* Por Amanda Silber Bleich, Ana Pacheco, Matheus Martins, Vitor Inglez e Paula Freire Santoro

Na última quinta-feira (13/07/2023), a COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) publicou no Diário Oficial um edital de convocação que apresenta requisitos para o enquadramento das famílias que serão beneficiárias das unidades construídas pela PPP Municipal Casa da Família. Já discutimos em outros textos aqui e ali as contradições que o programa apresenta, e as diretrizes recém-publicadas reforçam as críticas quanto à incerteza das famílias sob ameaça de remoção conseguirem acessar as unidades habitacionais, além de trazer novas regras problemáticas.

As diretrizes são uma reprodução do Edital de Convocação da demanda da PPP (12/05/2022), com alterações pontuais: algumas consistem apenas na incorporação de regras definidas posteriormente à publicação original (como alguns dos critérios de priorização por pontuação do Decreto Municipal nº 61.282), outras, no entanto, são reveladoras dos últimos andamentos da implantação da PPP nos lotes ocupados.

Sobre a PPP Habitacional do Município

A PPP Habitacional Municipal Casa da Família é uma parceria do poder público com privados para a construção de 22.950 mil novas unidades habitacionais em 12 Lotes localizados nas diferentes regiões da cidade, para famílias de baixa, média e alta renda. De todas as unidades propostas, apenas 53% (13.313 unidades) são HIS-1, destinadas a famílias nas faixas de renda entre 1 a 3 salários mínimos, que correspondem ao maior percentual do déficit habitacional de São Paulo.

A parceria também prevê a construção de equipamentos públicos – que podem, por exemplo, ser creches, unidades básicas de saúde, dentre outros – e áreas para exploração comercial. Além da construção, os privados também ficam responsáveis pela gestão do projeto por 20 anos. Já a Prefeitura, oferece imóveis públicos para a construção (podendo inclusive desapropriar imóveis para dar lugar à PPP) e paga tanto as unidades construídas quanto as contraprestações mensais à empresa pela gestão dos serviços. Os valores dos contratos previstos nos editais somam cerca de R$ 4,3 bilhões.

O primeiro edital da PPP foi lançado em 2018 e a primeira leva de contratos foi assinada apenas em abril de 2019, que incluiu 6 dos 12 lotes (Lote 1/Ipiranga, Lote 5/Mooca, Lote 7 Vila Maria/Vila Guilherme, Lote 9/Lapa, Lote 11/Lapa, Lote 12/Casa Verde Cachoeirinha). Um novo edital foi lançado em 2020, no qual foram contratados 5 dos 6 lotes remanescentes (Lotes 3 e 4/Ipiranga, Lote 6/Vila Maria – Vila Guilherme, Lote 8/Campo Limpo, Lote 10/Guaianases).

Mapa interativo com lotes da PPP Casa da Família contratados e não contratados. Fonte: Editais das Concorrências Internacionais nº COHAB-SP 001/2018 e 001/2020. Elaboração: Ulisses Castro, fevereiro de 2020. Atualização: Matheus Martins, julho de 2023 – clique aqui para visualizar em tela cheia.

Apenas agora, quatro anos depois da assinatura dos primeiros lotes, foram publicados os requisitos para a seleção dos beneficiários destes dois editais. Esperava-se um documento detalhado, com diretrizes claras e assertivas para os interessados. Mas o contrário aconteceu: o edital de convocação publicado pela COHAB tem uma numerologia complexa, é incerto, e deixa dúvidas sobre quem será atendido, como também, causa a sensação de que os afetados não serão contemplados pelo programa.

Como é o fluxo desenhado no edital para a seleção dos beneficiados?

Inicialmente, a COHAB é responsável por compor uma lista de possíveis beneficiários, de acordo com “requisitos gerais de enquadramento”, sendo eles: renda mensal entre 1 a 10 salários mínimos; que não sejam proprietários de outros imóveis residenciais no território nacional; que não tenham sido atendidos previamente por qualquer programa de provisão habitacional e que integrem os cadastros municipais, e/ou estaduais e da União). Mesmo os grupos que estão sob ameaça de remoção, classificados como prioritários no edital, precisam se enquadrar nestes requisitos, mas a COHAB não menciona os documentos exigidos para a comprovação de renda mensal. As famílias com renda mensal de até 1 salário mínimo não são contempladas por este edital.

Em todo empreendimento, é feita uma reserva de unidades para famílias que tenham pessoas com deficiência, idosos e/ou mulheres em situação de violência doméstica. Retiradas estas unidades, com a lista de possíveis beneficiários em mãos, uma nova lista é composta a partir de uma série de critérios de priorização, sendo as famílias sob ameaça de remoção classificadas como “Grupo I” de prioridade. No caso dos seis lotes contratados em 2019, seriam as comunidades do Córrego do Violão (Lote 7), Joaquim da Costa Miranda (Lote 9) e Córrego do Bispo (Lote 12).

