Por Aline Viotto* e Bianca Tavolari**
O prefeito Fernando Haddad sancionou hoje a lei de parcelamento, uso e ocupação do solo, também conhecida como lei de zoneamento. No texto da lei 16.402/2016, foram vetadas algumas mudanças feitas pelos vereadores poucos dias antes da votação final na Câmara Municipal, como supressão de áreas demarcadas como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) e ZEPAM (Zonas Especiais de Proteção Ambiental). No entanto, permaneceu na lei um dos pontos mais polêmicos e problemáticos, o artigo 174, que altera a quantidade de unidades habitacionais e vagas de garagem que podem ser construídas nos eixos de estruturação urbana. A alteração é em relação ao Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade, cuja revisão terminou em 2014, com a aprovação da lei n. 16.050/2014.
O artigo 174 estabelece incentivos específicos para a Zona de Eixo de Estruturação Urbana (ZEU). As áreas que compõem a ZEU já estavam descritas e demarcadas no plano diretor como “eixos de estruturação urbana”. São chamadas de “eixos” as áreas dotadas de sistemas de transporte coletivo de média e alta capacidade e potencialmente aptas ao adensamento construtivo e populacional (art. 75) e essa noção ganha destaque como uma das diretrizes do PDE (art. 22). A ideia é fazer com que mais pessoas, de diferentes faixas de renda, possam morar em lugares próximos de terminais de ônibus, estações de metrô e trens. É por isso que, nos eixos, o plano afirma que o transporte individual motorizado deve ser desestimulado (art. 23, VII) e que a produção imobiliária de iniciativa privada deve diversificar as formas de implantação das edificações nos lotes e ampliar a produção de Habitação de Interesse Social (HIS) e de mercado popular (art. 23, VIII, a e f). Essa diretriz fica ainda mais clara nos parâmetros do Quadro 2, anexo à lei do PDE, que estabelece, para essas zonas, a cota parte máxima de 20m2 e a área de garagem máxima de 30m2. A cota parte máxima estabelece, de maneira explícita, um estímulo ao adensamento nessas regiões, ou seja, determina que os terrenos situados nos eixos devem comportar um número de unidades habitacionais elevado. No caso de um terreno hipotético de 1000m2, o empreendedor deve obrigatoriamente construir, pelo menos, 50 unidades habitacionais, o que poderia levar a unidades habitacionais com área de aproximadamente 80m2. Além disso, a regra nessas áreas é de apenas uma vaga de garagem considerada como área não computável por unidade habitacional, já que a diretriz é fomentar o uso do transporte público. O plano diretor de 2014 traz dois avanços em relação ao anterior: não exige que o empreendimento tenha vagas de garagem, o que o plano anterior exigia; e, não proíbe que haja mais que uma vaga por unidade, mas estas passam a ser contabilizadas na área construída computável e, portanto, seriam pagas, o que desestimularia sua construção.
No entanto, o texto final do zoneamento aprovado na Câmara e sancionado por Haddad, agora em 23 de março, introduz mudanças importantes no padrão de ocupação dos eixos de estruturação. O artigo 174 passa a permitir que, pelo período de 3 anos, as regras previstas no plano diretor não sejam cumpridas. Isso porque ele determina que a cota parte máxima nas ZEU seja de 30m2 – ao invés de 20m2 – e autoriza que haja duas vagas de garagem nos empreendimentos – ao invés de limitar a uma única vaga. O que isso representa? Se tomarmos o mesmo terreno hipotético de 1000m2, com o novo critério do artigo 174, o número de unidades que o agente imobiliário está obrigado a construir cai de 50 para 33, o que significa menos gente morando justamente nas áreas que deveriam ser mais adensadas. E, além de o número de moradores diminuir, a metragem dos apartamentos passa a ser maior – de aproximadamente 120m2. Como o valor dos imóveis é proporcional à metragem, não estamos falando apenas de apartamentos maiores, mas também mais caros, o que inibe a produção de HIS nessas áreas. Além disso, cada uma das unidades habitacionais passa a poder ter duas vagas de garagem. Uma família com dois carros dificilmente usaria o transporte coletivo diariamente, como também não pertenceria a uma faixa de renda que depende das políticas públicas de habitação para ter acesso à moradia.
Existe aqui uma tensão entre a nova lei de zoneamento e o plano diretor. A lei de parcelamento, uso e ocupação do solo pode mudar diretrizes e critérios estabelecidos no plano? Qual é a relação entre o PDE – que também é, ele próprio, uma lei – e a lei de zoneamento? Há hierarquia entre eles? Em outubro do ano passado, os ministros Supremo Tribunal Federal trataram de algumas dessas questões na decisão ao recurso extraordinário n. 607.940. A discussão teve origem a partir de uma lei, promulgada no Distrito Federal, que previa regras específicas de parcelamento do solo para condomínios fechados. O debate no STF foi menos sobre a legalidade ou não dos condomínios fechados e mais sobre a possibilidade de que uma lei como essa fosse editada fora do plano diretor, ou seja, como uma lei avulsa.
À primeira vista, essa discussão parece estritamente técnica. E, no entanto, ela está além da mera classificação de normas jurídicas. A decisão final do STF nos dá critérios para analisar a relação entre a lei de parcelamento, uso e ocupação do solo e planos diretores. Em outras palavras: a lei de zoneamento pode alterar ou contrariar o plano diretor da cidade? A tese estabelecida pelo STF com repercussão geral – traduzindo: que vincula todas as decisões posteriores sobre o mesmo tema – responde que os municípios com mais de vinte mil habitantes podem sim editar leis urbanísticas separadas do plano. Mas estipula uma condição fundamental: essas leis têm que ser compatíveis com as diretrizes do plano diretor. Ou seja, a resposta à pergunta feita anteriormente é “não”: a lei de parcelamento, uso e ocupação do solo não pode contrariar as diretrizes do plano diretor.
