Por Renato Abramowicz Santos
Em quase dois anos de pandemia de covid-19, de forma sistemática e diversas vezes ilegal, a prefeitura de São Paulo removeu a população que morava e trabalhava no coração do bairro do Campos Elíseos, centro de São Paulo, esvaziando e emparedando dois quarteirões inteiros, repletos de moradia, comércios, pensões e hotéis. A justificativa por parte da prefeitura foi a de que há um projeto de construção de um conjunto de prédios residenciais, realizado por meio de um arranjo de parceria público-privada (conhecidas também como PPPs), que não se destina a atual população que vive nesses quarteirões – e que, por esta razão, está sendo removida. Esses dois quarteirões são demarcados pelo Plano Diretor Municipal como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), instrumento que exige e garante não apenas a participação dos moradores nos projetos que atingem o território que vivem mas também seu atendimento habitacional neste projeto.
Contudo, não é o que está acontecendo. Na pandemia, ainda em um momento que não tínhamos vacina e ficar em casa era o meio mais eficaz de se proteger do coronavírus, a prefeitura promoveu uma ofensiva na região forçando os moradores e comerciantes a deixar suas casas e comércios. Muitos saíram sem receber nenhuma alternativa ou ressarcimento por perder suas fontes de renda e só encontraram alguma moradia acessível, e/ou no mesmo valor, nas regiões mais afastadas e periféricas da cidade e/ou em situações ainda mais precárias.
Mesmo com a prefeitura avançando com o cerco, muitas denúncias e mobilizações foram feitas ao longo desse período. Em junho de 2020, ficamos sabendo dos planos do poder público em realizar com “urgência” a remoção das duas quadras, “mesmo diante da pandemia”. A primeira mobilização contrária que fizemos, naquele momento, foi a organização de um abaixo assinado e de um grande encontro virtual, em uma fase em que as lives ainda estavam começando a ser mobilizadas como novo instrumento de ação. Mesmo assim, as remoções e demolições avançaram; o período eleitoral e a chegada do final do ano não impediram a retirada de moradores, comerciantes e o emparedamento de imóveis, seguido de demolições.
O trabalho e organização de moradores, comerciantes, ativistas e entidades serviu de subsídio e suporte para ações no âmbito jurídico por parte do Ministério Público e Defensoria Pública do estado de São Paulo. Antes do fim do ano, tivemos decisões judiciais favoráveis que impediam a realização de remoções e demolições na área. Imprimimos e levamos cópias dessas decisões para os moradores terem em mãos no momento em que agentes públicos viessem pressioná-los a sair de suas casas, o que de fato aconteceu. Essas articulação e mobilização fizeram com que a prefeitura mudasse sua estratégia: ao invés de seus agentes irem até o local, passaram a chamar as pessoas que foram cadastradas pela prefeitura em um longo e tortuoso processo que se desenrolou ao longo de 2017, e que ainda permaneciam morando nas quadras, para irem, uma a uma, para a prefeitura assinar o recebimento de um atendimento provisório. Com essa ação, romperam assim a resistência coletiva e tirando da cena pública sua movimentação, ficando mais difícil de observar e registrar o que estava sendo prometido e feito de sua parte.
A quase totalidade das famílias cadastradas que foram chamadas à Prefeitura assinou o termo de atendimento provisório (Auxílio Aluguel no valor de R$ 400) sob condição de deixar os imóveis nas duas quadras. Um casal que morava em um estacionamento, usado também como fonte de trabalho, foi duplamente coagido: primeiro pelos destroços de demolição dos imóveis vizinhos, que começaram a cair dentro do estacionamento; e segundo por agentes da prefeitura, falando que se não assinassem o Auxílio Aluguel a polícia viria para tirá-los à força. Resultado foi que acabaram assinando o termo e deixando o local onde viviam há mais de vinte anos. Do centro, mudaram-se para uma favela no Grajaú, região sul de São Paulo.
Portanto, mesmo com as decisões judiciais proibindo remoções e demolições nas quadras, a prefeitura seguiu adiante. No começo de 2021, ambas as decisões judiciais que impediam remoções e demolições foram derrotadas e revertidas. Mesmo com essa reviravolta e derrotas parciais jurídicas, havia outros dispositivos e entendimentos legais ganhando força e sendo aprovados na Justiça suspendendo remoções durante a pandemia, fruto de muita organização e articulação de movimentos, entidades, laboratórios de pesquisa, partidos políticos e parlamentares, não só na escala local, como em nível nacional, como foi o caso da campanha nacional #DespejoZero. Vitórias e proteções importantes nesse sentido foram obtidas tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Congresso Nacional, com a aprovação de um projeto de lei, seguido de derrubada de veto presidencial a esse PL e posterior aprovação de lei contra as remoções na pandemia.
Desde o começo do processo de ameaça e remoção das quadras, em maio de 2017, a prefeitura diz que vai atender apenas a população moradora cadastrada naquele ano – embora nunca tenha dito exatamente como, quanto, onde. Quem não foi cadastrado por alguma razão ou quem chegou depois não receberia nenhuma forma de atendimento, assim como os comerciantes que tiveram seus comércios fechados e perderam suas fontes de renda sem receber nenhuma indenização. Mesmo tendo anunciado que não atenderia os não cadastrados, a escolha de removê-los de seus imóveis durante a pandemia vai contra as decisões e entendimentos jurídicos que, se não se referem especificamente às duas quadras, as protegem em sua abrangência.
