Por Renato Abramowicz Santos
Este texto é uma versão simplificada e editada do relatório para FAPESP referente à bolsa de pesquisa de estágio no exterior (BEPE) realizada na UCLA (University of California – Los Angeles), nos Estados Unidos, onde fui recebido e acolhido pelo UCLA Luskin Institute on Inequality and Democracy, sob supervisão da professora Ananya Roy (número do processo Fapesp: 2022/06583-7).
Sob um céu azul forte, que se estende abarcando de forma ampla o horizonte, iluminado pelo sol sempre quente durante o dia – é bom não esquecer que estamos no deserto –, está a cidade de Los Angeles a perder de vista. Atravessada por imensas vias expressas (suas highways e freeways) que recortam suas muitas e distintas regiões, espraia-se, de forma dispersa, uma cidade feita para se circular com carros – suas dimensões, mobilidade e circuitos são para automóveis, não têm escala humana. É fragmentada em bairros, condados e outras pequenas cidades que começam e terminam sem que muitos saibam delimitar e dizer exatamente onde, inclusive os próprios angelinos.
Difícil conceber um mapa mental que dê conta de abarcar a cidade toda ou mesmo que dê dimensão de algum conjunto com coesão e consonância. Uma cidade espalhada, baixa (poucos prédios altos, com exceção de sua área central), rodeada por uma natureza poderosa feita de montanhas, rochas, praias, em meio ao calor e uma luz intensa, dando a impressão de que esse aglomerado urbano denso parece uma miragem distópica no meio do deserto.
Quando fiz o projeto para a bolsa de pesquisa em Los Angeles (LA), propondo investigar e acompanhar os processos e sujeitos/as que sofrem e enfrentam ameaças de remoção, não sabia que sua face e realidade mais visíveis e imediatas materializam-se na numerosa população em situação de rua, que ocupa e vive em ruas de diferentes áreas da cidade. Radicalmente oposta da imagem global, estelar e reluzente de Hollywood, Bel Air, Beverly Hills e de outras regiões que os produtos culturais fazem conhecer e imaginar, existe, convivendo ao lado dessas mesmas calçadas da fama, uma realidade urbana e social outra, composta por milhares de homens e mulheres que fazem de seus carros (aqueles que têm um) e de suas barracas de tenda suas moradas nos amplos e longos bulevares da cidade, pelos quais percorrem, peregrinam e tentam permanecer.
Na relação e trocas com os coletivos e movimentos de LA que lutam pelo direito à moradia (alguns reivindicam sua luta como spatial justice) e contra diversas formas de violência que atingem corpos e populações vulneráveis, minoritários/as e marginalizados de alguma forma da ordem (ou ideal de ordem) vigente, entrei em contato com estratégias de resistência, organização e mobilização de alguns grupos.
Como, por exemplo, LATU (Los Angeles Tenant Union), uma espécie de sindicato de inquilinos, talvez o movimento social ligado à habitação mais amplo e consolidado que conheci durante minha estadia; assim como UTACH (Unhoused Tenants Against Carceral Housing, em inglês, cuja sonoridade da sigla soa/sugere um “ataque”, ou melhor dizendo, um contra-ataque), formado e liderado por pessoas desabrigadas (que estão ou em algum momento viveram essa condição), que além de propor políticas que promovam a autonomia, segurança e respeito de formas comunitárias e autogestionárias de moradia, buscam também combater e denunciar as violações de direito e as condições carcerárias que se espalham pelo tecido social estadunidense no controle, gestão e repressão de corpos e vidas – não por acaso, esse espraiamento e reprodução de lógicas punitivas que tem matriz na maquinaria e dispositivos prisionais é classificado por muitos como um continuum carcerário.
Outra marca corrente em relação aos coletivos e espaços progressistas que conheci, circulei e me chamou a atenção foi em relação ao fato da crítica colonial estar muito fundamentada e presente, como um chão onde se pisa e de onde se parte. As discussões em torno de questões e reivindicações do debate/perspectiva racial e feminista eu, de algum modo, acompanhava do Brasil e tinha alguma noção (não exata porque também se mostraram mais profundas, consolidadas e disseminadas do que imaginava), porém a revisão e reparação críticas contra a história colonial formalizada nos registros “oficiais” dos Estados Unidos, da Califórnia, de Los Angeles e até mesmo da UCLA me surpreenderam.
