Publicado originalmente em 12 de novembro de 2024.

Por Renato Abramowicz Santos, Débora Ungaretti, Sirlene Gama Saad 

O projeto de construção de um Pólo Administrativo em Campos Elíseos se implementado, efetivará mais um episódio de deslocamento forçado de centenas de pessoas e famílias que moram hoje no bairro, muitas das quais já sofreram sucessivas remoções sem oferta de atendimento habitacional definitivo efetivo. Esta transitoriedade é planejada e executada pelo Estado. É o caso de Sirlene, conhecida como Nega, que corre o risco de ser removida pela terceira vez pela CDHU do governo do Estado. Baiana e moradora do centro de São Paulo há 32 anos, Nega foi removida em 2013, depois em 2018, sem atendimento, e agora está novamente ameaçada. Como veremos a seguir, a trajetória de transitoriedade habitacional de Nega é representativa da violência dos sucessivos projetos de transformação do bairro de Campos Elíseos. Expõe o risco que as pessoas atualmente moradoras dos quarteirões que serão demolidos pelo projeto correm de serem expulsas sem receber atendimento adequado, muitas delas tendo que passar por isso novamente.

No ano de 2013, ocorreram remoções seguidas de demolição de quase um quarteirão inteiro, no bairro de Campos Elíseos, centro de São Paulo, na região conhecida como “cracolândia”, compondo mais um momento dentro de uma série histórica de grandes intervenções na região, que produzem deslocamentos forçados, violações de direitos e destruição das estruturas materiais, sociais e subjetivas deste território popular em disputa da cidade. As remoções e demolições aconteceram na época no popularmente conhecido “quadrilátero Helvétia”, localizado na quadra 50, numerada assim de acordo com a numeração fiscal da prefeitura. Um pouco antes, em 2010, ocorreu a demolição do quarteirão em que ficava o centro atacadista Fashion Center Luz, construído na quadra 49 (vizinha a 50), depois da desativação da antiga rodoviária da cidade, e da previsão de demolição ainda de outro quarteirão, a quadra 48, para implementação do Complexo Cultural Nova Luz. Apesar das demolições e remoções serem efetivadas, o Complexo Cultural não saiu do papel, o projeto foi abandonado depois de mobilizações de movimentos populares e de questionamentos na justiça. A quadra 48 acabou não sendo demolida, mas atualmente, em 2024, ela está ameaçada por outro projeto.

Com a demolição da quadra 50, em 2013, dezenas de pessoas foram removidas de um quarteirão que abrigava pensões, ocupações e outras formas de moradia popular, como historicamente os quarteirões nessa região da cidade se caracterizam. Nenhum atendimento adequado foi realizado, apesar das pessoas removidas terem ganhado um termo fornecido pela CDHU, companhia do governo do estado, garantindo atendimento definitivo futuro, o que não aconteceu. Algumas pessoas ganharam o Auxílio Aluguel, um atendimento provisório, que depois foi cortado, sem nenhuma oferta de alternativa ou algum horizonte de solução habitacional definitiva.

A demolição do quarteirão, com o tempo, deu espaço para a realização de um grande projeto de reestruturação do território: a implementação de empreendimentos viabilizados em Parcerias Público-Privadas. Na quadra 50, iniciou-se a construção da PPP Habitacional Casa Paulista, que depois se ampliaria, em uma parceria com a prefeitura municipal, para mais dois quarteirões vizinhos, a partir de 2017. A população moradora e os comerciantes desses dois quarteirões também seriam removidos, com um deles sendo, praticamente, inteiro demolido para construção de mais torres habitacionais, e o outro permanecendo vazio, com seus imóveis concretados, em ruínas.

Entre as pessoas removidas da quadra 50, em 2013, estava Sirlene, Nega, que na época morava em uma ocupação com outras pessoas. Com a remoção, as pessoas que moravam na ocupação ganharam um termo de promessa de atendimento habitacional da CDHU e também o atendimento provisório do Auxílio Aluguel. Com ele, após a remoção, Nega se mudou para um apartamento próximo, na rua Guaianases. Junto de outras pessoas, abriu um pequeno comércio em um quarteirão vizinho: o comércio ficava na quadra 36, de acordo com a numeração fiscal da prefeitura. Um pouco mais de um ano após a remoção em 2013, seu auxílio aluguel foi cortado. Em 2018, foi a vez da quadra 36 ser atingida por um processo de remoção e demolição por conta da construção do hospital Pérola Byington em mais um projeto de PPP que atingia a região, este capitaneado pela secretaria de saúde do governo do estado.

Na remoção de 2018 da quadra 36, a CDHU entregou, mais uma vez, para as pessoas que conseguiram ser cadastradas um novo termo de promessa de atendimento definitivo habitacional. Para algumas pessoas, que após a remoção da quadra 50 foram para a quadra 36, era o segundo documento que recebiam com uma promessa, que não chegou perto de ser atendida na primeira vez. Nega, apesar de ter parte de sua vida estabelecida na quadra 36, sua fonte de renda no pequeno comércio, que às vezes também servia de moradia, não ganhou o termo da CDHU: a promessa de atendimento para quem estava sendo removido era apenas para moradores, os muitos comerciantes do quarteirão não teriam direito nada – principalmente, porque muitos não eram proprietários do imóvel em que funcionava o comércio.

