CREA/SP

Por Pedro Pires, Paula Freire Santoro, Rafael Negreiros, Simone Gatti e Guido Otero*

No dia 1 de maio de 2018 caía o Edifício Wilton Paes de Almeida (WPA) no Centro de São Paulo. A cena da fuligem, das vedações de metal e da estrutura de concreto armado sendo reviradas em si mesmas em queda livre no meio do fogo ficou marcada na memória violenta da cidade. Oficialmente, o evento ceifou a vida de 7 moradores e conta até hoje com 2 desaparecidos, que para efeitos práticos também devem ser contados como vítimas da tragédia. Até hoje, a maioria das 171 famílias que habitavam o edifício, conforme o cadastro realizado pela SEHAB alguns meses antes do desabamento, ainda não teve atendimento habitacional definitivo ofertado pelo poder público e vive com os R$ 400 do Auxílio Aluguel, suficiente para se manterem em permanente situação de vulnerabilidade habitacional, como outros que já apresentamos aqui.

Quedas de avião aqui em São Paulo, ou de edifícios em outros países, foram simbolicamente eleitas para dar lugar a monumentos à memória dos que morreram, dos que foram afetados e de suas famílias. O caso do WPA foi diferente: logo após seu desabamento a União quis vender o imóvel (!), compreendendo-o pelo seu valor de troca. Vários movimentos de moradia, compreendendo-o pelo seu valor de uso, ainda lutam para que neste lugar sejam produzidas moradias populares (classificadas como habitação de interesse social), reconhecendo que era este o uso do edifício antes da queda, e de mais outros tantos edifícios ocupados no Centro. Idealmente para os que moravam lá há vários anos, tornando-os visíveis, dentre as várias formas de moradia popular da região. Seria simbólico construir habitação popular no mesmo local em que pessoas morreram em decorrência da negligência do poder público na garantia do direito à moradia, além de afirmar um compromisso com os sobreviventes da tragédia.

Após o incêndio e a queda do edifício, foi tímido o debate na esfera pública sobre os conflitos habitacionais paulistanos, muitas vezes reduzido ao apontamento de responsáveis, críticas e criminalização de movimentos por moradia na região central, temas já discutidos aqui. Não foi incomum escutar a própria Prefeitura e veículos de imprensa referindo-se aos movimentos como “invasões” ou “ocupações irregulares”. No mesmo dia da tragédia, ao anunciar a vistoria emergencial de 70 prédios no centro, o prefeito Bruno Covas disse ter a sensação de “dever cumprido“, após reuniões realizadas com governos e movimentos, mas que não surtiram efeitos concretos para as famílias que o ocupavam.

Ao final de julho de 2018, a Prefeitura divulgou um resumo das vistorias realizadas em 51 edifícios ocupados no centro da cidade, nas quais foram avaliadas as condições de segurança para seus moradores. Segundo o próprio Secretário de Habitação na época, Fernando Chucre, as condições de habitação eram muito melhores do que o esperado pela Prefeitura, o que revela certo desconhecimento da Prefeitura quanto à realidade dos movimentos por moradia central.

 A doação do terreno veio com encargos

Mais recentemente, o poder público municipal começou a negociar a transferência do imóvel para construir novas unidades habitacionais no local. O imóvel era da União, e após longa negociação com a SPU (Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União), a doação do imóvel foi formalizada no dia 30 de abril de 2020. Segundo o contrato de doação entregue aos conselheiros na última Reunião Ordinária da Comissão Executiva da Operação Urbana Centro, no dia 15 de junho, cabe à Prefeitura a construção de 90 unidades habitacionais em modalidade de Empreendimento Habitacional de Interesse Social (EHIS) que atenda a famílias de renda mensal não superior a 5 salários mínimos, valor questionável frente à necessidade de atendimento a famílias de renda mensal de até 3 s.m. A necessidade de habitação para esta faixa de renda representa cerca de 75% das necessidades habitacionais do município!

