Por Lucas Chiconi e Pedro Mendonça*
Na última semana foi iniciada a demolição de mais uma vila operária, desta vez no bairro do Tatuapé, na rua João Migliari. O terreno deve se tornar um dos vários canteiros de obra da construtora Porte Engenharia e Urbanismo na região que compõe um plano urbanístico para todo o eixo da Rua Platina, paralelo à Av. Radial Leste. Este, ao mesmo tempo que demole o casario operário da região mudando completamente a paisagem urbana, apagando a história, constrói edifícios para um número menor de famílias e de mais alta renda, expulsando população mais pobre e usos associados à ela, sem trazer adensamento populacional desejado para os eixos de transporte, nem tampouco debater com a população seus efeitos. Era esta a transformação que queríamos nos eixos de mobilidade de alta capacidade?
A substituição de casas por edifícios nos últimos anos tem impactado muito os bairros mais antigos, já consolidados. E, parece que apenas quando o imóvel é tombado pelo patrimônio histórico, que esta paisagem de edifícios para famílias de renda alta e média ganha alguns limites e não acontece (e às vezes nem mesmo o tombamento ajuda!). Em bom estado de conservação e funcionamento, a vila não possui nenhuma proteção por órgãos de preservação do patrimônio.
Mas não é apenas a substituição de uma paisagem histórica por edifícios que está em curso. Nos últimos anos, a Porte desenvolveu um plano urbanístico privado para toda a área, explorando uso misto e alta densidade em um trecho paralelo à Radial Leste, entre as estações Belém, Tatuapé e Carrão da Linha 03 – Vermelha do Metrô. O plano foi intitulado “Eixo Platina”, fazendo referência à rua que conecta todos os empreendimentos projetados. O plano foi apresentado em um estande da empresa, com uma maquete e não foi encaminhado como um Projeto de Intervenção Urbana – PIU para a Prefeitura. Apenas os parâmetros permissivos dos eixos de centralidade criados no Plano Diretor de São Paulo de 2014 já foram suficientes para a criação de uma nova frente imobiliária que demole e apaga um passado industrial, sem precisar passar por qualquer discussão pública. A construtora concentra sua atividade imobiliária há longa data na região do Tatuapé, desenvolvendo especialmente condomínios residenciais verticais de alto padrão que agora aproveita-se da proximidade dos novos empreendimentos com o transporte público e o incentivo ao uso dos espaços públicos.
E não parece ter nada de novo no projeto da construtora, mais dos mesmos edifícios encontrados em outras regiões da cidade. As alternativas para preservação criadas recentemente na legislação urbanística são insuficientes para controlar o avanço predatório do mercado: existem apenas duas ZEPECs (Zonas Especiais de Preservação Cultural) em toda a região. Mesmo a Lei de Zoneamento de 2016, que traz em seu artigo 64 dispositivos para preservação das vilas, seria suficiente para evitar esta demolição, por trazer uma definição vaga de “vila”. Ao contrário, é o zoneamento que inclusive permite que se aumente a área construída, neste caso sem necessariamente garantir a contrapartida que seria o adensamento populacional.
Não só a memória, mas também a moradia das classes baixas no bairro, está ameaçada. São novas habitações para renda média e alta, mas também ameaças às atividades econômicas que estavam voltadas para estas classes. Os diversos dispositivos urbanísticos do Plano Diretor e Lei de Zoneamento, por exemplo, permitiram que o segundo empreendimento lançado no Eixo Platina – o primeiro chamado de Vilela 62 já está de pé, próximo à Estação Carrão do Metrô -, chamado Platina 220, fosse composto por uma única torre com apartamentos, comércio, hotel, escritórios e lajes corporativas, a ser construído ao lado do Shopping Metrô Tatuapé. O empreendimento soma quase 58 mil m², dos quais 3,5 mil serão destinados a habitação. Os apartamentos residenciais obedecem aos critérios de densidade estabelecidas pelo PDE para os eixos de transformação, mas são projetados como estúdios de um único quarto. Por seu porte, o empreendimento deve se adequar à Cota de Solidariedade, mas optou-se por efetuar depósito no Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) em vez de produzir habitação social no mesmo lugar. Para além disso, a ausência de ZEIS na área inviabiliza a implantação de uma política habitacional para rendas mais baixas na área. Ou seja, houve uma transferência da população mais pobre que vive e trabalha nesta região. Não era exatamente o contrário que se queria quando se planejou esta região?
As vilas constituem uma das primeiras tipologias habitacionais da cidade, construídas no período da industrialização para abrigar a classe operária, compondo parte da identidade de bairros que hoje abrigam, predominantemente, as classes média e média-alta. O avanço do mercado imobiliário leva ao apagamento da presença operária no bairro, com a demolição desta e de outras vilas da região. Mas as vilas não são um “passivo” histórico e tampouco são uma “barreira para o desenvolvimento” do bairro, muito pelo contrário. Uma condição muito particular de várias vilas operárias do Tatuapé e bairros vizinhos é que são muito usadas e, talvez por isso, ainda estejam razoavelmente conservadas. Neste caso fica claro como o adensamento construtivo incentivado pelo PDE nos eixos de estruturação urbana é insensível ao tecido urbano existente e a conflitos localizados.
Há muitas referências nacionais e internacionais de preservação e aproveitamento de espaços industriais, valorizados pela sociedade como símbolos que a representam e contam sua história na formação da cidade. A industrialização trouxe muitos ganhos para São Paulo em diversos aspectos e bairros dessa primeira porção da Zona Leste revelam essas dinâmicas de uso e transformações que devem ser preservadas para garantir identidade e referência para promover transformações positivas para o desenvolvimento.
Alternativas fundamentais às formas urbanas impostas pelo mercado imobiliário estão em propostas que nascem da organização da sociedade civil, criando grupos de trabalho e debate com os setores público e privados, a fim de garantir a democracia nos projetos a serem concebidos no território, além de elencar seus símbolos de representação. Isso se deu em alguns casos, como por exemplo na Vila Andrea Raucci, na Água Rasa, também um patrimônio habitacional-operário que foi preservado como reação à possibilidade de ser derrubado por uma construtora. Este é um exemplo de espaço de relevância arquitetônica e urbanística que foi protegido pelo órgão de patrimônio na Zona Leste.
Vê-se que é preciso trazer a público os conflitos gerados por esses processos, procurando evitar transformações que não simplesmente reproduzam o nosso padrão de desenvolvimento urbano, excludente e predatório. Este caso do Eixo Platina é exemplar de uma troca de população, apagamento da memória e alteração da paisagem, sem nenhum debate com a sociedade, debate democrático e que compreenda representatividade a todos os grupos sociais envolvidos.
* Lucas Chiconi é Urbanista e Arquiteto pelo Centro Universitário FIAM-FAAM. Contribuiu com a última revisão do Plano Diretor e do Zoneamento no período de graduação. Pedro Mendonça é graduando na FAU – USP e pesquisador do LabCidade.
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