Por Julia Azevedo Moretti*
28 de outubro de 2014, data limite para a desocupação voluntária de prédio no nº 2617 da Rua Teodoro Sampaio. Porém, as quase cem famílias que ali residem desde 2010 permanecem no local: sem atendimento habitacional, aguardam a chegada da polícia, quando a remoção forçada (e possivelmente o confronto) será inevitável.
O prédio, construído no início da década de 1970 nas imediações do Largo da Batata, estava abandonado há anos, acumulando dívidas de IPTU enquanto os muitos herdeiros aguardavam o término de ações de inventário. No meio do caminho, uma Operação Urbana: primeiro as obras viárias, depois a revitalização do Largo da Batata, por fim, a abertura da estação Faria Lima do metrô. Até então abandonado, o prédio recuperou valor imobiliário e ações de reintegração de posse contra os moradores multiplicaram-se.
O que aconteceu no edifício da Teodoro Sampaio repete-se diariamente em várias outras regiões da cidade. As defesas judiciais de casos como este têm sido infrutíferas perante um Poder Judiciário conservador, que preza mais a propriedade sem função social do que o uso para moradia de famílias de baixa renda.
Considerando tal contexto, um documento subscrito por movimentos sociais, com apoio do Escritório Modelo (PUC/SP) e do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, foi entregue ao Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmando que ações de reintegração de posse são expressão visível de conflitos fundiários urbanos, por isso não podem ser tratadas apenas como uma disputa entre proprietários e ocupantes. O documento também alerta para o fato de que outras ações judiciais (despejos, ações civis públicas, desapropriações) expressam conflitos fundiários e ameaçam a segurança da posse e, consequentemente, o direito à moradia de milhares de pessoas. Além disso, nesse documento foram listadas as comunidades que já têm ordem de remoção expedida (inclusive a da Teodoro Sampaio) e foram solicitadas providências da Justiça Paulista, tais como:
(I) Evitar a concessão de liminares antes de constatar a condição dos imóveis e das famílias (mandado de constatação): antes de conceder uma medida de urgência apenas a partir do relato do autor da ação, é necessário verificar a condição socioeconômica das famílias que poderão ser sujeitadas a uma remoção forçada, aferir sua vulnerabilidade social, contrapondo essa necessidade com a condição do imóvel, ou seja, verificando se o mesmo estava abandonado, se descumpria a função social da propriedade e da cidade, se estava retido apenas com finalidade especulativa, enfim, sem uso socialmente útil.
(II) Assegurar envolvimento da Administração Pública nos processos judiciais para resguardar direitos de grupos vulneráveis: na medida em que esses processos judiciais podem levar a remoções forçadas e considerando o dever da Administração Pública de promover uma solução habitacional e de desenvolvimento urbano que vise à melhoria das condições de vida, à redução da pobreza e das desigualdades e à afirmação da dignidade, então o problema não se resolve no conflito entre moradores e proprietários, não se encarra com o julgamento de determinado processo.
(III) Que não seja a Polícia Militar a negociar as condições das remoções: o Juiz que preside a causa deve mediar o conflito até o fim, pautando-se pela observância dos direitos humanos, pela proteção de grupos vulneráveis, pelo máximo esforço para o diálogo amplo entre as partes e também a Administração Pública. Aliás, o uso de força policial deve ser excepcional, havendo possibilidade de recusar o uso da força quando isso puder “resultar conflito social muito maior que o suposto prejuízo do particular”, conforme afirmou o Superior Tribunal de Justiça (STJ, IF 111 / PR, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 01/07/2014).
(IV) Que o Tribunal de Justiça mantenha um diálogo com os movimentos sociais: os movimentos organizados cumprem um papel importante na promoção da reforma urbana e historicamente estão associados a reformas legislativas que promoveram a política urbana inclusiva, como a aspiração popular que pautou a inclusão dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Nesse sentido, em um momento em que a Justiça Paulista se propõe a criar Varas Especializadas de Conflitos Fundiários, entende-se que esses movimentos têm colaborações importantes a trazer para a discussão.
Concretamente, o Tribunal de Justiça apenas começou as discussões para a criação de Varas Especializadas, criou um Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) e expediu uma diretriz para que os juízes tentem realizar acordos. Os movimentos e as assessorias jurídicas populares não participam de nenhuma dessas iniciativas e para a composição do Gaorp sequer a Defensoria Pública e o Ministério Público foram convidados. Assim, mascaram-se os sintomas, mas o cancro continua lá: em 2014 praticamente dobraram as ordens de reintegração de posse com solicitação de força policial.
Com relação ao exemplo da Teodoro Sampaio que citamos no início, havia potencial para, extrajudicialmente, fazer deste um caso emblemático no enfrentamento de conflitos fundiários, na provisão de habitação social em áreas centrais e na realização de operações urbanas de forma socialmente inclusiva: isso porque o prédio da Rua Teodoro Sampaio foi gravado como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS 3- 372) no novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo (Lei 16.050/14) e está inserido no perímetro da Operação Urbana Faria Lima.Seriam facilitadores também a comprovação da situação de abandono em processos judiciais (depoimento de proprietários afirmando que o prédio estava fechado há quase uma década) e um compromisso de compra e venda que balizava o valor de mercado na faixa de R$ 5 milhões (valor bem abaixo das recentes desapropriações de prédios em áreas centrais e condizente com a enorme arrecadação da Operação Urbana Faria Lima que, segundo dados da SP Urbanismo, tem disponível R$ 470 milhões em caixa).
Estudos urbanísticos preliminares realizados pelo Escritório Modelo (PUC/SP) mostram um bom potencial de reforma do prédio, cuja planta original já tinha unidades residenciais. Mas a Administração Pública se limitou a arrolar as famílias e inscrevê-las na COHAB. Uma chance perdida de transformar em realidade os princípios e valores que norteiam a política urbana descrita no Plano Diretor.
*Julia Azevedo Moretti é advogada, mestre em Desenvolvimento Sustentável pela University College London, mestranda em Direito Urbanístico pela PUC-SP e gerente-jurídica da Área de Projetos Sociais do Escritório Modelo “Dom Paulo Evaristo Arns” na mesma instituição.
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