Para viabilizar a construção do empreendimento, o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico) retirou a preservação que incidia sobre o imóvel e área envoltória desde 1992 – era um edifício tombado por ser um relevante exemplar da memória da arquitetura moderna na cidade de São Paulo. Suas soluções estruturais únicas à época na cidade, como o recuo dos pilares da fachada para destacar dos vidros esverdeados na paisagem do Largo do Paissandú, fizeram-no ser contemplado formalmente na legislação de tombamento do Conpresp pelo seu “interesse histórico, arquitetônico, paisagístico ou ambiental, determinando a preservação de suas características externas”, segundo a resolução do órgão.

Para que a doação acontecesse, em abril, os vereadores aprovaram a toque de caixa a inclusão de um substitutivo à Lei da Pandemia (Arts. 19 e 20) que incluiu a regulação necessária para formalizar o acordo com a União. No debate público os vereadores argumentaram que o imóvel seria incorporado à PPP Habitacional, mas na prática, o termo de doação previa que ele receberia solução habitacional no âmbito do Programa Pode Entrar (já falamos sobre o Programa aqui). Este programa, lançado oficialmente  em dezembro do ano passado, prevê a construção e venda de unidades pela própria Prefeitura com recursos provenientes do Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano) (R$ 499 milhões), de operações de crédito de bancos nacionais (R$ 170 milhões) e das Operações Urbanas (404 milhões). Além da PPP Habitacional Casa da Família, o Pode Entrar parece ser um dos principais programas habitacionais em curso na cidade para a população de baixa renda, já que o Governo Federal extinguiu o atendimento habitacional à faixa 1 do MCMV, como também já comentamos aqui.

Segundo informações disponíveis no site da prefeitura e em apresentação publicada, as famílias contempladas pelo Pode Entrar serão dividas em dois grupos: o primeiro na faixa de renda mensal de até 3 s.m. (R$ 3.135), para as quais serão disponibilizados subsídios e financiamento em 360 meses com prestações que comprometam até 15% da sua renda mensal; e o segundo na faixa de renda de até 6 s.m., às quais a compra será viabilizada por meio de carta de crédito. Já os recursos serão aportados prioritariamente ao atendimento a famílias cadastradas junto à COHAB e  famílias provenientes de remoção de áreas de risco ou que tenham sofrido remoção por intervenções urbanas (40%); a entidades organizadoras de empreendimentos habitacionais (40%); e para locação social ou carta de crédito (20%).

Críticas ao processo e ao programa apresentado na OU Centro

Para reivindicar o investimento para o projeto, a equipe da SEHAB responsável pelo novo WPA apresentou um estudo preliminar na última Reunião Ordinária da Comissão Executiva da Operação Urbana Centro (a partir do slide 28) – com 90 apartamentos comuns, mais 18 para idosos e portadores de necessidades especiais (1o e 2o andar), além de um térreo com usos institucionais (Secretaria de Cultura) –, buscando o aval para utilizar parte dos recursos da Operação para o desenvolvimento do projeto.

O debate junto à Comissão apontou várias críticas ao processo de discussão da destinação do imóvel, que até agora não foi participativo, e ao programa do projeto, que não envolve apenas usos sociais para as rendas mais baixas (até 3 s.m.). Sobre a possibilidade de utilizar os recursos da OU Centro na construção do empreendimento, o Conselho da Operação se comprometeu em revisar o material apresentado, e o tema será rediscutido na próxima Reunião Ordinária, marcada para o próximo dia 31.

Por que não definir os sobreviventes da tragédia como os beneficiários das unidades?

Na prática, a seleção dos moradores do futuro conjunto seria feita através do cadastro SEHAB e da COHAB e, juntamente com a distribuição das unidades por meio de compra financiada, com recortes de renda altos e necessidade de formalização que nem sempre as famílias conseguem atender, entre outros aspectos de definição da demanda, fariam com que as famílias sobreviventes da tragédia fossem completamente excluídas da possibilidade de voltar a habitar o lugar.

Como garantir que as unidades serão destinadas para locação social e não para compra e venda?

A prefeitura anunciou na imprensa e na reunião do Comissão Executiva da Operação Urbana Centro que as unidades serão destinadas para locação social.

