Organização: Aluízio Marino e Pedro Mendonça
O LabCidade organizou, entre setembro e outubro de 2020, a oficina “Cartografias e narrativas urbanas na pandemia”. Voltada a estudantes de graduação, a oficina explorou o campo cartográfico contemporâneo, suas potencialidades e tensões na relação com as tecnologias e sistemas de inteligência espacial. A partir de seis encontros formativos, estimulamos a compreensão acerca das narrativas cartográficas a partir de operações básicas e intermediárias de geoprocessamento utilizando o QGIS. O conteúdo compartilhado durante a oficina está disponível em nosso canal do YouTube.
Com uma abordagem prática, os participantes foram estimulados a produzir suas narrativas cartográficas. Para isso, definimos um tema comum a ser abordado, especificamente os “Impactos da pandemia na dimensão urbana”. As narrativas cartográficas produzidas evidenciam a complexidade da pandemia: por um lado, das muitas dinâmicas urbanas que influenciam na disseminação espacial da Covid-19; por outro, dos diversos impactos que a pandemia acarreta, para além das infecções e óbitos. Abaixo estão alguns dos resultados das explorações cartográficas da oficina, apresentadas por seus respectivos autores e autoras.
1. As várias causas da pandemia
A. Hospitalizações de jovens e crianças por SRAG
Por Amanda Vargas das Virgens, graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP.
Dentre as várias especulações do senso comum sobre a pandemia da Covid-19, uma delas seria o argumento de que os jovens são ilesos da forma mais grave da doença. Com vistas a desmistificar essa afirmação, houve a proposta de elaboração de um mapa que ilustrasse como o vírus se desenvolveu entre a faixa etária mais jovem nos municípios da região metropolitana de São Paulo. Para demonstrar esse fenômeno foram preparados dois mapas. Separados em trimestres, os mapas identificam por município o número de internações de jovens e crianças pela Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) – a qual em 2020 no Brasil é causada em primazia pela Covid-19.
Logo no primeiro mapa é visível o alto número de internações, ou seja, os jovens e crianças são vítimas graves da doença em seu princípio. Observa-se ainda que há um grande crescimento no número de internações entre os meses de junho a agosto. Tal comportamento não representa uma maior propensão do vírus pelos mais jovens, mas a continuação de uma tendência que se aplica ao fenômeno da pandemia de forma geral. Diante disso, fica evidente que crianças e jovens (e todos) são potenciais vítimas da forma grave da doença, uma vez que a pandemia se insere em um panorama bastante complexo que não distingue faixa etária e no qual outras variáveis demográficas e urbanísticas merecem análise.
B. Óbitos por Covid-19 e rendimento médio mensal
Por Bianca Gui Silva, graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP.
A proposta inicial para este mapa era analisar se havia alguma relação entre a quantidade de óbitos por Covid-19 com o rendimento média mensal da população. Para analisar isso, foram utilizadas duas bases de dados: o rendimento médio mensal pelos dados do Censo de 2010, organizados pelo Centro de Estudos da Metrópole (FFLCH) e realizado pelo IBGE; além da base de dados do LabCidade sobre óbitos por Covid-19 no município de São Paulo.
Por se tratar de uma análise primária e mais superficial, sem sobreposição de muitas informações, não houveram grandes problemas técnicos para a realização desse mapa. Entretanto, nenhuma narrativa muito clara é passada por meio dele e talvez um dos motivos seja justamente essa observação de poucos fatores. Ou seja, apesar de haver um grande número de óbitos por Covid nas regiões de mais baixa renda, essa situação não é restrita a essas áreas. Assim, é possível inferir que, como muito já se tem discutido, a disseminação do coronavírus e de suas consequências não se dá por apenas um fator; não é apenas a renda que explica a concentração de mortes em algumas áreas da cidade, e outras hipóteses precisam ser analisadas para compreender qual melhor se aplica.
C. Deslocamentos a trabalho e Covid-19
Por Beatriz Silva Colpani, graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP
A superlotação do transporte público paulistano há muito tempo é tema corrente nos noticiários, entretanto, no contexto de pandemia global, o debate sobre mobilidade e segurança se colocou com extremo destaque. Enquanto muitos, possibilitados pelo tipo de trabalho e nível de renda, puderam se isolar com segurança em seus lares, outros, para manter os empregos, precisaram continuar a enfrentar diariamente as ruas.
