Débora Ungaretti, Isadora Guerreiro, Isadora Marchi, Raquel Rolnik, Renato Abramowicz, Paula Santoro e Talita Gonsales, *
Na terça feira desta semana, 24 de novembro, há menos de uma semana das eleições, a esquina da Alameda Cleveland com a Rua Helvétia, na região conhecida como “cracolândia” no centro de São Paulo, amanheceu demolida. A área está localizada na quadra 38 do bairro de Campos Elíseos. Junto com a quadra 37 vizinha, vem sendo desocupadas pela COHAB da Prefeitura de São Paulo, mesmo durante a pandemia, para dar lugar ao projeto habitacional da Parceria Público Privada (PPP) Casa Paulista do Governo do Estado de São Paulo, projeto anunciado publicamente em 2017 mas até agora muito pouco detalhado.
O atropelo e falta de transparência dessas desocupações mais uma vez descumpriu orientações judiciais pela suspensão das remoções na pandemia. Ainda não se sabe exatamente quem e quantos são os moradores que tiveram que desocupar as suas casas nesta semana, se tiveram algum tipo de atendimento habitacional e para onde foram.
Segundo relatos que recebemos até o momento, um homem que vivia e cortava cabelos ali há 30 anos na semana que passou teve que deixar sua vida, sua história e todo seu universo social e afetivo construído ao longo dos anos na região da Luz para mudar para Brasilândia, zona norte de São Paulo. Um casal que também morava há mais de vinte anos e trabalhava em um lava-rápido, localizado em um estacionamento em que funcionava também um bar, teve o comércio lacrado e do dia pra noite receberam a notificação que o proprietário havia negociado com o poder público que desapropriou aquele espaço, forçando o casal a sair deixando tudo para trás. Não conseguimos contatá-los até o momento, mas segundo relatos de vizinhos e conhecidos teriam se mudado para o Grajaú, zona sul de São Paulo, distante pelo menos 30 Km da região central.
Combinada com o Projeto Redenção, a PPP Habitacional é, desde 2017, mais uma tentativa de transformação da região da Luz, local que é objeto de projetos e políticas desde pelo menos os anos 1970. O anúncio público desse mais recente projeto de reestruturação urbana aconteceu em maio de 2017, quando a Prefeitura, sem nenhum aviso ou comunicação prévios, começou a demolir imóveis na área, inclusive com pessoas dentro, em conjunto com uma ostensiva operação policial que provocou prisões, imóveis lacrados, pessoas feridas e direitos violados.
O Observatório de Remoções e outras entidades da sociedade civil, reunidas em torno do Fórum Aberto Mundaréu da Luz e do Conselho Gestor de ZEIS das quadras 37 e 38, acompanham de perto o caso e seus desdobramentos. Atualmente, centenas de moradores e comerciantes estão perdendo suas casas e imóveis para implantação de um projeto habitacional no qual muito provavelmente não poderão morar por não cumprirem requisitos financeiros e burocráticos do modelo proposto pela Prefeitura e Governo do Estado de São Paulo. Moradores da região há décadas estão perdendo seus quartos, apartamentos e locais de trabalho, com a promessa incerta de um atendimento futuro — de certo até agora tem apenas a remoção e a insegurança – para dar lugar a torres residenciais voltadas para pessoas de diferentes regiões de São Paulo, que estão na fila da COHAB e que tem renda suficiente para pagar as prestações da PPP.
A situação dos muitos inquilinos da área – sobretudo aqueles que não foram contabilizados pelo cadastramento da Secretaria de Habitação, realizado após as intervenções de 2017 – é ainda mais preocupante. Eles estão sendo removidos ou ameaçados de remoção sem nenhum atendimento, nem mesmo o Auxílio Aluguel. Em plena pandemia do covid-19, perdem suas casas ficam e passam ter suas vidas em risco.
Embora mais de três anos tenham se passado desde 2017, o que se vê é uma falta de transparência e diálogo por parte da prefeitura e governo do Estado com os moradores e comerciantes, impondo seu projeto de cidade e desconsiderando quem ali vive. O Conselho Gestor das Quadras 37 e 38 tem sido ignorado e seus procedimentos legais descumpridos – sendo que é essa a instância formal, formado por representantes do poder público, dos moradores, comerciantes e de entidades da sociedade civil, que deve discutir e aprovar todos os planos e intervenções na área, demarcada como ZEIS pelo Plano Diretor.
O projeto da PPP Habitacional já foi foi ampliado pela atual Prefeitura, que por meio da COHAB assinou seis contratos em diferentes regiões da cidade e licitou mais seis lotes, ameaçando de remoção milhares de famílias que estão se mobilizando contra os projetos e pedindo a permanência em suas moradias. A continuidade – ou a mudança – dessa forma de intervir na complexa questão habitacional do município, que nos moldes atuais propõe um projeto de cidade que exclui e remove, está em jogo nestas eleições municipais de 2020.
Mas afinal, o que são as PPPs Habitacionais?
As parcerias são justificadas como forma de atrair o setor privado para a produção de habitação de interesse social. Mas, para isso, o modelo de negócio elaborado precisa garantir a atratividade para o capital privado – em outras palavras, garantir as taxas de retorno demandadas por este. Para garantir estas taxas e reduzir os riscos dos parceiros privados no negócio, o modelo contratual prevê a disponibilização de terrenos para construção e para garantia do pagamento de valores mensais pelo poder público. Os privados também recebem o pagamento pela compra das unidades habitacionais pelas famílias moradoras, o que se dá por meio de empréstimos bancários. Para além da construção das habitações, a concessionária pode ainda ampliar seu negócio por meio de outros investimentos na área, combinada com a exploração comercial de terrenos públicos.
Grande parte dos terrenos onde serão implantados os empreendimentos são hoje ocupados por famílias de baixa renda, moradoras de pensões, cortiços, loteamentos irregulares consolidados ou em consolidação, favelas e ocupações, e muitos deles são demarcados no Plano Diretor como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). As ZEIS foram estabelecidas para garantir a permanências dos moradores, o direito à moradia e a gestão democrática sobre as intervenções realizadas no território.
Mesmo em áreas não demarcadas como ZEIS, a transformação urbana mobiliza terras e recursos públicos para gerar impactos profundos nos territórios e nos modos de vida dos bairros. Por isso, os projetos a serem implantados deveriam ser elaborados com intenso diálogo com os moradores tanto na sua concepção quanto em sua implementação. Na prática, ocorre o contrário: as PPPs introduzem uma lógica de desenho dos projetos de cidade definidos a partir de modelos econômicos, prazos e cláusulas contratuais.
Em pleno período eleitoral, o caso da PPP em Campos Elíseos nos mostra que a gestão urbana está longe de proteger adequadamente quem mais precisa e que o caminho para um outro projeto de cidade capaz de reduzir desigualdades só pode ser construído coletivamente. E este é um caminho que se constrói com ações cotidianas, não apenas com propostas e promessas de quatro em quatro anos.
* Pesquisadoras/es do LabCidade e do Observatório de Remoções
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