Imagem Panorâmica do Centro de SP
Imagem Panorâmica do Centro de SP a partir da praça do Correio

Por Raquel Rolnik e Pedro Mendonça

A partir da emergência do escândalo das chamadas  “fake HIS” (Habitação de Interesse Social), uma  fraude que vem distorcendo o mercado residencial  na cidade de São Paulo, parece que finalmente a prefeitura começa a reagir. Trata-se do  caso das Unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP)  que foram produzidas pelo mercado imobiliário privado através de  incentivos  urbanísticos  e subsídios da Prefeitura para promover o aumento da oferta de  moradia acessível, mas que geraram produtos imobiliários (sobretudo studios e microapartamentos)   que foram comprados por investidores e destinados ao lucrativo aluguel de curta temporada em plataformas como o Airbnb. Após abertura de inquérito no Ministério Público, multas para construtoras, tentativas barradas de CPI – (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara, a Prefeitura de São Paulo está tentando corrigir essa rota, publicando no final de maio o Decreto Nº 64.244.

O que muda com o novo decreto?

A principal mudança é clara: unidades HIS e HMP que foram construídas a partir de incentivos urbanísticos e subsídios da Prefeitura não podem mais ser usadas para aluguel de curta temporada (como Airbnb). Elas devem ser destinadas a aluguel permanente, com contratos de longo prazo. Inclusive, as convenções de condomínio podem reforçar essa proibição. Além disso, o decreto impõe limites importantes:

  • O valor do aluguel não pode ultrapassar 30% da renda familiar para a qual a unidade foi originalmente definida. Por exemplo, para HIS1 (faixa de 0 a 3 salários mínimos), o aluguel deve ser até um terço dessa renda.
  • Também foram definidos limites máximos para a venda dessas unidades, conforme a faixa de renda, como R$ 266 mil para HIS1 e R$ 518 mil para HMP, valores que serão corrigidos anualmente pelo Índice Nacional de Custo da Construção INCC. Vender acima desses valores configura uma infração.

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A responsabilidade também aumenta


A veracidade das informações de renda e a guarda dos documentos que comprovam o enquadramento do comprador ou locatário são agora responsabilidade do promotor do empreendimento ou do locador. A Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) pode exigir a apresentação de comprovantes de renda, e a mera declaração não será suficiente. Os contratos de locação precisarão incluir uma cláusula sobre o enquadramento de renda, com locatário e locador respondendo por falsidade documental.

Para garantir a transparência, os materiais técnicos e publicitários dos empreendimentos precisarão identificar de forma ostensiva as unidades HIS e HMP e a quem são destinados.

Os desafios: fiscalização e batalhas Jurídicas

Apesar de ser um passo fundamental, a implementação do decreto não será fácil, há muitas questões e dificuldades de fiscalização. Podemos adiantar que certamente acontecerão também contestações na Justiça, brigas entre incorporadoras e proprietários, especialmente em relação às unidades que já foram vendidas e estão sendo usadas de forma irregular. Para os novos empreendimentos isso já vai estar mais controlado. Porém, e as milhares de unidades já produzidas?

Rumo à regulação das plataformas de aluguel  de curta temporada

O cenário em São Paulo, com o crescimento do aluguel de curta temporada, é preocupante. Estudos preliminares conduzidos pela equipe do LabCidade identificaram que os anúncios de Airbnb em São Paulo se concentram nas regiões mais centrais. O distrito da República apresentou a maior concentração de anúncios por domicílio (6,7%), chegando a mais de 20% das unidades residenciais em algumas quadras.

Em áreas como a República e Consolação, o aumento de unidades de 1 quarto (o tipo mais comum na região central de São Paulo) ofertadas no Airbnb entre 2017 e 2023 chegou a superar os lançamentos imobiliários no mesmo período. Para as unidades de 2 quartos, os novos anúncios representam mais da metade dos novos lançamentos na Bela Vista, Consolação e República. Isso significa que certamente  vai  faltar moradia para residentes nestas regiões, além de ocorrer um grande aumento de preço, já que os preços praticados pelo aluguel de curta temporada são bem superiores àqueles dos aluguéis de longa duração.

E, embora a maioria dos anfitriões tenha apenas um imóvel, os anfitriões com múltiplos anúncios são responsáveis pela maioria das ofertas (69% em São Paulo), demonstrando que a plataforma é usada para exploração de grandes parques imobiliários privados de aluguel. Os estúdios e 1 dormitório, que são a tipologia mais comum de Airbnb em São Paulo estão presentes em empreendimentos que foram objeto de incentivos e subsídios, aonde com o novo decreto não poderão mais ser alugados por curta temporada, mas estão também presentes em empreendimentos que não usaram incentivos e portanto podem continuar atuando nas plataformas de aluguel de curta duração normalmente.

Diante disso, há uma necessidade urgente de iniciar uma discussão sobre a regulação do Airbnb em São Paulo de forma mais ampla. Muitas cidades europeias, norte-americanas e até a Cidade do México já estão regulamentando essas plataformas devido ao impacto perverso no mercado imobiliário. O decreto é um passo importante para proteger a habitação social  de fraudes, mas o próximo desafio é debater uma regulação mais abrangente para que o direito à moradia não seja sufocado pela transmutação de unidades residenciais em meros ativos financeiros.