Eu conheci e aprendi que esses territórios, pelos quais estava circulando e vivendo, pertenciam a outros povos (no caso de Los Angeles, os Tongva), culturas e tradições que ao longo dos tempos foram sistematicamente dizimados, mas que com esforços e distintos empreendimentos (inclusive acadêmicos) permanecem e resistem – “This is Tongva Land” ou “California é terra indígena” são alguns exemplos que me deparei, assim como as referências e saudações a esses antepassados e seus descendentes são feitas em publicações e atividades realizadas pelo Instituto que me recebeu e também por ativistas e grupos acadêmicos progressistas de LA.
Segundo os posicionamentos em uma perspectiva crítica do longo e brutal processo de colonização e despossessão dos povos originários, existe uma linha de continuidade imediata e evidente que liga a colonização e subjugação de corpos, por um lado, a de recursos naturais, por outro. Ao longo da colonização, ambos processos são faces da mesma moeda, fizeram parte da mesma lógica e empreendimento: a dominação, domesticação e exploração de forças “selvagens” [wilderness], como lemos no texto de Charles Sepulveda, “Our Sacred Waters: Theorizing Kuuyam as Decolonial Possibility”.
E por meio da continuidade dos processos de exploração, se perpetuam e se atualizam não só a mentalidade, mas a violência colonial na contemporaneidade: essa continuação e reposição coloniais evidenciam e marcam o pós-colonialismo como “a vida após a morte” [afterlife] do colonialismo, segundo Roy, no sentido de que sua existência, heranças e efeitos permanecem vivos e (re)atualizados. Na perspectiva de Sepulveda, os enfrentamentos e resistências continuam, mostrando inclusive que as lutas por libertação de povos, culturas e corpos devem se fazer – só faz sentido de se fazer – aliadas à defesa dos recursos naturais e dos territórios: se o processo de dominação é o mesmo, as lutas por libertação também são e devem ser.
Ao longo de todas essas trocas e convivências, outra reivindicação de alguns desses coletivos que entrei em contato, me deixou, no início, desconcertado e confuso: era pelo “direito a assentamentos informais” [the right to informal settlements]. Não conseguia entender essa reivindicação quando muito dos esforços de grupos, ocupações de moradia e movimentos sociais no Brasil são por formalização e institucionalização. Não compreendi essa demanda porque o paradigma que rege os Estados Unidos é outro, diferente do nosso; segundo Ananya Roy, o paradigma vigente lá é o da “cidadania proprietária” (o texto de referência é “Paradigms of propertied citizenship”, de 2003).
Para conseguir descrever e pensar sobre os diferentes paradigmas operantes em São Paulo/Brasil e Los Angeles/EUA, o exercício proposto aqui é seguindo orientação metodológica e epistemológica dada também por Roy no mesmo texto, que ela nomeia de “transnacionalismo”. Usado como uma “técnica interrogativa” de análise, não se trata de metodologias comparativas no sentido de olhar e opor semelhanças e diferenças de dois contextos exclusivos diferentes, mas de “usar um lugar para pôr questões para outro”: fazer perguntas do Sul ao Norte Global. Tomando-se o cuidado, ela alerta, de não se estabelecer nessa dinâmica uma “celebração utópica” das periferias do capitalismo – em outros termos, não romantizar a pobreza.
Por mais que esses paradigmas funcionem como modelos, eles organizam também sistemas de valores e normas, que se aplicam e se estendem na vida prática cotidiana, e que ajudam a entender e explicar os modos pelos quais a cidadania – e a relação entre indivíduos e Estado – se constitui. Segundo a análise de Roy, nos EUA o paradigma que vigora é o da “cidadania proprietária” porque é em torno da propriedade (e da posse), do ser proprietário ou não, que se estabelece, se organiza e que o acesso aos direitos é garantido – ou não.
Segundo ela, “o paradigma estadunidense da cidadania proprietária faz poucas concessões aos pobres, transformando os ‘sem-propriedade’ em ‘sem-tetos’. Em contraste, o paradigma do Terceiro Mundo rejeita a marginalidade do pobre, dando legitimidade às reivindicações de moradia dos ‘sem-propriedade’” (p.473, tradução livre do texto).
E essas diferenças evidentemente têm efeitos sociais e políticos distintos: se no paradigma vigente no Sul Global, existe reconhecimento e espaço para as reivindicações por moradia que os diversos arranjos habitacionais informais vão se conformando para tentar atender e realizar, não necessariamente que essas diversas demandas e arranjos informais vão se constituir em direitos plenos e efetivos – uma ocupação de moradia pode passar anos na expectativa por um direito de propriedade pleno.
