Por Lara Giacomini, Vitor Inglez, Débora Ungaretti, Matheus Martins, Renato Abramowicz e Raquel Rolnik (*)

A atuação da Polícia Militar (PM) de São Paulo, que nas últimas semanas tem sido foco de denúncias por uma série de abusos de violência, tortura e execução, não se restringe infelizmente a essas violações. Em nosso mapeamento colaborativo e atuação nos territórios, a presença e ação tanto da PM quanto da Guarda Civil Metropolitana (GCM), de âmbito municipal, aparecem de forma presente e marcante na efetivação de remoções e de violações de direitos, fazendo com que destaquemos a contaminação e espraiamento da lógica da militarização pelo tecido social e em esferas em que antes essas dinâmicas não eram observadas desta forma.

Sob a gestão de Guilherme Derrite, a Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP) tem investido de forma intensa nas forças policiais militares, seja em suas atribuições, dando-lhes protagonismo em investigações de crimes de menor potencial ofensivo – incumbência da Polícia Civil – e nas operações de repressão ao crime organizado, seja no caixa da Polícia Militar (PM), ampliando significativamente os gastos com o aparato técnico e bélico da corporação, além do aumento de bonificações.

Na prática, o fortalecimento desses agentes têm refletido sobre a sua presença cada vez mais intensa na execução de remoções de ocupações e comunidades, valendo-se de meios como bombas, gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha para eliminá-las.

Paralelamente, na escala municipal, as Guardas Civis Municipais, ou ainda GCMs, vêm passando por um processo de intensificação de militarização, como têm reportado veículos como Brasil de Fato e Ponte Jornalismo.

Afastadas de sua atribuição originária, de corporações de apoio à proteção do patrimônio público, as CGMs mostram-se cada vez mais próximas das forças militares, tanto em quesitos como vestimentas e instrumentos quanto em seu modus operandi — marcado por ações violentas de repressão e por uma relação conflituosa com trabalhadores e pessoas em situação de vulnerabilidade social, seja ambulantes, pessoas em situação de rua, ou na repressão violenta a ocupações recentes.

A capilarização do ethos e lógica da militarização pelo tecido social vem se intensificado não apenas retoricamente, mas com políticas a partir da ascensão ao poder da extrema direita nos últimos anos nas esferas de governo federal (2019-2022), e das esferas estadual e municipal.

A intensificação da militarização da guarda metropolitana, inclusive, revela o fortalecimento e alinhamento da Prefeitura de Ricardo Nunes, reeleito na capital paulista com apoio aberto e ostensivo do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, com a linha e posição políticas do Governo do Estado.

Em 2024, as informações coletadas pelo Observatório de Remoções (OR) mostram o reforço da presença de ambas as instituições em processos de expulsão e conflitos em torno da moradia na Região Metropolitana de São Paulo, confirmando uma tendência já apontada pelos mapeamentos colaborativos anteriores do OR.

Ao todo, 83,6% das remoções totais e parciais foram executadas por forças policiais ligadas à PM e às GCMs, incluindo a ROMU (Ronda Ostensiva Municipal), considerada a “tropa de elite” das guardas no modelo de rotas muncipais.

Dentre as quarenta e nove (49) remoções totais e parciais mapeadas, quarenta e uma (41) delas tiveram envolvimento desses agentes, sendo (24) delas em operações conjuntas. Muitos desses casos foram violentamente reprimidos em um intervalo de tempo de menos de 48 horas de formação da ocupação, valendo-se do chamado “estado de flagrância” para executar a remoção dos moradores.

Estado de flagrância é o período compreendido entre o exato momento do chamado “esbulho possessório” (o termo técnico e criminalizante que designa a realização de uma ocupação) até 24h ou 48h. Durante esse período, se considera que o “crime” está em flagrante, o que permite a ação da polícia sem ordem judicial para repressão imediata.

No caso das GCMs ainda existe uma discussão complementar. A lei autoriza que o proprietário que teve sua propriedade ocupada reaja imediatamente e proteja sua posse por sua própria força (a chamada autotutela da posse, “desforço imediato”).

Desde a repressão das ocupações das escolas pelos movimentos secundaristas, o Governo de São Paulo e outros entes passaram a implementar a tese de que essa “autotutela”, nos casos de bens públicos, possa ser realizada pelas forças de segurança. De acordo com essa tese, um imóvel da União poderia, então, ser desocupado imediatamente pela Polícia Federal (PF), um imóvel do estado pela PM, e do município pela GCM.

Um desses casos, ocorrido no início do ano, é emblemático na instrumentalização das GCMs pelas prefeituras como plataforma político-eleitoral, sobretudo num contexto social marcado por reivindicações de ordem pública nas grandes cidades.

