* Por Larissa Lacerda, Débora Ungaretti, Marina Harkot, Aluízio Marino, Isadora Marchi, Tomás Wissenbach
Entre os dias 27 e 31 de maio de 2019, aconteceu em Natal – RN, o XVIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR). O evento, bianual, reúne estudantes, pesquisadoras/es, técnicas/os, professoras/es e demais interessadas/os no amplo e diverso campo dos estudos urbanos e regionais, a partir de disciplinas distintas que vão da Arquitetura e Urbanismo à Ciências Sociais, Direito, Geografia, entre outras. O ENANPUR de 2019 tinha como título “Tempos em/de Transformação – Utopias”, um tema que perpassou grande partes das mesas e sessões de apresentação de trabalhos que falaram sobre territórios e conflitos dos mais diversos.
A equipe do LabCidade esteve presente no evento apresentando um pouco das pesquisas que estamos desenvolvendo. Depois de uma semana intensa de discussões, parte das/os participantes aproveitaram o fim de semana para conhecer outras localidades. Na sexta-feira, partimos para a pequena cidade de São Miguel do Gostoso, à 110 km ao norte da capital. A chegada no fim do dia foi acompanhada por fogos de artifícios, que anunciavam o início dos festejos de São João.
São Miguel do Gostoso é um município de cerca de 9.500 habitantes, internacionalmente conhecido por suas praias, dunas, lagoas e seus ventos, atraindo turistas do Brasil e do mundo. O que pudemos notar em apenas dois dias de viagem, no entanto, é que os conflitos pelo uso da terra gostosense, que refletem diferentes formas de vida, se intensificaram em decorrência da entrada do capital estrangeiro, em um primeiro momento, e financeiro internacional, mais recentemente, com a chegada de um Resort e da instalação dos Parques Eólicos.
Na chegada à Gostoso, fomos recebidas/os pelo proprietário do local onde ficamos hospedadas/os, um brasiliense que vive no Nordeste há mais de 20 anos – sendo 14 deles em São Miguel do Gostoso. Atualmente, além da pousada-hostel à beira da praia, Paulo (todos os nomes são fictícios) é proprietário de um segundo espaço, localizado na praia vizinha, onde funciona um restaurante, um espaço de evento e, futuramente, uma nova pousada. Paulo faz parte da Associação de Empresários de São Miguel do Gostoso e diz que o número de visitantes à cidade aumentou muito nos últimos anos, atraindo o interesse de pessoas e empresas de fora da região em abrir comércios no local.
Dentre eles, está o grupo Land Corp, que pretende instalar um resort em São Miguel do Gostoso. Segundo Paulo, na compra do terreno, o grupo propôs à prefeitura o pagamento em dinheiro de 50% do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), e o restante em “melhorias” para a cidade, o que não foi aceito. Para ele, os empresários querem deixar um “legado” para a cidade, mas a prefeitura cria complicações. De forma geral, esses empresários optariam por investir diretamente em ONGs, projetos locais e até mesmo infraestrutura. Com isso, a contrapartida esperada viria na forma de, por exemplo, isenções fiscais. A proposta dos empresários é vista com bons olhos por Paulo, que vê exigências da prefeitura e o desejo do poder público em administrar seus próprios recursos e priorizar algumas políticas e programas ante outros como entrave ao desenvolvimento local. Ainda, Paulo diz que os empresários encaram a postura da Prefeitura como demonstração de ganância política, ineficiência do poder público ou mesmo sinal de corrupção: a prefeitura exige o pagamento dos impostos, mas há um questionamento em relação a forma com que a prefeitura utiliza estes recursos
No dia seguinte, a caminho da praia de Tourinhos, nos chamou a atenção um assentamento do MST à beira da estrada de terra. A entrada estava enfeitada por bandeiras, panos de chita, faixas e cartazes com palavras de ordem. Tudo havia sido preparado para a inauguração da Capela de Nossa Senhora Aparecida e da Bodega Agroecológica.
O assentamento Maria Aparecida, apenas um dos diversos assentamentos e acampamentos do movimento que estão espalhados pela região, em municípios vizinhos, está no local há 9 anos, ocupando uma terra até então improdutiva, como nos relataram algumas assentadas. Mesmo diante das muitas ameaças de remoção ao longo dos anos, 32 famílias foram, pouco a pouco, se estabelecendo na terra e dando início a plantação agroecológica de itens como feijão, mandioca, pimenta, jerimum e hortaliças, que agora começam a ser comercializados na bodega recém-inaugurada. Elas nos contam que a decisão pela construção da Capela e da Bodega foi feita para reafirmar a presença do MST na região, diante do cenário nacional de criminalização do movimento. Segundo as palavras de uma das lideranças, o assentamento está inserido em um “território em disputa”.