A destinação das unidades para a locação social será possível pois é uma das modalidades previstas no Pode Entrar, mas com apenas 20% da verba total do Programa, que divide com as cartas de crédito. A locação seria uma alternativa para impedir que fossem vendidas, de preservação dos investimentos públicos na direção de garantir o direito à moradia a famílias que mais precisam de apoio, inclusive àquelas que ocupavam o edifício antes do desabamento.

Contudo, o contrato permite que as unidades possam ser vendidas após 5 anos, período no qual elas permanecem inalienáveis (cláusula oitava, inciso V). Em um lugar tão simbólico para a luta por moradia em São Paulo, deixá-lo suscetível à crescente valorização imobiliária do Centro e deixar que seus moradores sejam gradualmente substituídos por outras faixas de renda seria um sinal de que o poder público estaria colaborando com a substituição de população em curso – de famílias com rendas mais baixas por rendas mais elevadas e com possibilidade de endividamento para obterem o financiamento habitacional –, em um processo de apagamento das formas de morar populares. Qual então a garantia de que as unidades serão mesmo para a locação social?

→ Por que não fazer apenas HIS 1, já que o imóvel é público?

Mesmo que o teto de renda familiar seja inferior ao de 6 s.m. mensais do Programa Pode Entrar, a inclusão de famílias de até 5 s.m. no contrato de doação à Prefeitura NÃO poderia concentrar unidades nas faixas de renda mais altas, próximas dos 5 salários mínimos. Isso distorceria a finalidade que um empreendimento na região deveria ter: o atendimento às famílias mais pobres.

→ Por que não fazer um concurso público de projeto para o empreendimento, já que terá um grande valor simbólico?

Alguns conselheiros perguntaram se, considerando o grande valor simbólico do empreendimento, a proposta de se fazer um concurso público, encaminhada no final de maio pelo IAB à Sehab, a pedido da SP Urbanismo e da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, tinha sido analisada. Segundo a SEHAB, a proposta não havia sido comunicada a ela e a Comissão se comprometeu em trazer novos esclarecimentos na próxima sessão.

→ Por que não discutir e planejar a transformação com os moradores do edifício? 

O terreno do antigo Wilton Paes de Almeida fica localizado na esquina da Rua Antônio de Godói e da Avenida Rio Branco, em uma região com sensíveis necessidades habitacionais no centro de São Paulo. Na quadra onde o terreno está localizado, assim como em outras do seu entorno, foram demarcadas diversas Zonas Especiais de Interesse Social, onde prioritariamente se deve construir habitação de interesse social (HIS). No caso das ZEIS 1 e 3, o Plano Diretor Estratégico de 2014 (PDE 2014) de São Paulo obriga o poder público a instalar um Conselho Gestor (CG) para a elaboração de um plano de ZEIS que deve ser construído com os moradores da área, em um processo democrático e participativo.

O mapa abaixo mostra que o imóvel do WPA, representado em rosa, não é uma ZEIS, mas a quadra onde está localizado abriga quatro ZEIS 5 e que há ao menos outras oito – entre ZEIS 5 e ZEIS 3 – na sua vizinhança imediata. Ou seja, é uma região densamente marcada por estas Zonas nas quais há a diretriz legal para se produzir Habitação de Interesse Social.

Na ocasião da revisão do Plano Diretor Estratégico de 2014 vários edifícios ocupados por movimentos de moradia no Centro foram marcados como ZEIS 3, mas não o terreno do WPA. Fez-se uma avaliação que seria muito caro transformar o edifício de escritórios em residencial, isso sem falar no fato de que era um imóvel preservado pelo patrimônio histórico, que trazia outras restrições. O que não significou um processo de desocupação do edifício. Mas as circunstâncias mudaram: o edifício pegou fogo, não existe mais, agora existe um imóvel sem construções e um número grande de famílias desassistidas. Se fosse ZEIS, certamente um conselho deveria ser formado e um plano de urbanização elaborado juntamente com os moradores que foram afetados pelo incêndio.

