Por Paula Santoro*
Um dos desafios para o planejamento das cidades latino-americanas tem sido disponibilizar terra acessível para as famílias que compõem as necessidades habitacionais. O contexto capitalista neoliberal tornou a missão ainda mais difícil, pois transferiu a tarefa de fazer moradias ao mercado, cuja lógica de atuação está baseada na obtenção da valorização da terra e, consequentemente, da maior rentabilidade imobiliária.
Em contextos que não têm tradição de regular o desenvolvimento urbano, teme-se que os aspectos relativos à garantia dos interesses públicos venham a ser negligenciados frente à lógica de rentabilidade imposta pela transformação urbana de cunho neoliberal, que obedece mais fortemente ao valor de troca e valorização do solo urbano, e se distancia da lógica dos direitos na qual predomina o valor de uso e o acesso à terra, traduzidos de forma mais ampliada e complexa, pela garantia do direito à moradia e à cidade.
O Brasil já tem tradição na incorporação de políticas habitacionais baseadas na reserva de terra no zoneamento, ou seja, a demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), com algumas e relevantes experiências de implementação. Mas não tem tradição em políticas habitacionais inclusivas desenvolvidas a partir da regulação da reestruturação urbana, seja sobre a transformação de áreas mais centrais ou ainda de expansão urbana.
Ao revisar o seu Plano Diretor aprovado em 2014 (Lei n. 16.050/14), São Paulo tentou considerar o território como parte importante de uma política de habitação de interesse social (HIS), reservando terras e recursos para este tipo de habitação.
O novo plano prevê uma ampliação de recursos financeiros para produção de habitação de interesse social em cada área que venha a ser reestruturada, sem metragem de área definida para que isso se dê. Para cada área, será necessário elaborar um Plano de Intervenção Urbana – PIU. O Plano Diretor indica um conteúdo mínimo para estes planos, mas não a obrigatoriedade de garantir percentuais de terra para produção de habitação de interesse social, nem tampouco recursos. Dentre o conteúdo mínimo, propõe como objetivos prioritários de cada PIU prever atendimento às necessidades habitacionais e sociais da população de baixa renda residente na área, afetada ou não pelas intervenções previstas no plano.
Mas cada PIU, para ser implementado, deve estar combinado com um dos instrumentos urbanísticos de gestão e financiamento previstos no Plano Diretor. Apenas nos casos de os PIUs estarem combinados com Operações Urbanas Consorciadas (OUCs) ou Áreas de Intervenção Urbanística (AIUs) há exigência de que no mínimo 25% dos recursos arrecadados sejam destinados para HIS, preferencialmente na aquisição de glebas e lotes. Isso quer dizer que, se estiver combinado com Concessão Urbanística, Áreas de Estruturação Local (AEL) ou Fundos de Investimento Imobiliário (exemplos de outros mecanismos disponíveis no Plano para implementar os PIUs), esta obrigatoriedade não se aplica.
Nas áreas de reestruturação urbana ficou assim em São Paulo: não foi exigido um percentual de terreno para habitação de interesse social, nem de área construída, mas tão somente um percentual de recursos, em alguns casos. Enquanto a crítica se voltou às Operações Urbanas, deixaram-se passar vários instrumentos sem regulação. Houve pouca atenção à exigência de produção de HIS nestes instrumentos ou outra forma de regulação destes, prejudicada pela polarização entre os interessados em manter as zonas exclusivamente residenciais e os defensores das Zeis.
Ainda em relação ao percentual de recursos, o Plano Diretor aprovado prevê a exigência de no mínimo 30% dos recursos do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) para a aquisição de terrenos destinados à produção de Habitação de Interesse Social, preferencialmente em Zeis 3, que são aquelas localizadas nas Macroáreas mais centrais e urbanizadas. Em tese, ao restringir as Zeis 3 a poucas áreas, estaria escolhendo terrenos mais centrais, mas continua sendo “preferencialmente” e não “exclusivamente” (e ainda, há várias Zeis muito bem localizadas, que deveriam ser Zeis 3…). A previsão de receita do Fundurb para 2015 é de R$ 509 milhões, o que significa uma reserva de R$ 152,7 milhões para HIS, o equivalente à construção de 1.300 a 1.500 unidades habitacionais no ano.
