Débora Ungaretti, Guilherme Lobo Pecoral, Talita Anzei Gonsales *
No início da manhã da quarta feira 23 de fevereiro, 22 famílias moradoras da favela de São Rafael, em Guarulhos, tiveram suas casas demolidas. Algumas delas moravam há mais de dez anos no local, situado sob uma linha de transmissão de energia elétrica, segundo relato de lideranças. A região está demarcada no Plano Diretor de Guarulhos como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), ou seja, tem legalmente reconhecido o interesse público na permanência dos moradores e na regularização fundiária.
No entanto, a reintegração de posse foi promovida pela concessionária de serviço de energia (Cia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista – CTEEP), que, segundo dados do Observatório de Remoções, também é autora de ao menos outras 21 ações de reintegração de posse que atingem assentamentos precários na Região Metropolitana de São Paulo. No total, ao menos 2.131 famílias estão sendo ameaçadas sob o argumento de risco a suas vidas por eletrocussão por ações da CTEEP.
O acirramento da emergência habitacional em São Paulo e no país tem trazido à tona o debate sobre situação de risco e despejos. Desastres, remoções e a defesa de falsas soluções ensejam algumas reflexões sobre essa relação, sua aplicação na realidade metropolitana e, sobretudo, sobre a urgência da construção de caminhos alternativos aos que têm sido aplicados pelo poder público e privado.
O risco como argumento incontestável à remoção, e, ainda, como fator que leva necessariamente à sua urgência tem sido utilizado como meio para interesses diversos. É o caso da implantação de projetos urbanísticos excludentes na zona norte e sul de São Paulo, como denunciam respectivamente a Campanha #AtingidosPelaPPP e a Articulação Vila Andrade. É na cidade disputada palmo à palmo onde a análise de risco aterrissa – neste caso e em tantos outros, vale reforçar que a técnica não é neutra e pode ser mobilizada e aplicada de diversas formas.
No caso da Favela São Rafael em Guarulhos, a 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo afastou a aplicação da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pela suspensão das remoções até 31 de março de 2022, por conta da alegação de risco à vida dos ocupantes e à operação e prestação do serviço pela concessionária. A garantia do direito à moradia dos ocupantes, mesmo estando em área demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) pelo Plano Diretor Municipal, também foi afastada pela impossibilidade de consolidação das moradias no local, também em razão do risco.
A decisão desconsiderou, no entanto, que mesmo nas exceções à suspensão dos despejos admitidas pelo STF, como os casos de risco, as remoções devem ser necessariamente acompanhadas de um plano de desocupação e de atendimento habitacional adequado para as famílias. No caso da favela de São Rafael, a Prefeitura de Guarulhos informou que as famílias poderiam procurar abrigo em albergues para população em situação de rua, os quais não constituem moradia e não têm atendimento voltado para grupos familiares. A repercussão do caso e a pressão das famílias, apoiadas pelo movimento Mandela Free, levou a Prefeitura a se comprometer com a concessão de auxílio aluguel de R$ 300,00 mensais, valor insuficiente para locação residencial em condições adequadas na Região Metropolitana de São Paulo.
Quando desacompanhadas de atendimento habitacional adequado, as remoções não acabam com a situação de risco. Pelo contrário: podem reproduzir, em outro local, a mesma ou ainda mais grave situação de vulnerabilidade que levou as famílias a ocuparem a área anterior. Despejadas e sem alternativas, as famílias muitas vezes ou somam-se às estatísticas crescentes da população em situação de rua, ou passam a habitar regiões ainda mais precárias.
Foi o caso, por exemplo, da ocupação Nova Conquista, localizada na Vila Sônia, Zona Oeste de São Paulo. Em dezembro do ano passado, 240 famílias foram despejadas a pedido da Prefeitura e de uma empresa de investimentos imobiliários, sob alegação de risco de deslizamento e proteção ambiental. A remoção ocorreu sem atendimento da secretaria de habitação, das subprefeituras e do conselho tutelar, com força policial apoiada por representantes dos proprietários. Com isso, uma parcela das famílias fundou a Nova Conquista II, em região próxima e ainda mais inóspita. É o que pode ocorrer também com os moradores de São Rafael e tantos outros em desamparo de políticas habitacionais.
No caso das famílias do São Rafael ainda falta questionarmos sobre qual análise de risco essa decisão se debruçou. Há laudos feitos a partir de escala adequada de análise para a situação? Há uma análise de medidas de gerenciamento de risco que considere a remoção das famílias como uma última opção, conforme orientam diversas normas e orientações para atuação em casos de risco? Há espaço de discussão junto às famílias atingidas para debater a melhoria das condições habitacionais? Alegar risco sem debater previamente esses pontos é mobilizar a legitimidade da questão do risco de forma arbitrária para atender a interesses que não são os da população atingida.
Mobilizado de forma arbitrária, muitas vezes décadas depois da ocupação, o risco pode ser utilizado para obtenção de decisões judiciais rápidas, que diminuem os custos e responsabilidades da Prefeitura e da concessionária em relação ao direito à moradia das famílias. Por isso, outros caminhos para lidar com situações de risco são urgentes. Na Vila Andrade, passou a ser discutida judicialmente não apenas a remoção, mas também a possibilidade de criação de um Conselho Gestor de ZEIS envolvendo representantes da Prefeitura, da CTEEP e dos moradores. O Conselho Gestor é um instrumento definido no Plano Diretor de São Paulo, de Guarulhos e de outras cidades para que os usos e destinos das áreas de ZEIS sejam decididos de forma democrática.
Mais que uma possibilidade, é um dever: em São Rafael, na Vila Andrade e demais ocupações em áreas de ZEIS, é fundamental a criação desse conselho para a construção de uma gestão do território mais democrática que evite tanto a ocorrência de despejos arbitrários quanto a construção de medidas de gerenciamento de risco e melhoria das condições habitacionais.
Vale lembrar que despejos em áreas de risco, dentro ou fora de ZEIS, não podem ser determinados sem a oferta de alternativa habitacional adequada às famílias, sob pena de desamparar a população de seus direitos à moradia, saúde e vida, bem como fomentar o surgimento de novas ocupações ainda mais precárias. É o que determina a decisão do STF pela suspensão de despejos e remoções, mas que, a exemplo de São Rafael, tem sido sistematicamente desrespeitada em São Paulo.
A moradia em locais com condições adversas e situação de risco não é uma opção das famílias, mas uma forma de sobrevivência. O despejo como resposta única só acrescenta uma camada de violência ao cotidiano já desamparado das famílias que habitam essas regiões, movendo-as a novas habitações precárias ou à rua.
*Débora é Doutoranda na FAU-USP; Guilherme é graduando em Direito na USP; Talita é doutoranda na UFABC; pesquisadoras/es do Observatório de Remoções.
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