Através dos dados disponibilizados pelo DATASUS e pela pesquisa de Origem e Destino de São Paulo do ano de 2017, a investigação cartográfica procurou relacionar os deslocamentos motivados por trabalho com o número de hospitalizações por Síndrome respiratória aguda grave (SRAG) em diferentes quinzenas. Optou-se por produzir um gif com objetivo de aproximar a cartografia a uma narrativa temporal. Neste contexto, algumas perguntas foram feitas: Como os casos de Covid-19 se distribuem na metrópole ao longo do tempo? O volume de deslocamentos e as distâncias interferem no número de casos? E o tipo de transporte? Por se tratar de uma investigação, muitas questões não puderam ser totalmente respondidas, mesmo assim, o resultado possibilitou importantes reflexões acerca do tema.
D. Óbitos por Covid-19 e indicadores de saúde da população
Por Luciane Sampaio, designer e graduanda em Saúde Pública pela FSP-USP.
O que define o risco de morrer? Durante a pandemia de Covid-19 muito foi falado sobre mortalidade, medidas foram tomadas visando reduzir sua potencialidade em um futuro próximo, contudo, não é possível contornar em tão pouco tempo iniquidades em saúde construídas ao longo de décadas na vida dos indivíduos. A desigualdade na saúde é tamanha que chega a mudar significativamente a pirâmide etária em diferentes regiões de uma mesma cidade, como é o caso de São Paulo.
Na atual pandemia estatísticas indicaram que morre-se muito mais nas UTIs de hospitais públicos do que na dos privados. O que pode ser, em parte, explicado pela demora maior de acesso aos serviços, por diversos motivos. Mas outro elemento ainda timidamente abordado é o fato de que as pessoas chegam aos serviços de saúde com diferentes construções de saúde. Essa diferença se dá por múltiplos fatores, e foi pensando em como representar as disparidades socioeconômicos que influenciam na saúde das populações que o índice GeoSES1 (índice Socioeconômico do Contexto Geográfico para Estudos em Saúde) foi desenvolvido pela geógrafa Ligia Vizeu Barrozo, utilizando sete dimensões: educação, mobilidade, pobreza, riqueza, renda, segregação e privação de recursos e serviços.
No mapa aqui elaborado optou-se por analisar a relação entre o índice GeoSES com a quantidade total de óbitos por Covid, confirmados e suspeitos (até 08 de outubro de 2020). O que resultou em uma análise simples, mas que indica que há uma relação clara entre melhores condições socioeconômicas, geralmente presentes na região central da cidade, com a menor quantidade de óbitos. O que vai de encontro com a narrativa de uma pesquisa que saiu este ano – que fez uma análise muito mais complexa e espaço-temporal dos dados – na qual os pesquisadores identificaram que o alto nível socioeconômico mostrou proteger as pessoas do risco de morrer por Covid-19. Em outras palavras, poderíamos dizer que piores condições socioeconômicas aumentam o risco de morte. Ou seja, nem tudo se resolve com assistência em saúde, em moldes hospitalocêntricos, como costuma ser a aposta do Estado, modelo que inclusive ajuda a moldar o imaginário social de saúde. Há que se pensar no conceito ampliado de saúde e em medidas de promoção de saúde, que cultivem um projeto de sociedade que tenha como objetivo o cuidado de todas as vidas.
2. As dimensões e consequências da crise
A. Segurança hídrica e hospitalizações por SRAG
Por Alec Akasaka Benedusi, graduando em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP
Evitando uma narrativa unilateral, buscou-se entender como o acesso a serviços básicos, especificamente o abastecimento hídrico, podem agravar a situação da saúde pública, em tempos pandêmicos. Para tal, utilizei-me dos registros de falta d’água levantados pela Coalizão pelo Clima (2020), sobrepostos aos casos de hospitalização por SRAG, recolhidos pelo LabCidade (2020). Complementarmente, dados de segurança hídrica nacionais (Agência Nacional das Águas, 2017) também compuseram o mapa-base.
O processo de desenvolvimento cartográfico se mostrou frutífero, reiterando o papel da aplicação estatística no território mapeado. Ainda que possam configurar um fator de risco, as falhas no provimento de água não são decisivas na localização de casos, de forma que a associação disseminada de precariedade e contágio deve ser continuamente reconsiderada.