Independente da pandemia, de cadastro, de atendimento habitacional provisório ou definitivo, PPPs, quem chegou quando… existem direitos estabelecidos que precisam ser respeitados – não apenas direito à moradia, mas direitos humanos. O que assistimos nas últimas semanas de outubro de 2021 demonstram, mais uma vez, episódios de violação destes direitos por parte do poder público.
Em ação iniciada no dia 20.10.2021 e que continuou no dia 21.10.2021, a subprefeitura da Sé e a polícia civil realizaram uma grande operação nos poucos imóveis que ainda permaneciam com pessoas vivendo nas duas quadras, sobretudo pensões e comércios. Com a justificativa de interditar imóveis em função de laudos da defesa civil, lacraram comércios e pensões, deixando moradores da área não só sem seus pertences, que foram emparedados dentro dos imóveis, como também sem moradia. As pessoas foram retiradas e deixadas na rua, como podemos ver no registro a seguir.
Sem nenhum aviso prévio por parte do poder público e sem oferecer nenhuma alternativa de abrigo para as pessoas, mulheres, crianças (de colo, inclusive), idosos, cadeirantes foram expulsas de suas casas sem apresentação de nenhum mandado ou documento oficial que justificasse a remoção e bloqueio de seus pertences. Fora a violação de seus lares e o sequestro de seus bens, como documentos e alimentos (uma comerciante teve seu comércio lacrado com suas mercadorias dentro; quando ela conseguiu finalmente acessar o espaço suas mercadorias não estavam mais lá gerando ainda mais prejuízo), e a obrigação de terem que procurar um lugar do dia para noite para se abrigar, as ações foram acompanhadas da já conhecida e recorrente violência e violação de direitos das pessoas que vivem e circulam pela região: ausência de assistentes sociais e conselho tutelar acompanhando a operação (já que também havia crianças morando nas casas); realização de busca e apreensão nos imóveis sem apresentação de mandado judicial; nenhuma explicação e justificativa para serem retirados à força dos lugares que habitam; truculência e agressividade, inclusive, com uso de gás de pimenta para acordar uma moradora e agressão a um morador, conforme relatos colhidos pelo núcleo emergencial e de defesa dos direitos ameaçados da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.
Por mais que a prefeitura tenha dito que não ia oferecer atendimento habitacional (provisório e definitivo) para pessoas não cadastradas em 2017, nada justifica esse nível de violência e desrespeito de toda legalidade e direitos estabelecidos.
Na semana seguinte, nos dias 26.10 e 27.10.2021, a ofensiva continuou. Agentes públicos e da empresa Enel vieram novamente ameaçar de remoção, fechar imóveis, desligar água e luz dos poucos lugares ainda ocupados.
Soma-se a isso a prisão, no dia 26.10, de quatro moradores (até onde conseguimos saber) por ligações informais de luz e água, conhecidos também como “gatos”. Procurando se proteger da situação, uma das famílias quis acionar advogado particular, outra optou por contratá-lo também, mas talvez mal orientada e por não estar ciente dos valores que seriam cobrados, acabou se comprometendo com um gasto além de sua condição financeira, chegando a ficar sem dinheiro para comprar velas no dia, afinal tinham cortado a luz da área no dia. Neste contexto, o dinheiro guardado para pagamento do aluguel também foi comprometido, e a pressão e a ameaça da prefeitura em removê-los continua. Cabe destacar que esta família, no momento sem recursos para fazer uma mudança ou se comprometer com novas despesas, é uma das cadastradas em 2017.
O que aconteceu em dois quarteirões do centro de São Paulo nesse tempo foi a remoção quase completa, posta em marcha em um momento em que nem se tinha a perspectiva de vacina, de moradores e comerciantes da região. Utilizando-se de diferentes meios, dispositivos e agentes, ignorando ou mesmo descumprindo recomendações e decisões judiciais, a forma que o poder público se fez presente para as pessoas que viviam nesses dois quarteirões não foi gerando algum nível de proteção em um momento de alto risco e calamidade social e econômica; a presença do Estado nessa região se fez causando desamparo, violência, aglomeração, aumento da precariedade e deslocamentos forçados pela cidade.
Uma consequência dessas dinâmicas violentas de expulsão, que não se restringem à área central, foi o aumento de novas ocupações de moradia, nem sempre ligadas e mantidas pelos movimentos de moradia organizados. O surgimento de novas ocupações aparece como um efeito social e urbano imediato em uma conjuntura em que as políticas públicas anunciadas como “habitacionais” na verdade removem quem está na precariedade – e servem a quem tem condições de entrar em financiamentos, apoiando o chamado “segmento econômico” de mercado, que sem estes apoios já está se desenvolvendo a pleno vapor na cidade. Ao perder suas casas e sem condições de acessar o mercado formal de aluguel – seja pelos valores, seja pelas necessidades de documentação envolvidas –, uma das únicas opções para muitas pessoas e famílias é ingressar e fazer parte de novas frentes de expansão de moradia acessível. No caso do centro da cidade, esta acontece nos muitos imóveis vazios acumulando dívidas que permanecem abandonados. As ocupações, nesse sentido, acabam servindo como uma rede de proteção diante dos desamparos e violências, ao mesmo tempo que se estabelece um circuito que coloca em relação as pessoas removidas e os diversos espaços e arranjos de moradia que existem e/ou vão surgindo pela cidade.
* Doutorando na FFLCH-USP e pesquisador do LabCidade.
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