E por que não discutir o projeto da mesma forma, reconhecendo que a área teria todos critérios para vir ser uma ZEIS, ter um conselho e discutir uma solução com a população moradora? É possível montar estrutura semelhante à dos conselhos de ZEIS, não há impedimento. Aqui argumentamos de que não precisa ser marcada como ZEIS e ter um conselho montado oficialmente, mas é preciso reconhecer os moradores que habitavam na área.

Ainda, é preciso pensar projeto em uma escala ampliada, da área central, englobando outras ZEIS localizadas na própria quadra e até junto com as quadras vizinhas. Neste sentido a prefeitura poderia dar andamento à antiga promessa de produzir, em escala, habitação para aqueles que moram na região de forma precária e ainda envolver a população num processo de franca participação.

E as famílias, como tantas outras, seguem no Auxílio Aluguel…

Por vezes parece que a solução foi dada, mas Auxílio Aluguel não é solução definitiva!

Se a situação de quem está no Auxílio Aluguel é precária, no caso do WPA, mais ainda. Ficou acertado em acordo realizado em audiência judicial envolvendo os governos do Estado e da Prefeitura e a Defensoria Pública do Estado logo após o desabamento, que o primeiro ano do Auxílio seria pago pela gestão estadual e que em seguida o município passaria a pagá-lo. A portaria que trata do Auxílio Aluguel exige uma renovação anual, e estabelece um teto de permanência de no máximo 2 anos. Ora, a histórica sucessão de negociações e esperas mantém as 171 famílias que estão no Auxílio em situação de precariedade e transitoriedade permanente, após mais de dois anos da tragédia, há ainda a necessidade de ir à Justiça para pedir a renovação do benefício. Atualmente, as famílias e a Defensoria Pública do Estado buscam por vias jurídicas a continuidade do pagamento, assim como uma solução habitacional definitiva para o terreno do WPA que as inclua.

E qual será mesmo o projeto?

Tendo em vista as eleições municipais previstas para novembro e o compromisso assinado pela Prefeitura no contrato de doação de prazo de 0 a 12 meses para a apresentação da licitação do projeto executivo (cláusula quarta), é de extremo interesse da atual gestão que a escolha do projeto seja realizada antes do final do ano. Cumprindo uma das exigências para a aprovação da doação, a Prefeitura apresentou à SPU um projeto preliminar durante as negociações, mas ainda não está claro se este será mesmo o projeto a ser construído. Nem está evidente se será feito um concurso público, como o apresentado pelo IAB.

 Em suma… 

A tragédia parece ter sensibilizado os gestores públicos que sinalizaram, de boa fé, a necessária destinação do terreno para a produção de interesse social. Mas ainda é preciso aprofundar criticamente esta decisão na direção de superar a falta de gestão democrática e participativa da transformação pretendida. É preciso incluir os afetados e produzir para as faixas de renda dos grupos de maior vulnerabilidade (HIS 1, até 3 s.m.), com a garantia de atendimento através da locação social, e que se apresente claramente o projeto arquitetônico que será desenvolvido e aponte com que recursos será construído.

Acreditamos que é possível avançar no reconhecimento da necessidade habitacional que motivou a ocupação do edifício e que culminou na tragédia que assistimos todos, pela televisão e filmes de Whatsapp.

* Pedro Pires é graduando em arquitetura e urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, pesquisador do LabCidade FAUUSP.
Paula Freire Santoro é coordenadora do LabCidade e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
Rafael Negreiros Dantas de Lima é formado em direito, mestre pela FAUUSP e Defensor público do Estado de São Paulo, atua junto ao Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo.
Simone Gatti é arquiteta e urbanista, doutora pela FAU USP, pesquisadora do NAPPLAC USP e professora da Escola da Cidade. É representante do IABsp na Comissão Executiva da Operação Urbana Centro e no Conselho Municipal de Política Urbana.
Guido Otero é arquiteto, mestre em planejamento urbano pela FAUUSP, e representante do IABsp na Comissão Executiva da Operação Urbana Centro.