B. A expansão de Covid e o emprego doméstico
Por Bruna Machado, graduanda de Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP
Apesar do decreto de quarentena em março de 2020, o emprego doméstico entrou no hall de atividades essenciais e as trabalhadoras domésticas foram impossibilitadas de fazer quarentena. Essas trabalhadoras – sabe-se que a grande maioria do emprego doméstico é realizado por mulheres – muitas vezes fazem parte do grupo de risco, mas devido ao alto grau de informalidade da categoria não podem se dar o privilégio de resguardar sua saúde por temer ter seu salário reduzido ou perder o emprego.
O serviço doméstico é um dos trabalhos que oferece o maior grau de exposição ao trabalhador, uma vez que é realizado na residência do contratante e envolve interação com os moradores (que não podem se retirar devido à quarentena) e contato direto com todos os ambientes e pertences. Além disso, sabe-se que o vírus chegou ao Brasil por meio de pessoas de classe alta que viajaram para o exterior e se disseminou inicialmente pelas classes médias e altas. A hipótese levantada é de que o emprego doméstico tenha contribuído com a chegada do coronavírus nas periferias de São Paulo, tanto pela contaminação direta com familiares quanto no transporte público nos longos trajetos e ida e vinda do trabalho.
O mapeamento realizado busca investigar a relação entre a disseminação espacial da Covid-19 na cidade de São Paulo e os locais de trabalho e residência das empregadas domésticas. Os dados socioeconômicos – local de trabalho e de residência de empregadas domésticas – são de 2010 e foram extraídos do Censo Demográfico do IBGE e do Observatório do Trabalho do DIEESE, respectivamente. Já a expansão da Covid é representada pelos dados de casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) a cada mês e em cada distrito publicados pela Secretaria de Saúde da Cidade de São Paulo. Para essa escala e esse tipo de análise, a divisão escolhida foi da Secretaria Municipal do Planejamento Urbano, que apresenta 9 regiões com distritos de características semelhantes.
C. O aluguel na pandemia e a ameaça do despejo
Por Gabriel Ferreira Soares, graduando em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP
Com o decorrer da pandemia, tornou-se inevitável não voltar-se ao profundo impacto que a mesma trouxera na renda das mais diversas famílias brasileiras. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Covid-19) realizada mensalmente durante a pandemia pelo IBGE, até o mês de Agosto cerca de 800 mil pessoas perderam o emprego na RM de São Paulo, totalizando uma parcela de 14,5% da população na força de trabalho em situação de desocupação. Soma-se a essa a parcela 23,7% de trabalhadores em situação de informalidade, menos protegidos pelas leis trabalhistas. Tal análise agrava-se quando vinculamos tais informações aos resultados expressos pela última Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, o qual aponta que exatos 23% do rendimento mensal de famílias com renda de até 2 salários mínimos são voltados exclusivamente para o pagamento de aluguel. É por conta dessa conjuntura que torna-se pertinente perceber que não é mera coincidência o número crescente de despejos na cidade e, acima disso, que a preocupação com a manutenção dos lares dessas famílias, sobretudo sob o véu de uma pandemia que exige o isolamento social, não é infundada.
Com a perspectiva desse cenário, os mapas apresentados buscam espacializar os domicílios sob maior vulnerabilidade na cidade de São Paulo sob a ótica de suas rendas mensais e das regiões nas quais se concentra o maior número de domicílios alugados. Ao se observar a conclusão deste trabalho, algumas informações podem ser inferidas: tal população não apenas se concentram nas reconhecidas franjas da área urbana, como igualmente possuem residência nas regiões com maior concentração de moradias alugadas – o que trás à luz o fato de que trata-se dos mais pobres a população que concentra a maior despesa com aluguéis. É por conta do quadro apresentado que afirma-se: defender políticas de proteção a inquilinos não apenas se faz pertinente, mas essencial.
D. Registro de feminicídios durante a quarentena de Covid-19 em São Paulo
Por Isadora Viana de Araújo Santos, graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP
Com o isolamento social e a possível potencialização da violência de gênero, uma vez que diversas mulheres passam a conviver por mais tempo com seus agressores, surge a proposta de um mapa para espacializar quais regiões da cidade apresentaram um maior índice desse tipo de violência durante a quarentena, de março a agosto de 2020. Durante o processo, restringiu-se a temática ao feminicídio em virtude da ausência de dados abertos, em uma escala maior do que o estado de São Paulo, referentes aos outros tipos de violência de gênero. Ademais, considerando a privacidade dos dados das vítimas e a disponibilidade das informações, optou-se por mapear o número de casos de acordo com a delegacia na qual o boletim de ocorrência foi registrado.