E, se por um lado, há espaço para reconhecimento de demandas de direitos e para diversos arranjos habitacionais, por outro lado, essa expectativa e espera viram um modo de existência e de funcionamento político: possibilita e permite paralisia, acomodação, e, de certo modo, algum conservadorismo; condiciona e aciona dependência, espaço para negociações e barganhas, e, portanto, abre espaço para “dinâmicas populistas” e clientelismo político; e, no limite, para utilizar outro texto e análise de Roy, constituem-se em um modo de governo, a “governamentalidade cívica” de populações e territórios que se forjam nos des/acordos e des/acertos dos variados espectros da in/formalidade, produzidos para serem governáveis, e dos esforços para contornar e escapar desses dispositivos de gestão e controle.
Já no “paradigma da cidadania proprietária” estadunidense, o preceito que rege o acesso à moradia estabelece que qualquer abrigo deve ser seguro e “limpo” [sanitary], o que inviabiliza e elimina a opção e vulnerabilidades atreladas à moradia informal, ainda segundo a mesma autora. No parâmetro estadounidense, não ser proprietário significa uma exclusão de direitos que pode resultar na falta de moradia, fazendo com que tenham que morar em automóveis ou em barracas na rua.
Isso não significa, por um lado, que não existam opções de moradia precárias e de alta densidade habitacional em uma mesma residência nos EUA, por exemplo; nem que, por outro lado, a força normativa (e das valorações, inclusive morais) em torno da limpeza [sanitary] e da segurança não sejam atuantes no ideário brasileiro, ou mesmo que a importância da propriedade privada (inclusive enquanto desejo e no imaginário sociais) não seja igualmente operante e determinante no Brasil.
Esses elementos também são estruturantes não só da constituição do planejamento urbano hegemônico nas cidades brasileiras, como fazem parte da própria lógica de produção do espaço promovida e conduzida pelo Estado. É constituinte tanto de sua ação discricionária em determinar os territórios que estão dentro (e fora) da ordem, suas margens, e as (i)legalidades e (i)legitimidades de espaços e práticas, quanto na distinção entre o que pode permanecer, o que deve ser eliminado, e também do que fica em suspensão e indeterminação. Isso tudo é recurso e fonte de poder do Estado, como nos ensinam Roy, em outro texto, e também Raquel Rolnik.
A partir de minha pesquisa em São Paulo e diante da realidade que me deparei em Los Angeles e das discussões em que participei, foi possível perceber e conceber a informalidade então como uma espécie de “colchão de proteção”, ao possibilitar e produzir diferentes e diversos arranjos de formas de morar. Mesmo sem ser proprietário, no Sul Global, há espaço e legitimidade consolidados para se reivindicar por direitos. Nesse sentido, ficou possível entender melhor o porquê de alguns coletivos em Los Angeles estarem reivindicando “o direito a assentamentos informais” para, dessa forma, ampliar o leque de opções de moradias para as pessoas não-proprietárias.
E também, como foi apresentado por Roy em uma das aulas de um curso colaborativo e comunitário ministrado na UCLA com pós-graduandos, pesquisadores, ativistas, lideranças de movimentos sociais e unhoused people, que tive a possibilidade de acompanhar estando lá, reivindicar o “direito a assentamentos informais” é também uma possibilidade em favor da autonomia e autogestão de comunidades. É uma forma de garantir serviços a esses assentamentos, e também direitos e a proteção da lei a essas formas de morar, ao serem assim reconhecidas. Portanto, um processo que busca direitos, proteção e reconhecimento.
Um outro ponto ligado a essas questões, que não terei espaço de desenvolver e aprofundar aqui, é que os deslocamentos produzidos por processos de despossessão e outras violências possibilitam e colocam em circulação, contato e conexão (e atrito) diferentes territórios, grupos sociais e repertórios, que nessa “mistura” vão produzindo outros e novos (espaços, circuitos, grupos, repertórios), pelo menos como observado na cidade de São Paulo.
A questão é quais movimentações e circuitos são constituídos e possibilitados a partir da despossessão e deslocamentos em uma sociedade em que a informalidade não é um paradigma (e, por extensão, a institucionalidade e institucionalização não são recurso e horizonte)? Que circulação, contato (e eventuais choques), novos arranjos e agenciamentos o paradigma da cidadania proprietária produz?
Ainda há um último elemento em relação às estratégias políticas que gostaria de trazer. É referente a práticas que me deparei lá e também fonte de algumas discussões em torno do que coletivos ativistas realizam e denominam de mutual aid. A ação consiste em uma série de táticas e práticas que, segundo David Spade em “Solidarity Not Charity – Mutual Aid for Mobilization and Survival” (2020), buscam: ser democráticas e horizontais; prover alívio material a populações impactadas e de alguma forma vulneráveis; desmantelar sistemas e dinâmicas de opressão; mobilizar pessoas, principalmente as mais afetadas, em lutas presentes e futuras; e mais do que reformar, atingir e transformar as causas e condições de situações prejudiciais.
