido por outra lei, a da Operação Urbana Centro de 1997, que previa regras especiais como a gratuidade dessa contrapartida para os empreendimentos residenciais. A isenção, quando concebida, tinha sentido: atrair moradores e o mercado imobiliário para um Centro que estava esvaziado. Mas isso mudou. Já existe dinâmica imobiliária que está valorizando a região, e o poder público continua dando estímulos ao mercado, o que vinha sendo criticado pela Comissão Executiva da Operação Urbana.
O PIU Setor Central dá descontos abusivos e gratuidades dos direitos construtivos, ampliando a zona de privilégio
O PIU do Setor Cental, que substituiu a lei de 1997, optou por dar continuidade à isenção dessa contrapartida nos bairros da Sé e República, e ainda a estendeu aos prédios não residenciais (como edifícios comerciais e de serviços), além de estabelecer descontos abusivos para os demais bairros, como Santa Cecília, Bom Retiro, Brás, Pari e Belém. Uma zona de privilégios ainda maior dados ao complexo imobiliário-financeiro, um dos setores da economia que mais cresceu e se beneficiou em meio a pandemia, construindo muitos edifícios inclusive no Centro.
O preço da outorga paga pelos empreendedores imobiliários em toda a cidade é diretamente proporcional ao preço da terra. Quanto mais cara a terra, maior é essa contrapartida. Mas no PIU Setor Central a lógica é invertida: quanto mais elitizadas as áreas, mais caros os terrenos e menor a contrapartida, o que é igual a mais privilégios ao mercado!
As gratuidades na Sé e República foram concedidas durante 5 anos, após esse prazo inicia-se a cobrança, mas com descontos escandalosos! É similar nos demais bairros do Centro, onde os descontos, mesmo que regressivos, mantêm-se elevados durante toda a validade do PIU, como demonstram os mapas na sequência.
Se onde a terra é mais cara e há maior interesse do setor imobiliário construir, não há cobrança de outorga. A cobrança ocorre apenas onde a capacidade de arrecadação é menor. Isso significa que não haverá recurso para fazer as obras das quais a região precisa. Sem obras públicas para transformar o Centro, a única transformação que esse PIU pode estimular é a imobiliária. E, diga-se de passagem, o Centro está bombando de novos lançamentos imobiliários, que crescem a olhos vistos! Não seria necessário a aprovação de um novo projeto de intervenção para isso.
*Laisa Stroher é professora da FAU UFRJ e pesquisadora do LabCidade na FAUUSP; Ana Akaishi é pós-doutoranda na FAUUSP; Guido Ottero é mestre pela fau usp, representa o IABsp na comissão executiva da operação urbana centro; Celso Carvalho é engenheiro civil, membro da coordenação do BrCidades; Francisco Comaru é professor da UFABC; Toni Zagato é Arquitete e Urbanista na Secretaria de Cultura do Estado e Conselheire Municipal de Política Urbana; Paula Santoro é professora na FAU USP e coordenadora do LabCidade.
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