A disputa pode ser observada, por exemplo, na titularidade dos terrenos: nos diversos relatos que ouvimos, foi possível perceber a concentração de terras nas mãos de proprietários europeus – portugueses, italianos, espanhóis -, um fenômeno recorrente no litoral nordestino. A área do assentamento Maria Aparecida seria parte de um terreno maior pertencente a um português, que posteriormente foi transferida para a prefeitura, embora a realização de regularização fundiária siga incerta.
Em uma das fronteiras do assentamento, está instalado um dos diversos parques que compõem um complexo eólico em São Miguel do Gostoso, aposta de diferentes empresas de energias renováveis, como a Atlantic Energias Renováveis S.A., controlada por um fundo de investimento britânico com portfólio crescente de investimentos na Ásia, África e América Latina. Por conta da alteração na paisagem, piora na qualidade de vida das/os moradoras/es do município e riscos à biodiversidade, em 2014 foi aprovada uma lei municipal que limita a implantação de aerogeradores a partir de uma linha de 2 quilômetros do mar. A questão, no entanto, já estava posta: quem ganha e quem perde com a alteração da paisagem natural – suporte de modos de vida locais ligados ao turismo – com a implantação de inúmeras e altas torres e hélices luminosas de concreto e aço?
Do outro lado da estrada, logo em frente ao assentamento, também é possível ver a grande placa anunciando a construção do novo resort hoteleiro e residencial do grupo Land Corp. Segundo nos relataram algumas moradoras, o terreno que irá abrigar o futuro resort foi adquirido do mesmo português.
Chegamos à recomendada praia de Tourinhos, que, diferentemente de outras praias em São Miguel do Gostoso, possui uma faixa de areia não muito larga, além de ter águas mais calmas para banho de mar. Logo nos sentamos de frente para o mar, em uma das barracas instaladas pouco acima da faixa de areia, e começamos o papo com o casal de barraqueiros dono do quiosque há cinco anos, que fazem parte da Associação de Barraqueiros de São Miguel do Gostoso.
Mais uma vez, os conflitos existentes entre os modos de vida e usos da terra marcam as dinâmicas locais. De um lado, os barraqueiros, ameaçados de remoção por pressões ambientais e fundiárias, já que as terras são públicas, lutam para garantir a sua forma de vida e subsistência. De outro lado, a Associação de Empresários, para poder garantir uma melhor exploração turística, busca impedir a permanência dos barraqueiros na praia de Tourinhos, com ou sem plano de reassentamento.
Por fim, conhecemos uma praia pouco turística, mas muito importante para os modos de vida local: a praia da Lagoa do Sal. Sua paisagem é marcada por embarcações e precárias cabanas de adobe que guardam materiais de pesca. O acesso à praia e ao mar sempre foi um elemento central para a vida das comunidades litorâneas e sua inclusão produtiva na economia local. Os chamados ranchos de pesca, que podem ser ainda vistos em porções menos turísticas da região costeira, permitiram, por muitas décadas, servir de pontos de apoio para a manutenção das embarcações, feitura e arrumação das redes de pesca e preparação para as longas jornadas oceânicas. A valorização do turismo e, consequentemente, das faixas próximas às zonas de banho já significou – de imediato – um processo de expulsão de pescadores, camponeses e trabalhadores do mar, quebrando uma precária combinação que sustentava seu modo de vida.
Em alguma medida, porém, se inseriram na economia do turismo, no mais das vezes precariamente, nas atividades de comércio, nas vendas informais e no trabalho doméstico nas segundas residências. Poucos conseguiram uma condição melhor, estabelecendo seu comércio de praia em zonas de infraestrutura precária. Novas dinâmicas, porém, associadas a um novo ciclo de interesses – energia eólica, preservação ambiental e instalação de grandes estruturas de turismo de luxo – ameaçam romper a mínima capacidade de apropriação de renda. E, assim, segregar os habitantes de Gostoso do novo circuito de valorização que está se estabelecendo.
* Respectivamente, doutoranda na FFLCH-USP, doutoranda FAU-USP, doutoranda FAU-USP, doutorando UFABC, mestranda FAU-USP, pesquisadores/as do LabCidade; Geógrafo, mestre em geografia humana pela USP, doutorando em administração pública pela FGV-SP, pesquisador do CEBRAP.
Os comentários estão desabilitados.