Por Caroline Nobre,* Isabel Martin,** e Pedro Lima***
No último dia 25 de setembro, representantes das equipes técnicas da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e da Secretaria do Verde e Meio Ambiente apresentaram o instrumento da Quota Ambiental na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a convite do observaSP. A geóloga Patrícia Sepe, a arquiteta Lara Figueiredo e o engenheiro Paulo Mantey Domingues Caetano contaram sobre as origens e matrizes teóricas do instrumento, os conceitos envolvidos, os insumos para as fórmulas elaboradas e sua evolução durante o processo de discussão no âmbito do processo participativo de debates do zoneamento, ainda em curso.
Já tratamos desse tema aqui no blog, em uma entrevista que realizamos com o professor Silvio Macedo, publicada em janeiro. Dessa vez, o encontro na FAU trouxe o ponto de vista daqueles que diretamente conceberam a ideia, e permitiu que esboçássemos algumas reflexões sobre a proposta. É possível um instrumento com critérios muito diversos e simples em sua aplicação?
O conceito principal por trás da quota ambiental é o reconhecimento de que os espaços livres dentro do lote devem ser qualificados porque podem contribuir com a melhoria da qualidade ambiental da cidade. Os técnicos enxergam o instrumento como um complemento aos necessários esforços e investimentos do poder público na melhoria das condições urbano-ambientais em diferentes escalas (não apenas na intralote), como, por exemplo, através da criação de mais parques ou áreas significativas de meio ambiente preservado. Ou seja, as exigências e incentivos para qualificação dos lotes contribuem, mas não substituem estes esforços.
Na apresentação, os técnicos citaram um vasto referencial teórico-conceitual de base para a concepção do instrumento, que define o que se entende como qualificação ambiental e as grandes questões a serem resolvidas em São Paulo: as enchentes, as ilhas de calor e as desigualdades de cobertura vegetal. A partir delas, os parâmetros e objetivos da quota seguem três focos principais. A premissa para drenagem é reduzir ao máximo o tempo e a quantidade de água dos lotes direcionadas às redes de macrodrenagem, ou seja, quanto mais permeáveis ou contidas internamente aos lotes, menos estes exigiriam das infraestruturas públicas. Já os temas qualidade ecossistêmica e microclimas se combinam, e seu objetivo é o mesmo: o aumento e a manutenção da vegetação no espaço urbano.
Assim, a quota ambiental agregaria às tradicionais regras de ocupação do solo – coeficiente de aproveitamento, gabarito de altura etc – parâmetros que procuram diversificá-las e qualificá-las na questão ambiental. A introdução da quota avança no sentido de entender que critérios de qualidade e quantidade podem ser somados aos parâmetros existentes – taxa de permeabilidade e taxa de ocupação – que asseguram, principalmente nos miolos de bairro, a presença de recuos e espaços livres permeáveis no interior dos lotes.
Foi perceptível na apresentação dos técnicos da prefeitura a preocupação com a heterogeneidade do território e, portanto, com a relativização do instrumento e de suas exigências, de acordo com cada região. Nesse esforço, a cidade foi dividida em 13 zonas, criadas a partir das macroáreas do Plano Diretor (aprovado em 2014) e diferenciadas segundo aspectos geomorfológicos e de cobertura vegetal. A quota exige que cada novo empreendimento atinja uma pontuação ambiental mínima, que é diferente para cada uma das zonas. Para isso, há uma gama de opções a serem incorporadas pelos projetos, que podem ir desde a criação de jardins e fachadas verdes até a manutenção de árvores preexistentes no terreno. Cada uma das alternativas tem um valor diferente, baseado na sua capacidade de contribuição ambiental.
Uma questão relevante, entretanto, aparece na composição desse “cardápio” de opções de projeto. É inegável que os critérios escolhidos, tanto para a demarcação das zonas quanto para a avaliação das possibilidades de obtenção de pontos, tenham sido bem desenvolvidos do ponto de vista ambiental, levando em consideração que envolveram estudos cuidadosamente fundamentados no que se refere à qualidade ecossistêmica dos territórios que se pretende produzir. Entretanto, quando vistos a partir do âmbito urbanístico, muitos elementos são questionáveis, já que nem toda área ecologicamente adequada condiz com o modelo de cidade almejado no discurso do Novo Plano Diretor e pela própria.
Em outras palavras, ao criar um conjunto de opções, o instrumento diz o que é bom, desejável. A manutenção de um bosque com árvores de grande porte, por exemplo, seria muito bem pontuada no cálculo da quota ambiental. Todavia, isso nem sempre é positivo. Se for um bosque murado e inacessível, torna-se um lugar perigoso, inóspito, por estar desarticulado do tecido urbano e não permitir nenhum uso humano. Ou ainda, se impedir que espaços livres e fachadas próximas tenham o mínimo de insolação, representaria um problema ambiental, mas na escala do edifício.
Percebemos então um desafio nesta qualificação do ambiente proposta pela quota, ao analisar a localização e as escalas da cidade e do lote.
Uma das críticas que têm sido feitas ao instrumento – e às regulações urbanísticas, que em geral são generalistas – propõe que o equacionamento dos conflitos se dê particularmente em cada projeto urbano ou arquitetônico. Mas não se tem uma estrutura de gestão pública com capacidade de fazer projetos em cada quadra da cidade, e tampouco um interesse do mercado em criar projetos definidos pelo contexto em que estão inseridos, já que a adoção de soluções padronizadas é mais lucrativa. Por isso, é importante ter parâmetros que direcionem as iniciativas individuais de transformação. Nesse sentido, é inegável a pertinência da Quota Ambiental. Contudo, seus critérios são passíveis de aperfeiçoamento, abertura para outras propostas que não estejam no “cardápio” e, sobretudo, diálogo com as estratégias de articulação entre espaços públicos e privados apresentadas na revisão do mesmo zoneamento: a fruição pública no interior do lote, os limites de cercamento e a permeabilidade visual, a doação de recuo para aumento de calçada etc. Enfim, entender que os espaços livres podem cumprir outras funções urbanas e abrigar usos humanos, além da prestação de “serviços ambientais”.