No dia 20 de janeiro, o prefeito de Osasco, Rogério Lins (Podemos), junto de Gerson Pessoa, então candidato à sucessão do cargo pelo mesmo partido e vencedor das eleições de 2024, divulgou um vídeo em suas redes sociais exibindo uma ação conjunta entre a GCM e a PM, que impediu um grupo de cerca de 600 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) de ocupar um terreno particular.

A espetacularização da repressão de ocupações, cada vez mais frequente, assim como o slogan “Invasão, aqui em Osasco, não!”, com o qual Lins finaliza a gravação, anunciando uma política de “tolerância zero” às ocupações, que notamos em outras cidades e territórios também, como apresentaremos a seguir, trazendo para o espaço urbano um movimento que se organizou no campo como uma reação à Campanha Despejo Zero – um coletivo de movimentos sociais do campo e da cidade que junto de entidades da sociedade civil organizou durante a pandemia uma forte campanha, exitosa, contra a realização de remoções –.

Por mais que haja diferenças entre o movimento de “invasão zero” – organizado nas zonas rurais sobretudo por grupos armados autônomos e violentos –, com as remoções efetivadas pela atuação de instituições de Estado, como a PM e a GCM, notamos uma mesma atmosfera social, que vai se fortalecendo e disseminando, de intolerância, truculência e negação de qualquer diálogo ou de direito à estratégia política e histórica de ocupar denunciando a falta de alternativas de moradia e existência de imóveis vazios por décadas que não cumprem sua função social, nos termos da Constituição brasileira.

Essa dinâmica também é identificada na capital. Na Zona Norte de São Paulo, em Janeiro, registramos uma ação comandada pelo subprefeito de Pirituba, Marcos Zerbini (PSDB), que fez uso das forças de GCM, utilizando métodos como spray de pimenta e retroescavadeira, para promover uma remoção parcial da ocupação Quintal da Resistência.

Segundo relatos de moradores, a ação deixou ferimentos graves em pelo menos uma criança e aproximadamente 300 famílias do Grupo Pirituba Sem Teto, cerca de 1000 homens, mulheres, crianças e idosos, em situação de insegurança e vulnerabilidade.

A região central, já citada em balanços anteriores do OR como palco de disputas e violências em torno da questão habitacional, continua sendo o epicentro de conflitos em torno da moradia (conforme mapa abaixo) e alvo de operações policiais violentas.

Uma tentativa de ocupação de um imóvel na Praça do Patriarca, ligada ao Movimento de Moradia do Centro (MMC), foi severamente reprimida pela GCM em menos de 24 horas, com uso de tiros de borracha e a prisão de uma das lideranças do movimento.

Em outubro, três (3) ocupações foram realizadas em único dia pela Frente de Luta por Moradia (FLM) na Bela Vista e na Sé. Essas retiradas se deram também durante o estado de flagrância, mas desta vez sob ação Tropa de Choque da Polícia Militar, em uma operação transmitida por grandes veículos de comunicação.

Segundo a coordenação do movimento, as famílias ocupantes foram recebidas com o uso de bombas de gás e estilhaços, deixando pessoas feridas.

(Remoções na região central de São Paulo em 2024 – clique aqui para conferir em tela cheia)

Também no centro de São Paulo, como temos alertado em uma série de textos, o projeto de transferência da sede administrativa do governo do estado para o entorno do Parque Princesa Isabel tem ameaçado cerca de 800 famílias moradoras e pretende demolir cinco quarteirões.

Além desses quarteirões diretamente ameaçados pelo projeto, identificamos, no território, uma combinação de ações judiciais e administrativas executadas em grande medida pela PM e pela GCM, que estão levando à expulsão e ameaça de expulsão de centenas de pessoas.

É o caso de operações que vêm sendo deflagradas na área central. Uma delas foi a operação Salus et Dignitas, realizada em agosto deste ano, autorizada pelo 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital do Tribunal de Justiça de São Paulo e realizadas em conjunto pelo Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado (GAECO) do Ministério Público, governo do Estado, Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF), Receita Federal e do Ministério Público do Trabalho (MPT).

A operação visava combater o que vem sendo nomeado por esses agentes estatais como “ecossistema ilícito” criado pelo PCC. Dentre outras medidas, a operação promoveu o fechamento de pensões e hotéis na área central usados, segundo o GAECO em ação cautelar, para distribuição de substâncias entorpecentes ilícitas, lavagem de dinheiro, dentre outros crimes.

A proposta de ação cautelar pelo GAECO foi subsidiada por representação da Polícia Civil, comandada pela Secretaria de Segurança Pública de Derrite, que apresentou uma listagem de imóveis constituintes do “ecossistema ilícito”.

