Por: Débora Ungaretti, Isadora Guerreiro, Raquel Rolnik, Vitor Inglez, Caio Castor, Lara Giacomini, Benedito Barbosa*
Em 2024, o governo do Estado de São Paulo formalizou pedido de transferência do terreno da União onde hoje moram 901 famílias da favela do Moinho, no centro de São Paulo, visando removê-la. Estas primeiras negociações se deram em meio a uma campanha publicitária do governo e da imprensa relacionando a favela ao “ecossistema” do tráfico de drogas vinculado à chamada Cracolândia. Tema importante para o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), no qual ele aposta uma das vitrines de sua gestão, levou a ações policiais e interdições na favela e em Campos Elíseos duas semanas após o anúncio do projeto de transferência da sede administrativa para o Centro.

Embora não tenha se oposto à transferência do terreno, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) impôs como condicionante a apresentação de um projeto concreto para a área e também um plano de reassentamento que atendesse a totalidade dos moradores em soluções adequadas e estabelecidas de comum acordo com os atingidos pelas remoções.
O governo do Estado apresentou então a proposta de implantação no terreno de um parque, a instalação de um trem turístico, de um espaço cultural e de um memorial ferroviário, a implantação da estação Bom Retiro da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e a disponibilização, pela CDHU, de “soluções habitacionais” não especificadas. A narrativa de criminalização do território e de guerra às drogas construída anteriormente se articulou então com mais um elemento, agora de reestruturação urbana, na qual o esvaziamento da área, com a remoção da última favela do centro da cidade, é um ponto central.
Desde então, ocorreram onze reuniões coordenadas pela SPU envolvendo representantes da Associação de Moradores do Moinho, do governo do Estado, da CDHU, do Escritório Modelo da PUC, e das Defensorias Públicas do Estado e da União. Nestas reuniões, foram discutidas propostas de atendimento por parte da CDHU e as reivindicações por parte dos moradores, que estão na área há cerca de 30 anos. Após cada uma das reuniões, foram feitas assembleias pela Associação de Moradores do Moinho, coletivizando não só os encaminhamentos das negociações, mas também a organização das reivindicações por parte dos moradores.

Até o momento, as alternativas que estão sendo apresentadas pela CDHU são cartas de crédito habitacional em apartamentos ainda em construção ou projeto adquiridos por meio de chamamento público realizado pelo governo do Estado, ou unidades habitacionais em empreendimentos públicos, ambas com a perspectiva de financiamento e pagamento de prestações em torno de 20% da renda familiar.
Estas soluções enfrentam três tipos de resistência: em primeiro lugar, a promessa de apartamento que ainda não existe. Não é reassentamento chave-a-chave, ou seja, saída de uma casa diretamente para outra moradia, definitiva. A experiência concreta, inclusive de muitas famílias que hoje estão no Moinho, é receber o auxílio aluguel depois de removida esperando por décadas o apartamento que nunca chega. E, neste meio tempo, vivendo em situação precária, de aluguel em algum cortiço ou favela. Uma outra resistência é a inadequação dos apartamentos que estão sendo oferecidos: a maioria dos empreendimentos são longe da área central, e portanto dos serviços e equipamentos públicos e redes comunitárias dos moradores do Moinho, e, ainda, com a metragem variando de 20 a 40 m², inadequada frente às diferentes composições familiares.

O terceiro tipo é ainda mais grave: um grande percentual de moradores do Moinho não tem nenhuma condição de ser “sujeito de crédito” – segundo o levantamento da própria CDHU, obtido por meio de pedido de acesso à informação, 47% são trabalhadores informais, que vivem de trabalho ocasional, sendo a renda média domiciliar de 1,2 salários mínimos, sendo que 25,5% das famílias tem renda menor que 1 salário mínimo, e 61% das famílias tem renda de 1 a 2 salários mínimos.

Desta maneira, simplesmente não se enquadram em programas de acesso a crédito imobiliário mas, mesmo assim, precisam morar em algum lugar… Tanto que há relatos de que, no momento do cadastramento das famílias, moradores cuja renda é menor do que 1 salário mínimo teriam sido orientados a aumentar a renda declarada em seu cadastro, sob pena de não terem garantia de atendimento habitacional – pois os programas oferecidos pela CDHU são para famílias com renda acima de um salário mínimo. Ou seja, um artifício para encaixar a demanda habitacional em um programa em que, na verdade, não se encaixa e nem se encaixará. Diante da inadequação das propostas, a Associação de Moradores do Moinho passou a preparar e discutir com toda a favela reivindicações por atendimento que seja compatível com as necessidades habitacionais de quem mora lá hoje.
Antes que houvesse uma reunião para apresentação e discussão dessas contra-propostas, no entanto, os moradores foram surpreendidos. Atropelando o processo não concluído de diálogo e negociação – e mesmo antes que tenha sido feita a transferência do terreno da SPU para o governo do Estado -, em março deste ano, a companhia passou a orientar os moradores a aceitarem os termos do atendimento habitacional que estava sendo proposto, sob pena de não terem a garantia de atendimento no futuro. Passou, portanto, a pressionar os moradores a aceitarem uma proposta de atendimento que não atende às suas reivindicações. Tais termos envolvem a desocupação das casas a partir do dia 15 de abril – sendo que nesta última segunda-feira os engenheiros da CDHU estiveram na favela para identificar as casas que serão demolidas na próxima semana. As famílias que aderiram ao atendimento irão receber um Auxílio Aluguel no valor de R$ 800,00 (valor a ser dividido pela Prefeitura e pelo Governo do Estado) – insuficiente para locação de moradia na área central -, até que os empreendimentos habitacionais oferecidos sejam entregues – a maioria dos quais fora da região central de São Paulo -; ou uma carta de crédito no valor de R$ 250.000,00 – o que tem se demonstrado insuficiente para aquisição de imóveis na região central, especialmente para famílias mais numerosas, nas pesquisas feitas por moradores nas construtoras de empreendimentos habitacionais.

Assim, numa rapidez que passa por cima de processos legais básicos – como a negociação com a proprietária da área, que é a União – ou de possibilidade de mobilização de redes de apoio e defesa legal dos moradores, o governador-engenheiro pretende iniciar na próxima semana a remoção e derrubada de casas de algumas famílias que aceitaram a negociação-pressão do governo. Depois da terra-arrasada e com a favela parcialmente destruída, as condições de prosseguimento de destinação da área seriam encaminhadas em outras condições de negociação e de valorização do terreno e de seu entorno.
Isso porque estão em andamento a implantação de ao menos três Parcerias Público-Privadas que se articulam direta ou indiretamente com o projeto para a favela do Moinho: a PPP de Trens Urbanos, a PPP de Regeneração Urbana e a construção da Sede do Governo do Estado, que está já em andamento a poucos quarteirões dali. Temos denunciado desde o ano passado esta última PPP, que ameaça remover quarteirões inteiros da região de Campos Elíseos. Temos mostrado que este processo não é novo, e já articulou uma série de outros grandes projetos urbanos, habitacionais, de segurança pública e de assistência social em torno da existência da Cracolândia (e, aliás, justamente responsáveis pela sua existência) – naquilo que estamos chamando de “guerra de reconquista” do centro de São Paulo.
Assim, conviver com a incerteza sobre uma possível remoção é cotidiano na favela do Moinho há muitos anos. Instalada entre os trilhos do trem, em terreno sob o Viaduto Orlando Murgel, onde ficava o antigo Moinho Matarazzo, em São Paulo, a favela vive uma contradição de estar no centro da cidade e, ao mesmo tempo, viver numa extrema precariedade – também fruto de constantes ameaças de remoção, que não incentivam o investimento dos moradores.

Tal precariedade, somada aos interesses na área, fazem com que a favela sofra com uma série de incêndios, muitos considerados criminosos – uma constante na história das remoções em São Paulo. Em um dos maiores incêndios do Moinho, no final de 2011, cerca de um terço da comunidade foi destruída, com a gestão municipal de Gilberto Kassab construindo um muro de 6 metros isolando a área e impedindo rota de fuga dos moradores em casos de novos incêndios, que de fato ocorreram, levando os moradores a destruir parte do que chamaram de “Muro da vergonha”. Na gestão municipal seguinte, de Fernando Haddad, as disputas e negociações continuaram – dada uma tutela antecipada de usucapião, instituída pela Justiça Federal à favela – com promessas de unidades habitacionais futuras mediadas por auxílio aluguel. A questão da remoção total nunca se resolveu, bem como a precariedade do local. Se por um lado, os incêndios e a precariedade são mobilizados para remover, sob a alegação do risco, a mitigação desses problemas é objeto de luta e reivindicações constantes por parte dos moradores. Em 2022, no período da pandemia, depois de um esforço de décadas, a favela do Moinho conquistou água e esgoto encanados, um primeiro passo para outras conquistas, como o fornecimento de energia elétrica, a ampliação da coleta de lixo, a implantação de um sistema preventivo de combate a incêndios, e a regularização fundiária.


Mais recentemente, a nova ameaça de remoção total se torna cada vez mais concreta, dentro da política de terra arrasada (esvazia e destrói primeiro). Múltiplas tecnologias fazem com que pessoas sejam removidas antes de qualquer solução oficial, em uma antecipação do canteiro de obras que permite a destruição e eliminação da favela mesmo que os projetos futuros não venham de fato a se concretizar. Estes dispositivos têm sido desenvolvidos e aperfeiçoados nos últimos anos, pelas gestões estaduais e municipais na implantação de suas PPPs: aonde a categoria risco (seja ele geotécnico, hidrológico ou tecnológico, como no caso do Moinho) opera como justificativa para que as remoções ocorram divorciadas da implantação do projeto, desencadeando forte pressão sobre os moradores, que, ao aceitarem os termos propostos pelo Poder Público, são imediatamente removidos e suas casas destruídas, de maneira a não poderem ser reocupadas; para além da grande violência simbólica do ato, as ruínas são deixadas no local, minando a resistência dos moradores remanescentes e agravando o “risco criado” em um ciclo vicioso.
Os moradores, através de sua Associação e de redes de apoio, planejam uma série de atividades e mobilizações para as próximas semanas. Ao defender suas casas e seu território, também resistem na última favela do centro de São Paulo.

*Débora Ungaretti, Vitor Inglez e Lara Giacomini são pesquisadoras do LabCidade FAUUSP. Isadora Guerreiro e Raquel Rolnik são professoras da FAUUSP e coordenadoras do LabCidade. Caio Castor é repórter e documentarista, há 13 anos apoia e registra a luta da Favela do Moinho. Benedito Barbosa é advogado popular da União dos Movimentos de Moradia e do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.
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