Ao longo dos meses da minha estada em Los Angeles, acompanhei várias atividades de mutual aid em dias variados e em distintos territórios e espaços da cidade, em que eram feitas a distribuição de roupas, alimentos, instrumentos de redução de danos, informação, meditação, arte e cultura. Um dos objetivos é de que nesse processo e prática estabeleçam-se contatos, trocas, e que se possa produzir distintos e variados circuitos e relações entre pessoas, territórios e afetos.
De um modo mais geral e amplo, não ligado apenas às atividades de mutual aid, mas que vale a pena o registro pela presença, recorrência e contundência nos discursos e em diversas atividades, que é o objetivo político (e o esforço em torno disso) de se fazer e construir comunidades. Vivenciar e participar da construção de comunidades – feitas a partir da potência da diversidade de seus membros e de suas distintas origens, experiências e repertórios – é uma lição valiosa que aprendi e carrego comigo dessa viagem.
O texto de David Spade, lido como bibliografia do curso colaborativo e comunitário que tivemos na UCLA, me ajudou a entender melhor e mais profundamente os preceitos organizacionais e políticos que sustentam, para coletivos de LA, a prática da mutual aid e que, na visão do autor, são diferentes da caridade. Também a explicação de que seu uso é uma prática comum e frequente em situações e eventos pós-traumáticos, como desastres naturais, me ajudou a enxergar e compreender melhor aquilo que estava vendo. Pude entendê-la melhor, fazendo ainda mais sentido a explicação de que essa tecnologia busca forjar e estabelecer “infraestruturas alternativas”. Ficava assim mais concreta e inteligível a atuação de ativistas e coletivos se organizando para criar e desenvolver recursos e possibilidades negadas ou não existentes por parte do Estado.
A partir dessas informações e conhecimentos, algumas elaborações e questões foram surgindo. A dúvida se mutual aid seria a prática política de indivíduos tentando se organizar em uma sociedade sem Estado, ou se seria a ação política possível no mundo do pós-colapso/pós-desastre, traz a constatação que a construção de “infraestruturas alternativas” tem importância em ambos os cenários, fazendo com que outra pergunta surja: sociedade sem Estado e mundo pós-colapso são duas faces da mesma moeda ou estágios diferentes de um processo em curso?
Nesse sentido, a prática e estratégia política da mutual aid têm lições que podem ser aprendidas como uma espécie de antevisão e antecipação de se viver e ter que sobreviver “no fim” – creio que por conta disso senti ares distópicos na vida urbana no mundo da mutual aid em Los Angeles. Viver e sobreviver “no fim” ecoa também o trabalho de Anna Tsing (2014) – “Ruínas agora são os nossos jardins. Nossa subsistência é provida por paisagens degradadas, arruinadas”. Sendo que o mundo já acabou – e recomeçou – outras vezes para muitos povos e culturas, ao longo da história.
Talvez “sociedade sem Estado” não seja o termo preciso. O que estou me referindo e tentando descrever é uma sociedade em que as instituições, serviços e recursos públicos para a vasta maioria da população são escassos, ausentes ou se apresentam de forma mediada, seja pela violência, seja por alguma espécie de capital. O termo mais correto talvez seja desinstitucionalizado, no sentido de falta de mediações e recursos institucionais. Mesmo que quando as instituições se fazem presente, em grande parte das vezes, sua presença reproduz e repõe dinâmicas punitivas e de controle, as quais têm a prisão como uma de suas matrizes, como apontado pelo coletivo UTACH ou na concepção do continuum carcerário, como já mencionados.
Não é possível falar em falta de Estado nos EUA porque a face armada (e brutal) desse Estado está muito presente e organizada nas fronteiras, aeroportos, e nas polícias e políticas no cotidiano contra populações marginalizadas, vulneráveis e não-brancas. Essas políticas de controle, repressão e policiamento se constituem de forma articuladas e sobrepostas territorial e racialmente, como descrito e analisado por Roy, Graziani e Stephens (2020) – um exercício buscando descrever e analisar a região da cracolândia de São Paulo a partir das políticas (e polícias) territorializadas e racializadas foi feito aqui.
A mutual aid parece se tornar a prática política em uma sociedade sem Estado (de bem estar social, mas sim policial) em que o pós-colapso parece ser a realidade – uma sociedade em guerra permanente e sem fim, uma guerra civil contínua que vai se reatualizando. O Brasil também tem uma violência interna constante que se perpetua, mas é diferente porque o Estado, seus recursos e políticas estão muito presentes nos termos da disputa, enquadrando-a e, inclusive, sendo alvos dela, o que condiciona muito a ação e estratégia de diferentes grupos e movimentos sociais e políticos brasileiros.