“Senão destrói o plano diretor. E é o que nós assistimos no Brasil afora. Se nós não assentarmos aqui uma tese de respeito à lei de diretrizes urbanas, nós vamos continuar a permitir que os planos diretores sejam uma ficção.”
Ministro Dias Toffoli, no debate sobre o recurso extraordinário n. 607.940
Apesar de a incompatibilidade estar clara neste caso, o secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, defende que o artigo 174 não contraria o PDE: “Essa é uma regra transitória, que valerá por três anos improrrogáveis e só impactará em 2% do território de eixo”, diz ele. Em primeiro lugar, o fato de a regra valer apenas por 3 anos não significa que não há alteração do plano diretor. Em segundo lugar, se os padrões da lei podem parecer transitórios à primeira vista, a nova redação já é o bastante para estabelecer uma situação definitiva de ocupação dos eixos. Três anos são mais do que suficientes para que projetos com menos unidades e mais vagas de garagem sejam protocolados na prefeitura e garantam aos empreendedores a possibilidade de construir conforme esses novos índices, mesmo que já tenham passado os três anos de vigência previsto no artigo. Isso porque, o chamado “direito de protocolo” garante ao empreendedor o direito de construir conforme os parâmetros em vigor no momento em que o projeto é apresentado à prefeitura, e não os do momento de aprovação da construção. Assim, pode ser que parte da história do plano diretor de 2002 seja novamente repetida: todos os terrenos disponíveis nos eixos poderão ser “reservados” pelos empreendedores por meio do protocolo de projetos que serão construídos a longo prazo, inviabilizando a mudança do padrão de ocupação dessas áreas conforme proposto pelo PDE.
“É que o plano diretor é a constituição do ordenamento urbano, e as leis que forem tratar sobre isso têm que ser compatíveis com ele.”
“Têm que ser compatíveis, porque o controle judicial, inclusive, fica mais fácil.”
Ministro Dias Toffoli e Ministra Cármen Lúcia, respectivamente, no debate sobre o recurso extraordinário n. 607.940
O prefeito Fernando Haddad deveria ter vetado o artigo 174 porque se trata de um retrocesso na política urbana da cidade. Mas, ao que parece, essa não foi uma razão suficiente. Ao contrariar o plano diretor, o conteúdo do artigo fica sujeito a ser questionado no judiciário. Como foi aprovada com repercussão geral, a tese do STF tem que ser seguida por todos os municípios e serve como um forte argumento para a sociedade civil organizada contrária ao artigo 174. Não é muito difícil perceber a incompatibilidade nesse caso.
*Aline Viotto é bacharel e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo.
**Bianca Tavolari é bacharel, mestre e doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia – CEBRAP.
Republicou isso em Política Urbanae comentado:
Excelente artigo de duas excelentes juristas urbanas.
Acredito que a medida não é a ideal (apesar de não ter nenhuma melhor), mas não a vejo como um retrocesso.
Caso o mercado interprete que há muitas travas no novo zoneamento (ou simplesmente não está habituado com as novas regras), somado à crise econômica (que diminui a demanda por bens), ele pode deixar de utilizar o potencial do seu terreno dando, por exemplo, um uso comercial horizontal não desejável, tornando a medida da cota parte (que busca incentivar o uso da infraestrutura existente e prevista) ineficaz.
Então, uma (não necessariamente a melhor) forma de manter a atividade imobiliária, ou criar um período de “aceitação” do novo marco regulatório, é abrandar certas regras (temporariamente), como a exposta no art. 174.
Ainda, o percentual de lançamentos de UH’s de 80 m² a 120 m² é baixo, uma vez que poucos podem comprar, e dependendo da região em que se encontra a ZEU não é desejável construir um apartamento com essas medidas, não há atratividade (essas regiões costumam ser localizações com grande potencial de construção de HIS e HMP).
OBS:
O número mínimo de UHs é calculado por uma fórmula na qual uma das variáveis é a cota parte (ainda há área, CA utilizado e CA máximo do terreno). Então no terreno hipotético de 1000 m², o empreendedor deve construir, pelo menos, 13, 25, 38 e 50 unidades habitacionais para os CA’s utilizados 1, 2, 3 e 4, respectivamente (caso o terreno esteja em ZEU). O que equivale a dizer que cada unidade pode ter no máximo 80 m² computáveis (computáveis não corresponde necessariamente a construídos).
Olá, Hyun.
Muito obrigada por seu comentário.
Estamos defendendo que manter o artigo 174 da nova lei de zoneamento é um retrocesso porque ele acaba com a noção de “eixo de estruturação urbana” do plano diretor, ou seja, acaba com a ideia de que tem que ter adensamento, com moradores de diferentes rendas, em áreas com sistema de transporte consolidado. Em outras palavras: vamos permitir que menos gente more nesses lugares e que pessoas mais ricas e usuárias habituais de carro morem perto da infraestrutura de transporte público que existe. Ou seja, quem de fato usa o transporte público diariamente vai continuar longe dele.
Discordo da ideia de que não há outra política possível, de que não há outra proposta melhor. Só manter os eixos de estruturação urbana já seria um passo importante pra cidade, o zoneamento não precisaria interferir nisso necessariamente.
E o artigo beneficia diretamente o mercado imobiliário, que vai poder construir apartamentos maiores, com duas vagas de garagem e mais caros em áreas bem localizadas e providas de infraestrutura.
Abraços,
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