*Ana Castro

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Foto: Instituto Moreira Salles. Arte: Danilo Ferreira

São Paulo parece estar passando por uma transformação importante. A recente inauguração da ciclovia da Paulista– parte de um programa maior de criação de uma rede cicloviária na cidade, integrado ao (falho) sistema de transporte coletivo – foi um evento e tanto[1]. O dia ensolarado, a multidão de jovens e velhos, crianças e cachorros, bicicletas e patins, mesas de ping-pong e toalhas de pic-nic, tudo remetia à imagem idílica de uma cidade “civilizada” que privilegia o uso coletivo dos seus espaços públicos. A Paulista, nesse dia, transformou-se numa grande praça, num grande parque de 3 km de extensão. Mais que evento de inauguração, tratava-se testar a possibilidade de se fechar a avenida para os carros durante os domingos, como já fizera a gestão Marta Suplicy anos atrás, sob as vaias de parte da classe média, que “precisava” passar por lá nos domingos. Testar portanto a possibilidade da cidade retomar seus espaços públicos[2]. Agora talvez a chamada opinião pública esteja mais convencida. Justamente por essa mudança de percepção, de que algo precisa ser feito, de que é preciso retomar a vida na cidade, antes que ela nos engula a todos. E no centro dessa discussão, a pauta dos transportes se sobressai. A questão da mobilidade nos aproxima então da questão da civilidade, da convivência, do uso coletivo dos espaços, do direito à cidade. Afinal, o que é o espaço público de uma cidade? Suas praças, seus parques; mas também suas ruas, suas calçadas, seus becos. E em São Paulo tudo isso é muito pouco público, no sentido forte do termo.

Se recorrermos à história para pensar como construímos a nossa cidade, vemos que é somente no fim do século 19, com as primeiras obras de embelezamento, que a ideia dos parques aparece de maneira mais vigorosa nas ações do poder público[3]. A construção do viaduto do Chá, idealizado em 1877 pelo francês Jules Martin e inaugurado em 1892, permitiu a expansão da cidade para além da colina histórica, em direção às terras mais altas e salubres que a alagadiça várzea do Carmo à leste; e com isso o vale do Anhangabaú, de fundos da cidade, se transformou em seu espaço central. Ocupado até então pelos quintais das casas das ruas Nova de São José (atual Líbero Badaró) e Formosa, tornava-se evidente a necessidade de reformá-lo. Entre todos os interesses envolvidos, surgem várias e variadas propostas, numa disputa acirrada entre poderes público e privado sobre qual seria o melhor destino para aquele lugar. A disputa se materializou num Parque do Anhangabaú inaugurado em 1917, emoldurado pelo Teatro Municipal em uma das vertentes e pelos Palacetes Prates do outro. A querela fora finalmente resolvida com um projeto conciliador do arquiteto francês Joseph-Antoine Bouvard, chamado pela prefeitura para dar a palavra do especialista, dosando os interesses públicos sem desagradar o proprietário das terras, o próprio Conde Prates[4]. Bouvard, entretanto, propôs para a cidade outra área pública do outro lado da colina histórica, o futuro Parque Dom Pedro II, sobre a extensa várzea do Carmo, a partir da canalização do rio Tamanduateí. Esse grande parque teria a função de ligar o centro da cidade à sua porção operária, que a essa altura também se estendia cada vez mais para leste, a partir do eixo ferroviário. Ou, talvez, de separar a cidade do trabalho da cidade cartão-postal, que avançava para oeste[5].

A velocidade das transformações e a força dessa expansão, entretanto, não perdoaram nem mesmo o recém criado Parque do Anhangabaú. Se o arranjo inicial rapidamente se desfez com a construção do Edifício Sampaio Moreira em 1924, que rompeu o conjunto eclético conseguido a duras penas naquele vale, é o projeto do Perímetro de Irradiação de Prestes Maia e Ulhôa Cintra– lançado nesse mesmo ano e incorporado pelo Plano de Avenidas em 1930– que anuncia a vocação metropolitana daquele espaço e define as estruturas de crescimento da cidade de maneira definitiva. Prestes Maia transforma a avenida pitoresca construída por Bouvard no centro do Parque em um eixo monumental de entrada na cidade. Com isso, o Anhangabaú passaria a ser cortado pelo famoso sistema Y, a única via de penetração no centro prevista no Plano[6]. Vinda da direção norte, a avenida Tiradentes (Radial Norte) seguiria o caminho do Anhangabaú, já canalizado, e se bifurcaria sobre os leitos dos rios Saracura e Itororó, as futuras avenidas Nove de Julho e Vinte e Três de Maio (essa última, só aberta nos anos 1970). Tratava-se de ocupar o recinto do parque com as novas avenidas, transformando o espaço de contemplação num espaço de circulação. Para não deixar dúvidas sobre suas intenções, Prestes Maia afirmava logo na Introdução do Plano:

“No centro, todos os recantos ajardinados (largo do Palácio, praça dos Correios, praça João Mendes, o Anhangabaú, etc.)aos poucos cedem o espaço que ocupavam […] às necessidades de circulação.[7]

Os espaços livres, na sua concepção, deveriam se submeter à lógica da circulação, e as áreas de lazer deveriam estar afastadas do centro, deslocadas para os grandes parques que também garantiam a dimensão metropolitana que São Paulo começava a ter. Para o engenheiro, “qualquer projeto de rua envolve[ria], implícita ou explicitamente, uma concepção sobre a cidade, sua estrutura e seu desenvolvimento”[8],e de fato, seu sistema viário articulava um plano de crescimento (infinito, é verdade) que estabelecia lógicas de ocupação distintas para os eixos de circulação e para os interstícios, prevendo áreas verdes que poderiam configurar um “sistema de parques” na cidade. Esse sistema incluía o Ibirapuera e o Parque das Cabeceiras do Ipiranga, alguns parques médios, como o da Cantareira, do Alto da Serra, do Pari, da Mooca, e ainda os chamados “parques esportivos”, como o da Ponte Grande, do Tatuapé e da Lapa, bem como pequenos jardins que funcionariam na escala dos bairros. No entanto, a ênfase nessa questão era poucase comparada à dedicação ao desenvolvimento do sistema viário, e ficaria relegada a um Apêndice do Plano. Como ele mesmo afirma:

Só nos interessa no momento os grandes parques por suas relações (de estética e de tráfego) com o plano arterial. Do mesmo modo, porém em menor escala, os jardins interiores, playgrounds, etc., por concorrerem indiretamente para a facilidade de circulação, pois nos bairros populosos desviam das ruas a criançada.[9]

A intenção mais imediata era resolver o problema da circulação, e também reforçar a ideia de metrópole, confirmando a importância simbólica do centro. Esse não seria mais o pequeno núcleo histórico na colina, e nem mesmo o vale do Anhangabaú. O Plano pretendia “puxar” o centro para a região da República, englobando tanto a colina como essa nova área pelas avenidas que formariam o Perímetro de Irradiação. Implantado parcialmente a partir de 1938, quando Prestes Maia se tornou prefeito, e reforçado pelos planos posteriores[10], essa proposta fez com que os interesses privados também se deslocassem para o chamado centro novo, e em poucas décadas a região da colina histórica se encontrava “deteriorada” – ou era assim compreendida.

Não à toa, nos anos 1970, mais precisamente na gestão Olavo Setúbal, é lançado um plano de “revitalização do centro” que previa a eliminação da circulação de veículos das áreas centrais, transformando as vias públicas em calçadões. A opção pelo transporte sobre rodas,adotada e defendida com tanta ênfase,começava a dar mostras de esgotamento, e com isso, também o plano de um metrô é finalmente desengavetado. Numa articulação complexa, uniam-se assim as dimensões simbólicas e materiais da metrópole. Edifícios “históricos” como o Martinelli e o Pátio do Colégio, agora reconstruído na sua forma colonial, eram recuperados; obras do metrô serviam também para eliminar usos indesejados, demolindo-se vastas áreas do centro; e novos calçadões pretensamente devolveriam espaços públicos à população[11]. É nesse contexto que em 1981 é lançado um concurso de ideias para a remodelação do Anhangabaú, atravessado pela discussão de retomada dos espaços públicos, ampliada agora pela conjuntura da redemocratização. O projeto vencedor, de Jorge Wilheim e Rosa Kliass, entretanto, ao enterrar o eixo viário, criando sobre o mesmo uma imensa esplanada entre a colina histórica e o morro do Chá, acabaria por segmentar, mais que unir as duas partes do centro, impedindo até mesmo a compreensão visual do eixo da São João, vista histórica da cidade agora obstruída pelos equipamentos públicos (banheiros!) ali localizados. Espaço feito para ser visto do alto, ocupado apenas nos grandes eventos, com a ajuda dos equipamentos temporários (palcos, tendas, carros de som, etc.), o novo projeto descartou a ideia de uma passagem monumental mas não agregou densidade urbana àquele lugar central.