Dezenas de lacrações e interdições de pensões e hotéis na região central passaram a ser realizadas, despejando as famílias sem qualquer aviso prévio e sem garantir tempo hábil de retirada dos pertences pessoais, conforme relatos levantados em campo.

Parte dessas lacrações e interdições se deram em ocupações, pensões e hotéis que já recebiam ameaças de fechamento em processos de fiscalização em massa por parte da Subprefeitura da Sé, bem como tinham relatos de constantes ameaças e assédios contra os seus moradores por parte da GCM e da PM.

Ao longo dos anos, acompanhamos a realização tanto por agentes da PM quanto da GCM de: toques de recolher e ameaças a moradores e comerciantes, interdições e bloqueios de pequenos comércios (muitas vezes sem nenhum amparo legal, e na quase totalidade representando um sufocamento para o funcionamento e continuidade de sua permanência), a realização de revistas de bens e corporais, interdições de ir e vir, além de violências mais abertas e explícitas nos momentos chamados de “confronto” – o termo supõe algum equilíbrio e simetria de recursos e correlações de força, o que não é o caso na região conhecida como “cracolândia”.

Nesses episódios, é “tiro, porrada e bomba” – aqui não é literal – com o excesso da violência atingindo não só as pessoas do assim chamado “fluxo”, mas também moradores e circulantes. Foram inúmeros os relatos que recebemos de bombas e o cheiro de pimenta invadindo casas – quando não a própria polícia, literalmente, com o pé na porta entrando em pensões e quartos durante operações, com ou sem mandado judicial – e atingindo quartos em que crianças dormem.

Execuções cometidas por agentes do Estado também acontecem nesses momentos de maior conflito, mas muitas das vezes investigações e punições não avançam, não só pela impunidade histórica que esses agentes se beneficiam – algo que justamente está sendo firmemente denunciado e contestado na atual ofensiva contra a violência policial –, mas também pelo medo muito justificado das pessoas que vivem, circulam e trabalham na região têm de denunciar e sofrer represálias posteriormente.

Por conta da mobilização da rede contra remoções, a interdição de cerca de cinco imóveis na quadra 48 dos Campos Elíseos contou com o acompanhamento de repórteres e do Conselho Tutelar, que denunciaram abusos que estavam sendo cometidos.

Uma reunião emergencial online sensibilizou os promotores e juízes envolvidos no caso, quando se reconheceram erros na listagem dos imóveis, onde restou demonstrado que não havia comprovada materialidade entre vários imóveis e o “ecossistema ilícito”, ou, ainda, as medidas de repressão aos moradores não eram proporcionais à vinculação existente.

Em alguns casos, por exemplo, foram encontradas quantidades pequenas de substâncias entorpecentes na área comum de um imóvel. A hipótese é que, por não ter tranca na porta principal, pessoas usuárias tinham acesso às áreas comuns e se utilizavam delas para guardar pertences pessoais e pequenas quantidades de substâncias entorpecentes nessas áreas.

Não havia, no entanto, nenhuma vinculação comprovada entre os moradores do imóvel e as pessoas que acessavam as áreas comuns, tampouco uma quantidade de substâncias encontradas que indicasse o uso pelo tráfico de forma a justificar o despejo e lacração.

Assim, o “ecossistema ilícito” se trata, na realidade, de uma generalização descuidada da criminalização de todo um território, fazendo com que o que o próprio Ministério Público identificou como “vítimas do PCC” sejam também vítimas da violência estatal.

Depois desta reunião online, parte dos imóveis receberam uma série de condicionantes relacionadas com a documentação e autorizações de funcionamento dos imóveis foram listadas com o prazo de alguns meses para que não precisassem ser interditados. Em um dos casos, a presença de uma paciente oncológica do Hospital da Mulher, vizinho à pensão onde ela morava, foi dado o prazo de apenas um dia para que ela pudesse encontrar um novo domicílio.

Assim, o centro de São Paulo se constitui como mais um território onde abusos e violências estão sendo cometidos pelos agentes e forças policiais do Estado, constituindo mais uma evidência da militarização dos conflitos possessórios e expulsões na capital paulista e entorno.

 

 

(*) Lara Giacomini é graduanda da FAUUSP e pesquisadora de iniciação científica no LabCidade; Vitor Inglez é doutorando da FAUUSP e pesquisador do LabCidade; Débora Ungarreti é doutora pela FAUUSP e pesquisadora no LabCidade; Matheus Martins é graduando da FAUUSP e pesquisador de iniciação científica no LabCidade; Renato Abramowicz Santos é pesquisador do LabCidade e do Observatório de Remoções e Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade.