*Por Raquel Rolnik
Durante a pandemia, vimos um crescimento do teletrabalho no Brasil, numa tentativa de diminuir o perigo de contágio da população pelo coronavírus. Passados meses, o que era emergencial foi virando, em alguns setores, oficial. A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, publicou um Decreto (59.755, de 14 de setembro) cujo conteúdo é permitir o home office do funcionalismo público de forma permanente. A medida da administração municipal se soma a outras iniciativas de bancos e empresas que decidiram desmobilizar parte de seus escritórios de forma permanente como medida sobretudo de redução de custos com aluguel, manutenção e outras despesas relacionadas ao trabalho presencial.
Em reação a esse movimento, o Ministério Público do Trabalho publicou, na segunda-feira (5), 17 recomendações para o teletrabalho, a fim de proteger trabalhadores. Esta questão merece entrar no debate público com muito peso, já que trabalhar de casa parece ser uma tendência para o futuro em diversos setores, públicos e privados, e significa toda uma nova dinâmica sob o ponto de vista trabalhista — implica custos extras para o trabalhador em garantir mobiliário e conexão adequados (nem sempre presentes), questões relativas a segurança no trabalho, entre outras. A nota técnica destaca a importância de que haja proteção da privacidade do trabalhador, reembolso de despesas, infraestrutura para o trabalho remoto, informação sobre desempenhos, ergonomia, pausas para descanso, controle de jornada e ajuste de escala que considere necessidades familiares do trabalhador. Embora a recomendação do MPT não tenha força de lei, são orientações que podem fundamentar denúncias e nortear fiscalizações.
O Decreto de Covas apresenta o corte de gastos como justificativa central para viabilizar o teletrabalho no funcionalismo público, e é preciso estar atento ao que isso significará. Só existe “corte de gastos” porque as despesas são transferidas para o trabalhador, que precisa arcar com custos de internet, energia elétrica, equipamentos (como computadores ou celulares potentes), itens diversos de escritório, ou até mesmo o escritório em si, já que o teletrabalho exige mesa e cadeira adequadas e confortáveis. Outro ponto importante é que ao fazer da casa escritório inevitavelmente se perde espaço desta casa, de modo que uma parte do ambiente de convívio familiar é sequestrado pelas necessidades da empresa ou órgão público empregador, que transfere seus custos de aluguel ou IPTU para seus empregados e também para as famílias destes empregados.
Além das razões de ordem orçamentária, o Decreto municipal também aponta possíveis ganhos ambientais decorrentes da instauração do teletrabalho, uma vez que este reduz a necessidade de deslocamentos. Sabemos que a mobilidade em São Paulo é, apesar de avanços lentos, catastrófica. Sabemos que temos carros, caminhões e distâncias casa-trabalho demais, e que o modelo do nosso transporte público não é capaz de atender a demanda de forma acessível e com conforto, de maneira que milhões de paulistanos perdem anos inteiros de suas vidas na circulação diária para trabalhar, estudar e voltar para casa. Portanto, individualmente, para quem estiver no teletrabalho e não precisar mais se deslocar diariamente, isto será um ganho. Mas em que medida instituir esse teletrabalho trará “ganhos ambientais decorrentes da redução da circulação de veículos de passeio e uso de transporte coletivo”? Qual será seu real impacto para a cidade?
Para começar a conversa, dimensionando quem de fato está em teletrabalho durante a pandemia, tomemos os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD-Covid) do IBGE, que contabilizou 8,2 milhões de pessoas trabalhando remotamente entre 06/09 e 12/09 no Brasil, considerando o trabalho nos setores público e privado. Este número é pequeno em relação ao total de trabalhadores ativos, uma vez que é uma forma de trabalho que costuma exigir alta qualificação — de acordo com a PNAD, 31% das pessoas com Ensino Superior completo ou Pós-graduação estavam em teletrabalho durante o período analisado, contra 5,5 % das pessoas com Ensino Médio, 1% das pessoas com Fundamental e 0,5 % das pessoas sem Fundamental. Segundo relatório do ano passado da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas 21% dos brasileiros de 25 a 34 anos têm Ensino Superior completo, Os números para a Pós-Graduação são ainda menores: somente 0,8% das pessoas de 25 a 64 anos no Brasil concluíram mestrado e 0,2% chegaram ao doutorado. Considerando também que que o decreto paulistano diz respeito a funcionários públicos, e no estado de São Paulo apenas 4,3% da população total é de funcionários públicos (dados de 2017 do IPEA), dificilmente esta medida terá impacto relevante na mobilidade urbana.
Por se tratar de uma fatia tão pequena da sociedade, não se pode atribuir somente ao teletrabalho a diminuição da circulação que ocorreu durante a pandemia (as escolas fechadas, por exemplo, são um fator importantíssimo nessa equação). A esmagadora maioria dos trabalhos continuou e continuará sendo presencial, especialmente aqueles de baixa remuneração, cujos trabalhadores fazem viagens de longuíssima distância, cruzando a cidade das periferias até o centro. A pandemia não gerou melhoria na qualidade e eficiência do transporte, e em muitos momentos até piorou esse transporte, na medida em que, em nome de um equilíbrio financeiro das empresas concessionárias, a Prefeitura autorizou uma diminuição radical da oferta de assentos no transporte coletivo.
Possibilidades de melhoria significativa na circulação exigem a adoção de políticas públicas dirigidas a esta melhoria. Exigem mudança radical nos modelos adotados pelas gestões para o transporte público e mobilidade como um todo. Exigem investimentos claros no aumento da oferta de transporte coletivo de passageiros, no transporte ferroviário de carga, na redução da dependência de carros e caminhões, na substituição imediata dos motores a diesel dos ônibus, entre outras medidas. Não é a adoção do teletrabalho que vai operar este milagre na nossa mobilidade.
*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.
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