No Lote 7, estima-se que as favelas do Violão, Aurora e Aron Master abriguem mais de 800 famílias. Em 2020, o número de atingidos pelo projeto aumentou, com a Ocupação Viva Jardim Julieta se conformando em quadras destinadas à PPP, trazendo mais 400 famílias para o território. A provisão habitacional proposta pelo edital neste lote é de 1.580 unidades, com apenas 806 destinadas à HIS-1. Já no Lote 12, que coloca cerca de 6.000 famílias sob ameaça de remoção, é prevista a construção de 3.000 unidades habitacionais, sendo apenas 1.800 destinadas à HIS-1. Mesmo com o critério de priorização destas famílias, basta olhar os números para ver que essa conta não fecha!

O edital ainda traz uma nova regra: afirma, genericamente, que também serão priorizadas famílias de cadastros específicos ou com as quais haja “compromisso indispensável para o desenvolvimento dos empreendimentos”, ou, ainda, aquelas que sejam incorporadas caso houver inclusão ou substituição de áreas, deixando novamente uma lista aberta de futuros ameaçados de remoção que terão que negociar seu atendimento. Isso porque as PPPs podem, desde que haja um “fato superveniente” que “impossibilite” a implantação no perímetro original, substituir as áreas contratadas, permitindo a alteração do perímetro, inclusive para áreas distantes das ocupadas. Vimos no Lote 12, por exemplo, a incorporação de áreas que estão localizadas cerca de 3 km do perímetro original.

Nesse sentido, o edital reitera a ameaça permanente que as PPPs habitacionais têm promovido sobre áreas ocupadas por famílias de baixa renda por permitir o avanço sobre novas áreas, mostrando que os lotes têm perímetros fluidos, indefinidos, e que podem gerar novas ameaças. Há, inclusive, a possibilidade do aumento da demanda classificada como prioridade máxima (Grupo I) sem qualquer capacidade de absorção pela PPP.

Também são consideradas prioritárias as famílias que residem ou trabalham nos distritos próximos aos empreendimentos, compondo o “Grupo II”, porém o edital estabelece percentuais para as prioridades – no caso deste grupo, apenas 50% das famílias listadas.

Os outros grupos prioritários são compostos a partir de um sistema de pontuação, em que cada um dos seguintes critérios apresentados vale 1 ponto: famílias com mulheres responsáveis pelo sustento; famílias cujo aluguel comprometa 30% ou mais do salário mensal (comprovada por meio do recibo ou contrato de aluguel, e declaração de renda); famílias com crianças na primeira infância e famílias que recebem auxílio aluguel.

Feita a hierarquização pelos requisitos e pontuações, 39% das unidades irão para lista de beneficiários da CDHU/Secretaria de Estado da Habitação, o que diminui ainda mais a possibilidade de atendimento para os que serão removidos, caso não estiverem cadastrados junto ao Estado.

Uma vez composta a nova lista que inclui as famílias prioritárias, esta é enviada à Concessionária, que convoca os candidatos a apresentarem os documentos comprobatórios (via e-mail, sms, whatsapp), e, posteriormente, dará apoio às famílias na contratação dos financiamentos junto a um Agente Financeiro, escolhido pela própria Concessionária, que deve priorizar aqueles que operam recursos do FGTS. Não estão descritos quais serão os documentos comprobatórios exigidos, mas o prazo de 15 dias para apresentá-los está definido (!), garantindo apenas o fluxo do agente financeiro/concessionária e não dos beneficiários. Se não apresentá-los em 15 dias, terão mais 10, e, se não apresentarem neste prazo, serão excluídos da lista.

O Agente Financeiro, além de analisar os documentos apresentados, poderá conduzir pesquisas no mercado de crédito imobiliário e ao consumidor, tendo o poder de excluir do atendimento qualquer família que esteja em situação de dívida ou inadimplência. O documento deixa explícito que “as condições e os requisitos para ter o crédito aprovado serão os definidos pelo Agente Financeiro e as famílias deverão atendê-los plenamente, caso contrário, terão o crédito indeferido e darão lugar à família classificada em seguida na lista”.

Edital que não dialoga com a realidade dos atingidos

A decisão de quem será atendido e dos critérios para o financiamento é do agente financeiro, não da COHAB. Apesar das famílias precisarem atender plenamente a TODOS os requisitos, os critérios e os documentos comprobatórios não foram divulgados, deixando os possíveis beneficiários sem saber se estarão enquadrados ou não. E, apesar das prioridades, há dúvidas quanto à possibilidade real das famílias atingidas pela PPP integrarem o programa. Desde a comprovação de renda mensal, pois estas costumam ter trabalhos temporários, informais, a estarem com o nome limpo, sem dívidas – em um momento em que o índice de endividamento atinge patamares altíssimos, chegando a abranger 76% das famílias paulistanas em novembro de 2022, afetando principalmente as mais pobres –, em situação apta para adquirir um financiamento.