Exercitando mais uma vez a análise transnacional que propõe Roy, não para fazer comparação ponto a ponto ou para pensar em termos de “melhor” e “pior”, mas para que questões de um lugar iluminem e produzam deslocamentos em outro, arrisco a pensar brevemente nessas dinâmicas e seus possíveis riscos políticos.
Como foi dito, muitos movimentos e coletivos brasileiros têm uma estratégia política orientada para o Estado, seja como resistência às suas políticas, seja para negociar e se apropriar de seus recursos – para além de toda uma prática e tradição autonomistas também por aqui. A estratégia orientada para o Estado, para suas instâncias e recursos, tem como risco muitas vezes a acomodação, além de tender a constituir, limitar e pautar as arenas, termos e instrumentos em que as disputas se dão muitas das vezes.
Fiquei me perguntando quais os riscos possíveis em torno de uma estratégia muito mais autonomista e horizontal como a mutual aid? Ao meu ver e em uma reflexão que precisa de mais tempo e profundidade, as estratégias não centradas no Estado e autônomas de mutual aid que conheci e acompanhei em LA têm outro tipo de risco: o que em português chamaríamos de voluntarismo – ações individuais pontuais feitas por indivíduos bem-intencionados. Diante da aridez e da brutalidade, elas são importantes, mas por vezes ao não construírem redes e horizontes políticos mais amplos, essas ações podem acabar restritas no espaço e no tempo.
As atividades de mutual aid sem conexões e perspectivas políticas mais amplas acabam ficando pontuais e localmente circunscritas. Isso pode ser agravado por conta de um outro elemento – também muito presente e atuante na conjuntura urbana e social brasileira – que é o tempo da urgência: fazer as coisas no tempo da urgência dificulta a construção e articulação políticas mais profundas e ampliadas das ações.
Outro risco que decorre desses também: uma coisa é construir infraestrutura alternativas. Outra coisa é mantê-las. Construir infraestruturas alternativas significa também manter e geri-las – e algumas vezes podem faltar para as comunidades que recebem as atividades de mutual aid tempo, recursos e capacidades (técnicas, informacionais, de fôlego, também porque vivem nos meio da urgência e de condições difíceis), para conseguir auto manter e gerir essas infraestruturas, sem que possam fazer com que elas permaneçam e durem no espaço e tempo para além das atividades realizadas especificamente em um dado dia e momento.
Em uma sociedade de consumo forte e radical como os EUA (muito mais profunda e democrática que o Brasil – talvez a dimensão de cidadania mais democrática que exista lá) em que todos os indivíduos podem ser consumidores – até unhoused people podem acessar e circular nos circuitos de consumo –, o desafio parece ser como superar a perspectiva individual e construir alguma coisa que possa ir além. Como não fazer que a mutual aid seja capturada e dominada também por essa lógica? Como evitar que sejam apenas indivíduos trabalhando com indivíduos – ou ainda pior: indivíduos trabalhando para indivíduos?
É com essas questões de pano de fundo ao meu ver que a reivindicação pelo “direito a assentamentos informais” pode ganhar novas e importantes dimensões: o direito à informalidade se torna um processo político no sentido de produzir politização e subjetivação; o processo de reivindicação por direitos, que é precisamente marca constituinte da informalidade, como ensina Roy, torna-se possibilitador e ativador de um processo político politizador e de subjetivação daqueles envolvidos nessa reivindicação e lutas.
A aposta política desses coletivos de LA parece ser que, ao reivindicar por direitos (mesmo que seja o direito à informalidade), os indivíduos se politizam, e assim tornam-se sujeitos políticos e coletivos, construindo infraestruturas sociais e subjetivas alternativas: mais coletivas, podem ir além das limitações e restrições da dimensão, necessidades e desejos do indivíduo-consumidor.
Os indivíduos da sociedade sem Estado (mas, ao mesmo tempo, fortemente de consumo) se tornam sujeitos políticos em um processo de politização atrelado à reivindicação por direitos. Mais do que um “colchão de proteção”, a informalidade possibilita um processo de politização e subjetivação no curso da produção de alguma cidadania, direitos e espaços – me pergunto se de alguma institucionalidade também. Essa compreensão em torno da reivindicação pelo direito à informalidade veio a partir da interlocução e falas de Ananya Roy em reuniões e em sala de aula – com a atenção e cuidados permanentes de não romantizar a informalidade nesse processo.
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