Por outro lado, na medida em que pautas não diretamente ligadas à questão ambiental fossem incorporadas à quota, ela se tornaria ainda mais complexa. Aí está outro ponto que vem sendo alvo de críticas: se consideramos que os critérios poderiam se diversificar, a aplicabilidade é pautada como tarefa complexa, a ser simplificada. Da atribuição de pesos diferentes para soluções diferentes, somada à divisão em zonas e ao cuidado em evitar que o empreendedor opte por apenas um fator de qualificação, resultou um cálculo um pouco complicado do valor a ser atingido – e como atingi-lo. A resposta da Prefeitura à dificuldade de entendimento apontada nos primeiros debates sobre o instrumento foi a simplificação de alguns critérios e a criação de um aplicativo simples que ajuda no cálculo, e permite que o projetista simule possibilidades de soluções e veja suas consequências na pontuação.
Nesse mesmo sentido, a aplicabilidade do instrumento vem sendo questionada. Na primeira vez em que foi apresentado, seria uma regulação válida para toda reforma e nova construção em qualquer lote da cidade. No entanto, no decorrer do processo participativo, as regras deixaram de abranger toda a cidade e passaram a se aplicar somente aos lotes maiores que 500 m² (segundo os técnicos, cerca de 49% dos lotes urbanizados estariam enquadrados), devido a dificuldades para a fiscalização e à fragmentação das soluções que dificultariam a percepção da melhoria da qualidade ambiental. Para além disso, historicamente, a cidade não possui uma boa gestão e fiscalização do cumprimento das leis, mesmo em relação aos parâmetros simples, como altura e área construída das edificações. Em outras palavras, como se esperar que sejam fiscalizados parâmetros complexos e relativos em pequenos lotes, se isso não ocorre nem quando as regras são generalistas?
Em contrapartida, aproximadamente metade dos tecidos urbanos paulistanos é composta por este tipo de lote – pequeno, unifamiliar, muito construído. E, consequentemente, são os mesmos lugares onde se concentram os problemas ambientais a enfrentar – alagamentos, ilhas de calor, ausência de vegetação. Quer dizer, assumir a inviabilidade de aplicação da Quota Ambiental nessa (grande) parte da cidade é manter toda responsabilidade de qualificação ambiental urbana nos espaços públicos e redes de infraestrutura, cujo planejamento será incumbência das secretarias afins (Secretaria do Verde, de Infraestrutura Urbana etc) e também tema dos planos regionais estratégicos.
Ainda, foram criadas na Quota Ambiental excepcionalidades que não se justificam. A única possibilidade de que os benefícios trazidos pelo instrumento atingissem as populações de renda mais baixa, pela construção de novos empreendimentos, é descartada quando os empreendimentos de habitação de interesse social (EHIS, direcionados a famílias com renda de 0 a 6 salários mínimos) e mesmo os de mercado popular (EHMP, para famílias com renda de 6 a 10 salários mínimos) são desobrigados de cumprir com parâmetros de qualificação ambiental, ainda vistos como um ônus, um custo. Isto é, da forma como está posto, o universo de atuação do instrumento fica restrito aos grandes empreendimentos de renda média-alta, que não coincidentemente se concentram nos territórios com melhor qualidade ambiental da cidade e para os quais a necessidade de regulação é menor, já que, em geral, há um maior investimento em projeto arquitetônico. Contudo, esse não é um problema específico da quota: tradicionalmente, têm-se construído leis de zoneamento cujo enfoque principal é gerir a parte mais consolidada da cidade. E qualificar o meio ambiente deve ser atribuição apenas de alguns?
Embora a Quota Ambiental, como toda proposta nova, tenha pontos que devem ser debatidos e aprimorados, sua postura inovadora de inserir qualificações ambientais em regras para o lote já se traduz em avanço. Reconhecendo as limitações do instrumento, é importante ter uma proposta, começar a colocá-la em prática, e testar. E que as críticas e a defesa do instrumento sirvam como oportunidade de debater como a pauta ambiental pode ser inserida na política urbana, como pode ser pensada a complementariedade da regulação dos espaços privados e da ação no espaço público, e os desafios na proposição de mecanismos de regulação que entendam a diversidade e a imprevisibilidade do crescimento das cidades.
*Caroline Nobre é estudante de graduação do curso de arquitetura e urbanismo da FAUUSP e integra a equipe do observaSP como bolsista do projeto Aprender com Cultura e Extensão .
**Isabel Martin é estudante de graduação do curso de arquitetura e urbanismo da FAUUSP, bolsista de iniciação científica com o projeto “Planos de Urbanização de Zeis: percursos democráticos na luta pelo direito à cidade”, apoiado pela CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Caio Santo Amore, e integra a equipe do observaSP.
***Pedro Lima é estudante de graduação do curso de arquitetura e urbanismo da FAUUSP, bolsista de iniciação científica com o projeto “Desafios e perspectivas do instrumento Operação Urbana Consorciada para a produção de habitação de interesse social: uma leitura crítica da OUC Água Branca em São Paulo”, apoiado pela Fapesp, sob orientação da Profa. Dra. Paula Santoro, e integra a equipe do observaSP.
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