Em 2024, Nega está ameaçada de remoção novamente. Por um terceiro projeto do governo do Estado, mais uma PPP, agora a PPP Campos Elíseos / Pólo Administrativo de transferência da sede do governo do estado. Em 2023, o aluguel de Nega no apartamento da rua Guaianases, em frente à praça Princesa Isabel, foi reajustado para R$ 1500, ficando muito caro e impossibilitando ela de se manter morando. Então, ela teve que se mudar então para uma pensão na rua Helvétia. Foi pelos jornais que descobriram que a pensão estava dentro do perímetro da PPP. E, pela terceira vez, Nega está ameaçada e tendo que lidar com a CDHU.

A CDHU iniciou um processo de contato com pessoas e famílias moradoras no perímetro do projeto para congelamento da área, saber quantas pessoas são moradoras, e para dimensionar melhor os números da remoção, entregando para quem atendeu um termo (mais um!) bem vago – dessa vez, não há nenhuma promessa de atendimento. As pessoas moradoras na pensão da Helvetia, assim como de muitos outros lugares que estão ameaçados por estarem dentro do perímetro, não foram atendidas pela CDHU. Por não terem recebido o termo, mais de 120 pessoas no mutirão realizado pela Defensoria Pública para tentar registrar as pessoas que estão ameaçadas pelo projeto de transferência da sede e que não foram recebidas pela CDHU, por negligência ou omissão. Nega está entre elas.

Também em 2024, Nega recebeu uma carta de convocação afirmando que estava habilitada para as moradias da PPP – isso é, estava habilitada para tentar um financiamento de compra de apartamento nas torres habitacionais que foram construídas na área, após a remoção dos dois quarteirões. Como “queria pagar para poder morar, para que fosse meu”, correu atrás de toda a documentação exigida, extensa, gastando bastante dinheiro para tirar todos os documentos, enviá-los e deixar tudo certo. Mais uma esperança frustrada: sem saber as razões exatas, ela recebeu sem mais a informação da concessionária privada de que estava desclassificada do processo. Diferentemente de muitas outras pessoas desclassificadas, Nega estava com o nome “limpo” – “porque eu sempre preservei meu nome, que é a única coisa que a gente tem”. Acompanhamos muitos outros casos de pessoas que passaram pela mesma situação – de criação de expectativa à decepção, passando pelo descaso e indignação de nenhuma justificativa e esclarecimento decentes serem dados. Sendo que grande parte se endividou para entrar e participar do processo de análise, para acabar sendo desclassificadas mesmo assim, sem explicação nem recurso. Mais uma possibilidade de atendimento habitacional que passou diante de Nega, mas que lhe foi recusada.

Da primeira vez, em 2013, Nega e outras pessoas removidas da quadra 50 ganharam da CDHU um papel como garantia dizendo que receberiam um atendimento habitacional definitivo – o que não aconteceu. Da segunda, em 2018, nem isso recebeu e perdeu seu comércio, sua fonte de renda e nenhuma indenização. Agora, em 2024, está mais uma vez ameaçada de remoção, e está tentando obter o termo vago dado pela CDHU para ter alguma garantia de atendimento, caso seja removida de novo. Por conta dessa nova ameaça, ela foi até a CDHU explicar sua situação, sua trajetória de sucessivas remoções e tentar garantir o respeito de seus direitos, sistematicamente violados: contou desde sua remoção da quadra 50, em 2013, do termo prometendo um atendimento habitacional, até sua situação de agora, quando nem isso tinham lhe dado. A funcionária respondeu que o documento de 2013 foi fornecido por uma empresa terceirizada, motivo pelo qual a CDHU não poderia ser responsabilizada. Quando questionada sobre o corte do seu auxílio aluguel um ano e meio depois, ou sobre a nova ameaça que está enfrentando agora, a resposta foi de que não tinha nada que pudesse ser feito – a sugestão dada foi para Nega “entrar na Justiça”.

Faz mais de dez anos que Nega está sendo removida e tendo a vida completamente desestruturada por projetos e intervenções do governo do estado. Desde que seu comércio foi fechado, sem receber nenhuma indenização, e após a sucessão de remoções que sofreu, Nega passou a trabalhar como diarista, emprego que tem atualmente, na casa de algumas famílias na zona sul de São Paulo. As intervenções, que se sucedem e atingem essa região central da cidade, há décadas, movimentaram e movimentam imensas quantias de recursos. O fato de uma mulher que mora e trabalha há mais de 30 anos no bairro ter sido removida tantas vezes e estar ameaçada mais uma vez, sem conseguir uma moradia digna e estável, junto de muitas outras pessoas que estão em situações parecidas, demonstra que o objetivo das políticas públicas e desses grandes projetos urbanísticos, inclusive os habitacionais, não é atender as pessoas que precisam, como anunciam. As trajetórias urbanas e de vida de pessoas como Nega revelam que a transitoriedade e insegurança são planejadas – são efeitos de projetos que buscam, na realidade, a transformação e reestruturação do território a partir da expulsão das pessoas que o construíram.

 

(*) Renato Abramowicz Santos é doutorando da FFCLCH – USP e pesquisador no LabCidade; Débora Ungaretti é doutora FAU-USP e pesquisadora no LabCidade; Sirlene Gama Saad é ex-comerciante e moradora do Centro de São Paulo há mais de 30 anos.

 

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