Em texto anterior expusemos como esse processo se deu concretamente para as famílias que moravam nas quadras atingidas pelo Lote 1 da PPP Habitacional do Estado, nos Campos Elíseos, que após serem removidas e cadastradas no auxílio aluguel – que pelo valor de apenas 400 reais, impossibilitou que muitas continuassem morando no Centro –, ficaram aguardando o atendimento definitivo e receberam uma péssima notícia: para serem atendidas, teriam que providenciar uma enorme lista de documentos no prazo de dez dias. A lista de exigências incluía imposto de renda, carteira de trabalho, comprovante de pagamento do INSS, licença para exercício da profissão e mais uma série de documentos, ignorando completamente o quadro de informalidade no emprego da população que mora nos territórios atingidos pela PPP.

Ciente da impossibilidade da PPP Habitacional Municipal atender a quem precisa e aos ameaçados e removidos pela própria PPP, seu edital traz uma outra regra, a “reserva de unidades para situações extraordinárias”: a SEHAB (Secretaria Municipal da Habitação) pode comprar 15% das HIS-1 do lote para colocar a COHAB como agente financeiro e destiná-las à demanda reprovada pelo agente financeiro oficial.

Um primeiro problema é que a SEHAB teria que pagar os valores de mercado desta habitação para a concessionária, que são, geralmente, maiores do que se a própria Companhia produzisse a unidade, cujos impactos em relação ao fundo público não estão medidos.

O segundo é que 15% das HIS-1 provavelmente não serão capazes de absorver toda a demanda por moradia gerada pela própria PPP. Das 806 HIS-1 contratadas no Lote 7, a porcentagem “reservada para situações extraordinárias” seria de 120 unidades, correspondente a apenas 15% das famílias sob ameaça de remoção. No Lote 12, 15% das 1.800 HIS-1 corresponde a 270 unidades, não chegando nem perto de atender as 6 mil famílias que têm suas casas ameaçadas pela PPP. Ou seja, o mecanismo da “reserva de unidades” não dará conta sequer das famílias que serão removidas para a construção das unidades nas áreas incorporadas.

Uma terceira regra nova deste edital em relação ao anterior foi, para o atendimento das famílias removidas (Grupo I), condicionar aos requisitos das Operações Urbanas respectivas, não apenas do enquadramento e aprovação nos Conselhos Gestores de ZEIS. O Lote 9/Lapa está dentro da Operação Urbana Consorciada Água Branca, e possui outras prioridades de atendimento, como por exemplo, atender as famílias removidas da Favela do Sapo e Aldeinha, que possivelmente poderão ser atendidas pela PPP. Mas é preciso ter cuidado, esta sobreposição de instrumentos sempre abre brechas. Observamos que futuras operações urbanas podem vir a criar critérios que se sobreponham aos enquadramentos previstos pelo edital, alterando-o. Como exemplo, vemos que o Lote 11/Lapa está inserido no PIU Pinheiros, que pode vir a ser combinado com instrumentos de gestão e financiamento nos moldes das OUCs.

Em síntese, estas análises demonstram como a PPP Habitacional é modelada sob uma racionalidade financeira que não tem como foco o atendimento dos atingidos (#AtingidosPelaPPP) ou dos mais pobres, que compõem o quadro de necessidades habitacionais mais urgente. A mera intenção de priorizar as famílias sob ameaça de remoção não é suficiente para garantir o seu atendimento pelo programa, uma vez que os requisitos apresentados pela COHAB não são compatíveis com suas realidades. E ainda, será o Agente Financeiro escolhido  pela Concessionária que fará, ao final, a definição dos beneficiários, e muitos dos candidatos – como vimos nos casos da PPP Estadual, ou pelos dados de endividamento – não serão enquadrados no financiamento, ou não serão incluídos nas unidades que eventualmente venham a ser compradas pela SEHAB, que parecem ser insuficientes.

 

(*) Amanda Silber Bleich é mestranda na FAU-USP, graduanda em Gestão de Políticas Públicas na EACH-USP e pesquisadora do LabCidade; Ana Pacheco é graduanda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade; Matheus Martins é graduando na FAU-USP e pesquisador do LabCidade; Vitor Inglez é doutorando na FAU-USP e pesquisador do LabCidade e Paula Freire Santoro é professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade e atualmente é pesquisadora do Programa Sabático do IEA-USP, além de bolsista de produtividade CNPq 2 (312674/2022-8).