Cota de Solidariedade
Em outra direção, o novo Plano Diretor de São Paulo trouxe para o debate o instrumento denominado Cota de Solidariedade, que estabelece que a cada novo grande empreendimento, plano ou projeto urbano, sejam produzidas habitações de interesse social pelo empreendedor, ou que sejam doados terrenos ou recursos para que o poder público produza tais habitações. A grande inovação foi a incorporação de um instrumento que produziria habitação quando acontece o desenvolvimento urbano, associado ao seu licenciamento, no mesmo terreno.
A ideia inicial era apenas exigir a produção de novas unidades habitacionais de interesse social em empreendimentos com mais de 10 mil m2 de área, sendo que no mínimo 10% da área construída total deveria seria destinada à produção de HIS para famílias com renda de até seis salários mínimos (HIS 1 e 2). Essa proposta foi modificada e a exigência passou a ser feita para empreendimentos com 20 mil m2 (e não 10 mil) de área construída computável (e não total) para famílias com renda de até seis (e não três) salários mínimos.
Além disso, foram criadas alternativas à produção de HIS no próprio local do empreendimento, tornando-se possível: (i) produzir HIS em terrenos nas áreas já consolidadas da cidade na Macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana, com exceção dos setores ainda não infraestruturados; (ii) doar terreno de valor equivalente a 10% do valor da área total do empreendimento, calculado com base no Cadastro de Valor de Terreno, valor que corresponde a cerca de 80% do valor de mercado, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolviento Urbano (SMDU), na Macrozona citada acima e com as mesmas exceções; ou ainda, (iii) depositar no Fundurb o valor descrito acima, que “prioritariamente” deve ser utilizado na compra de terreno ou subsídio à produção de HIS, “preferencialmente” em Zeis 3. Ou seja, para o dono do empreendimento, será melhor a opção de pagar para o Fundurb valor correspondente a 80% do valor de mercado de seu terreno do que produzir HIS no mesmo local do seu empreendimento, com raras exceções.
Para além da criação de alternativas que inviabilizaram a concepção inicial da Cota de Solidariedade, muito se ganhou, depois se perdeu, entre os debates dos substitutivos na Câmara de Vereadores. Vejamos: (i) inicialmente, a área com HIS seria doada para o poder público (isso não foi aprovado); (ii) foi retirado artigo que previa a aplicação do instrumento em casos nos quais grandes empreendimentos são divididos em vários pequenos, o que considerava o impacto cumulativo dos mesmos.
Se alguém esperava que com estas estratégias de obtenção de recursos para compra de terrenos (recursos dos fundos da Outorga Onerosa, das Operações Urbanas, das Áreas de Intervenção Urbanística e da Cota de Solidariedade) e de doação de terrenos para o poder público (Cota de Solidariedade) o município viabilizaria os terrenos para construção de HIS, as possibilidades alternativas aos instrumentos poderão matar estas estratégias.
Ainda, e não menos importante, se o terreno em área bem valorizada for obtido, a produção habitacional, nestes casos, acontecerá articulada com os programas federais e estaduais disponíveis. Ou seja, o Programa Minha Casa Minha Vida e a casa própria serão o destino, sem políticas alternativas que venham a evitar a gentrificação pelo mercado, como por exemplo, a locação social articulada a um banco de imóveis públicos.
*Paula Santoro é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do projeto ao qual o observaSP é vinculado. Contribuiu com o Movimento pelo Direito à Cidade no Plano Diretor durante seu processo de discussão.