Assim, a elaboração do mapa consistiu no cruzamento entre os dados referentes aos registros formais de feminicídio durante a quarentena – disponibilizados pelo portal da transparência da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo – e o georreferenciamento dos equipamentos de segurança pública responsáveis pelos registros indicados – disponível no site Geosampa.
Ao analisar os resultados, nota-se que a quantidade de casos registrados é baixa e dispersa pela capital. No entanto, é importante salientar que as informações obtidas por meio desse mapeamento são parciais, dado que as circunstâncias de denúncia de casos de violência de gênero, incluindo feminicídio, tornam-se ainda mais complexas e difíceis em isolamento social, onde muitas vezes o denunciante não possui condições de se deslocar até um posto policial ou até mesmo privacidade em sua residência para realizar a denúncia eletrônica.
E. Raça e Covid: Concentração de hospitalizações por Covid-19 e pessoas residentes pretas na Região Metropolitana de São Paulo
Por Julia do Nascimento de Sá, graduanda em Gestão Ambiental pela EACH-USP e pesquisadora de iniciação científica no ObsErvatório de Remoções e Projeto de Conflitos Fundiários Urbanos do Instituto das Cidades – Unifesp.
Este mapa não tem como objetivo fomentar a estigmatização territorial, principalmente dos territórios populares. Em oposto disso, busca contribuir com uma análise espacial e reflexões sobre como os impactos da pandemia de Covid-19 perpassam os corpos, sobretudo os corpos negros, de maneira assimétrica, isto é, desigualmente.
Para a elaboração deste mapa, utilizou-se os dados abertos produzidos e compilados pelo LabCidade, especificamente os dados referentes às Hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) do DataSUS, inclusive Covid-19, na Região Metropolitana de São Paulo, de 23/02 a 18/05/2020, georreferenciadas por CEP. Com isso, por meio da variável “HC_TOT” (Hospitalizações totais por Covid-19 no período de 23/02 a 18/05), foi gerado um heatmaps de estimativa de densidade kernel, também conhecido como mapa de calor.
A densidade populacional das pessoas residentes pretas, foi calculada a partir da base de dados de Setores Censitários 2010, que são unidades territoriais básicas dos Censos Demográficos do IBGE. Contudo, o download dos arquivos dos Setores Censitários de São Paulo foi realizado diretamente da base de dados disponibilizadas pelo Centro de Estudos a Metrópole – CEM.
Entretanto, uma outra tentativa para coletar os dados georreferenciados sobre raça/cor dos casos de Covid-19, foi a partir dos dados relativos ao coronavírus do portal da Seade. No entanto, ao analisar os dados coletados inicialmente, observou-se que, em muitos casos, a informação sobre raça/cor não era respondida. Em vista desta lacuna existentes no conjunto de informações, foi escolhido utilizar os dados dos Setores Censitários de 2010 do IBGE e sua variável acerca das pessoas residentes e cor/raça preta para realizar o cruzamento com as hospitalizações por Covid-19.
Considerando o produto cartográfico exposto, é possível visualizar as hospitalizações totais por Covid-19 mais concentradas sobretudo na região Leste, Centro e alguns locais do Norte no município de São Paulo. Tais regiões, aparentemente, estão associadas, em alguns pontos, as mesmas concentrações das pessoas residentes e cor/raça preta. Todavia, é apropriado destacar que, os dados referentes à concentração das pessoas residentes pretas são relativas ao ano de 2010 e, por esse motivo, não poderíamos afirmar que o cenário de hoje seria o mesmo, assim como expressaria a mesma leitura espacial.
Em suma, embora raça/cor não não seja o único fator importante para dizer sobre os casos de coronavírus e seus impactos, ainda sim é um indicador relevante a ser analisado perante a situação pandêmica atual imposta pela Covid-19. Não obstante, mostra-se um fator imprescindível para proporcionar reflexões sobre as desigualdades estruturais existentes, no sentido de lutarmos por cidades e sociedades mais justas, que possam garantir justiça territorial a todes.
Comments are closed for this post.