Se pensarmos que o tema “espaço público” evoca também a ideia de lugar do debate político, do confronto de opiniões privadas que devem se tornar públicas, em uma forma de prática democrática que supõe a circulação de diversos pontos de vista, talvez seja mesmo a Avenida Paulista, hoje, o nosso principal espaço público. Aberta como um bulevar no divisor de águas entre o Pinheiros e o Tietê no final do século 19, e logo ocupada por palacetes, transformou-se ao longo do século 20 num eixo estrutural da cidade, fazendo parte do segundo anel de circulação previsto por Prestes Maia. Com a verticalização dos anos 1950, passou a ser o endereço das sedes de bancos e empresas, até pelo menos os anos 1990, quando foi substituída pela expansão do eixo sudoeste e considerada ultrapassada pelos novos edifícios inteligentes da Marginal do Rio Pinheiros. O que para alguns parecia indicar uma evidente decadência, no entanto, pode hoje ser visto como um momento novo, de reafirmação da sua centralidade. Nas últimas décadas a Paulista se viu tomada por uma população cada vez mais diversa, ganhou um comércio de rua, passou a sediar novos equipamentos culturais, transformando-se, além de tudo, no palco por excelência das manifestações, da Parada Gay ao Movimento Passe Livre, das greves dos professores às marchas da nova direita. E agora surge a possibilidade de transformar-se também num grande parque de domingo. Ao se unir nessa via a dimensão do lazer coletivo à dimensão do debate público das ideias – em uma avenida, afinal estamos falando de São Paulo – talvez a própria população da cidade esteja reconhecendo a história das suas escolhas e omissões, e tomando para si o papel de sujeito político.

[1]A ciclovia foi inaugurada em 16 de julho de 2015.
[2]Podemos lembrar de outros espaços que vêm sendo reincorporados ao uso coletivo, como a Praça Roosevelt ou mesmo a transformação do Minhocão em parque de fim de semana. Ambos têm características e especificidades que não cabem serem discutidas aqui, mas que se somam à “Paulista de domingo” nessa vontade de cidade, entendida na sua etimologia, de civitas, de lugar que constrói cidadãos. A mim me parece, entretanto, que desde a ampliação das linhas de metrô – a extensão da linha Verde e a conexão com a Amarela, que se unem às linhas da CPTM – foi a Paulista que se transformou nesse espaço central e público por excelência, que se realiza no sentido duplo da acessibilidade e da gratuidade – algo raro em São Paulo.
[3]A rigor, o primeiro parque público da cidade é o Jardim da Luz, surgido por decreto Real como um Horto Botânico em 1798. É inaugurado efetivamente em 1825 como Jardim Público, mas apenas com a instalação da linha férrea e das linhas de bonde, por volta de 1870, é que passou a ser mais frequentado pela população.
[4]Sua proposta ecoava as ideias do Diretor de Obras do Município Vitor Freire e seu “Plano de Melhoramentos de São Paulo”, publicado em 1911 na Revista Politécnica.
[5]Pouco antes, os velhos largos da cidade colonial também haviam sido remodelados, mais ou menos com o mesmo intuito: criar uma cena modernizada e apagar os vestígios da cidade antiga. A mais emblemática dessas intervenções é a que ocorre com a demolição da Igreja do Rosário dos Homens Pretos e a transformação do seu largo em Praça Antônio Prado – na gestão do próprio – de modo a afastar os batuques, jongos e pretas velhas vendedoras de doces do centro da capital republicana. Outros espaços da colina também foram alvo de reformas, alargamentos, retificações e demolições, sempre de modo a facilitar os fluxos da já congestionada área central, levando as velhas edificações abaixo, e com elas, seus antigos moradores, suas histórias e seus usos. Não à toa, na proposta de Bouvard havia ainda a ideia – não executada – de abertura de um eixo cívico ligando a futura Catedral da Sé (a antiga igreja colonial havia sido demolida em 1912) ao novo edifício do Palácio de Governo (construído sobre o Colégio dos Jesuítas a essa altura também já demolido), garantindo uma certa monumentalidade ao acanhado centro da cidade. Não custa lembrar que o atual “Pátio do Colégio” é uma réplica do edifício colonial, cuja decisão de ser reconstruído ocorre em 1954, ano das comemorações do IV Centenário de fundação da cidade e momento de afirmação de uma história colonial paulista como pré-história da metrópole industrial… O edifício só surge na década de 1970, parte das ações de “revitalização do centro”, como se verá em seguida.
[6]Todas as outras radiais “parariam” no Perímetro de Irradiação, que envolveria a região central.
[7]Francisco Prestes Maia, “Introdução ao Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo”,1930.
[8]Idem.
[9]Francisco Prestes Maia, “Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo, Apêndice: Parques”, 1930. Tanto assim que a despeito de serem construídos alguns parques, como o Ibirapuera, o das Fontes do Ipiranga (ou Parque da Água Funda, onde se encontram o Jardim Botânico e o Jardim Zoológico), e o da Cantareira (reserva para abastecimento de água desde o século 19), a ideia de sistema não se verifica, pois não houve uma real articulação entre os espaços livres nas diversas escalas.
[10]Podemos pensar por exemplo no “Programa de Melhoramentos Públicos para a Cidade de (1950) de Robert Moses.
[11]As obras da Linha Azul começaram em 1968, mas a estação Sé só seria inaugurada em 1978, prevista como o ponto de encontro das Linhas Azul e Vermelha. A nova Praça da Sé é emblemática desse momento, articulando as diversas dimensões em jogo.

*Ana Castro é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Graduação e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
**Texto originalmente publicado na Revista Contraste 4. Para mais informações sobre a revista, visite sua página no Facebook.