Por Marina Harkot*
Depois de mais de um ano e meio de respostas evasivas sobre os planos da gestão João Doria e Bruno Covas para as políticas de ciclomobilidade, a Prefeitura de São Paulo apresentou a Proposta de Plano Cicloviário do município de São Paulo no início de agosto. Tal proposta era ansiosamente aguardada pelos ciclistas, que viram a importância da pauta diminuir enormemente na comparação com a gestão anterior — primeiro, com o congelamento do orçamento para 2017 referente à pasta e o corte de investimentos na área, em seguida, com o recapeamento de vias que tiveram as ciclofaixas apagadas para não serem novamente pintadas e sinalizadas sobre o novo asfalto. Somou-se a esses pontos a dificuldade de diálogo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e com a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes (SMT) e o aprofundamento da polarização entre cidadãos “pró” e “contra” ciclofaixas, que acompanha a questão desde que as vias começaram a ser pintadas, em 2014.
Foi recorrente ouvir, tanto ao longo da campanha eleitoral de 2016 quanto nos primeiros 18 meses de gestão Doria/Covas, que as ciclovias e ciclofaixas da cidade haviam sido implantadas “como orégano jogado sobre a pizza”. Ou, ainda, que a malha cicloviária tal qual fora planejada e instituída por decreto, através da construção coletiva com ciclistas no processo de elaboração do Plano de Mobilidade Urbana (2015), seria revista pela gestão. Cicloativistas e organizações que promovem o uso da bicicleta na cidade, surpresos com as declarações, saíram em defesa da garantia da implementação da rede de 1.600 km de ciclovias e ciclofaixas que, segundo o PlanMob, deveria ter seus trechos sinalizados e interligados até 2030.
As diversas estratégias para reivindicar a participação no processo de revisão do Plano Cicloviário em todas as suas etapas não foram suficientes para garantir a participação popular efetiva no processo, nem mesmo com a existência de uma instância de participação social cuja função é, justamente, trabalhar em conjunto com o executivo municipal na construção da política de ciclomobilidade. A Câmara Temática da Bicicleta (CTB) do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (CMTT) foi surpreendida com a realização de uma coletiva de imprensa pelo prefeito Bruno Covas e o secretário de mobilidade e transportes João Otaviano, no dia 3 de agosto, cuja data não foi compartilhada de antemão e para a qual o acesso da sociedade civil foi dificultado. Apenas com o auxílio de advogados é que foi garantido aos ciclistas o direito de entrar na coletiva e ver quais os planos que vêm sendo desenhados para a política de ciclomobilidade paulistana.
Apesar de o objetivo apresentado pelo prefeito logo no início da apresentação — “transformar São Paulo na capital brasileira da bicicleta” —, e de o prefeito ter afirmado que o material a ser apresentado não seria um plano, mas uma proposta a ser discutida com a sociedade e os técnicos, não estava estabelecido seque um diálogo mínimo com as instâncias de participação estabelecidas para tal — a CTB e o CMTT.
As propostas apresentadas não correspondem às expectativas da sociedade civil, que esperavam ao menos um plano mais detalhado após um ano e meio de silêncio. Dentre as sugestões, está a possível criação de uma hierarquia de rede, que categoriza as vias em estruturais, regionais e locais e adequa as infraestruturas a serem implantadas ao volume do tráfego em cada uma delas. Ou seja, haveria ciclovias nas vias arteriais, ciclofaixas nas vias coletoras e ciclorrotas com medidas de acalmamento de tráfego nas vias locais. No entanto, embora o horizonte de planejamento apresentado seja 2028, o material não detalha prazos intermediários, muito menos divide em etapas a quilometragem a ser implantada até que a meta proposta seja alcançada. Desse modo, é impossível para a sociedade civil acompanhar os passos da administração pública, tomando como base a Lei Orçamentária Anual (LOA) ou o Plano Plurianual (PPA), e verificar se o orçamento proposto pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo para as políticas de ciclomobilidade é condizente com o volume das infraestruturas a serem implementadas naquele ano ou naquele quadriênio.
Ainda, a proposta deixa clara a tradição rodoviarista da CET-SP, uma vez que a rede cicloviária apresentada praticamente segue o traçado dos trilhos da rede de metrô, com traçado radial e conectando algumas áreas da cidade ao centro. Vê-se repetida uma lógica de conexão casa-trabalho, que não apenas não retrata as atuais dinâmicas laborais como também deixa em segundo plano todos os outros deslocamentos cotidianos, motivados por educação, lazer, compras, saúde ou encontros familiares e entre amigos. É o mesmo planejamento de transporte que vem sendo reproduzido já há muitas décadas e que se mostra cada mais insustentável para a multiplicidade dos usos da cidade.
O plano também apresenta uma ideia de anel cicloviário pelas avenidas Marginais que — quem usa bicicleta no cotidiano sabe — não faz sentido quando seu motor são suas próprias pernas: ciclistas e pedestres tendem a escolher seus trajetos considerando se são curtos, planos, seguros e interessantes. Por não contemplar esses critérios, a ciclovia do Rio Pinheiros, por exemplo, é majoritariamente utilizada para lazer, não sendo uma opção usual para aqueles que pedalam como meio de transporte.
Por fim, a proposta também não define que vias irão compor a Rede Cicloviária Estrutural — fica dito apenas em quais avenidas estarão os chamados Eixos e Anéis Cicloviários, apresentados no slide abaixo:
Mesmo que seja possível dizer que as propostas “têm cara de” um plano cicloviário, o material apresentado e os estudos realizados são redundantes, uma vez que o município já conta com um Plano Cicloviário — este sim elaborado com participação social e considerando o conhecimento de quem pedala cotidianamente na cidade. A proposta apresentada pela atual gestão, sem o estabelecimento de diálogo e acompanhada pelo apagamento de trechos de ciclofaixa ao longo dos últimos meses, levanta a seguinte dúvida: estaria a Prefeitura de São Paulo buscando realmente compreender como fazer o melhor para a política de ciclomobilidade da cidade ou apenas ganhando tempo para, ao final da sua gestão, poder exibir números de implantação de ciclovias inferior à quilometragem instalada entre 2013-2016, já que o tema tem sido alvo de ataque desde a campanha eleitoral? Se o parâmetro para elucidar essa questão for o comprometimento com as propostas colocadas, é possível afirmar que a Prefeitura de São Paulo já falhou em um dos pilares centrais do plano apresentado: a participação social.
*Marina Kohler Harkot é cientista social e mestre em Planejamento Urbano pela FAUUSP. Atua em coletivos da sociedade civil ligados à promoção da bicicleta.
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