Por Paula Freire Santoro*, Mathews Vichr Lopes** e Letícia Lindenberg Lemos***

No último mês de maio, a Prefeitura de São Paulo disponibilizou os dados sobre como estão sendo gastos os recursos do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb). Esse fundo tem como objetivo financiar investimentos na cidade de acordo com o Plano de Metas do Município e com as diretrizes estabelecidas no Plano Diretor Estratégico (PDE). Os dados, disponíveis neste link, mostram o volume e o local de aplicação dos recursos entre os anos 2013 e 2015.

A principal fonte de recursos do Fundurb é a venda de potencial construtivo acima do coeficiente básico, denominada Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), ou seja, o pagamento pela possibilidade de construir além do coeficiente definido como básico e até seu limite máximo. Na prática, qualquer proprietário pode construir metragem quadrada equivalente a uma vez a área do terreno sem pagar, enquanto que um incorporador paga à Prefeitura para poder construir além do coeficiente básico até o máximo, que varia dependendo da região da cidade onde está inserido.

Essa cobrança tem como premissa o fato de que o desenvolvimento urbano valoriza a terra e que essa valorização deveria ser revertida também para o interesse comum, além de promover uma redistribuição dos recursos no município. Com isso, a Prefeitura não somente ampliaria a quantidade de recursos para investir na cidade, mas permitiria também uma melhor distribuição espacial dos investimentos em infraestrutura. Isso está demonstrado nos mapas que abrem esse post, nos quais podemos verificar os volumes e locais de arrecadação da outorga onerosa no ano de 2013 e a aplicação desses recursos em 2014.

Desde o início da sua criação, em 2002, o Fundurb arrecadou pouco, algo correspondente a cerca de 0,5% do orçamento municipal, em média. No entanto, de 2005 a 2013, do total de recursos investidos pela Prefeitura na cidade, entre 4% e 12% foram provenientes do fundo, segundo dados da Prefeitura, como pode ser visto no Gráfico 1 a seguir. Considerando que a principal fonte de arrecadação do Fundurb depende da dinâmica imobiliária, o valor não é nada desprezível.

Gráfico 1 – Percentual de gastos do Fundurb em relação ao total de investimentos de São Paulo, 2005-2013.
Fonte: Demonstração das variações patrimoniais 2005-2013, Boletins da Receita 2005-20013 (Execução Orçamentária) – SF. Elaboração: Deinfo/SMDU.

Além da dependência em relação à dinâmica imobiliária, a arrecadação desse fundo também é impactada pelo Cadastro de Valor dos Terrenos, pois essa é a referência utilizada para calcular o valor a ser pago na compra de potencial construtivo. Até a aprovação do Plano Diretor Estratégico (PDE), em 2014, quando esse cadastro foi criado, o valor de referência para o cálculo era o valor venal do imóvel, utilizado para a cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), geralmente baixo e desatualizado. Houve então uma atualização desses valores, para que ficassem mais próximos dos valores de mercado, o que criou uma expectativa de que os recursos arrecadados pelo Fundurb aumentassem.

–> Saiba mais sobre o Cadastro de Valor do Terreno.

No entanto, não houve o aumento esperado: o valor arrecadado em 2015 por meio da OODC, cerca de R$ 250 milhões, foi quase 20% menor do que os mais de R$ 300 milhões arrecadados em 2013.

Uma explicação possível para esta queda na arrecadação é que o próprio mercado imobiliário já estivesse desaquecendo em 2015, processo que ficou mais evidente no início de 2016. Outra possibilidade é que tenha ocorrido uma competição com a transferência de potencial construtivo, ou seja, que a compra e venda de potencial construtivo entre entes privados tenha impactado negativamente a arrecadação pública proveniente da OODC, pois esse valor não é revertido para o Fundurb.

Para minimizar esse possível impacto, a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, conhecida também como Lei de Zoneamento, aprovada em fevereiro deste ano, complementou o Plano Diretor, limitando o uso da transferência de potencial a 5% dos recursos obtidos com outorga onerosa nos 12 meses anteriores ao pedido da transferência. Ou seja, a partir desse limite, a compra de potencial construtivo poderá ser realizada somente por meio de pagamento da OODC, aumentando a possibilidade de arrecadação desse fundo.

Até esta recente abertura dos dados, o controle social sobre a arrecadação e os gastos do Fundurb só era possível através de uma solicitação via Lei de Acesso à Informação, que entrou em vigor somente em 2011. O PDE de 2002 já previa alguma participação social no controle do fundo, pois estabelecia que ele fosse gerido por um conselho, mas não definiu critérios para sua composição. A regulamentação, realizada posteriormente através de um decreto, incluiu oito secretários municipais, representantes do poder público, mas somente dois representantes da sociedade civil, membros do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU).

A partir da revisão do PDE em 2014, esse conselho torna-se paritário entre o poder público e a sociedade civil, que passa a eleger seus representantes entre os membros de outros quatro conselhos. Em 2015, então, são eleitos os representantes para o conselho do Fundurb.

O Estatuto da Cidade, de 2001, já previa certo regramento para a destinação dos recursos desse fundo, que a partir de 2015 passa a ter um controle social mais efetivo. Além disso, a revisão do PDE em 2014 delimitou prioridades para a aplicação de uma parte significativa dos recursos, como a destinação de no mínimo 30% para aquisição de terrenos destinados à produção de Habitação de Interesse Social (HIS), em praticamente toda a mancha urbana e preferencialmente em terrenos demarcados como Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) do tipo 3 (localizadas principalmente em áreas centrais, têm como objetivo aproveitar imóveis não utilizados ou subutilizados para construção de habitação de interesse social). Ainda, outros 30% devem ser destinados à implantação de sistemas de transporte público coletivo, cicloviário e de circulação de pedestres.

Os dados abertos sobre os gastos de 2013 a 2015 mostram que o PDE de fato influenciou a aplicação dos recursos, especialmente para mobilidade urbana (Veja no mapa interativo a seguir). Em 2013 e 2014, antes da aprovação do PDE, portanto, o percentual de recursos para habitação foi de 34% e 24% do total, respectivamente, e, para mobilidade urbana, se restringiu a 23% em 2013 e a somente 10% em 2014. Em 2015, porém, verifica-se que as proporções mínimas de 30% para cada uma dessas áreas foi respeitada.

Cinco secretarias municipais receberam recursos do Fundurb em 2015. Os recursos destinados à habitação somaram quase 40% e foram direcionados para a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação). O montante destinado para mobilidade urbana correspondeu a 36% do total e foi dividido entre duas secretarias: a SIURB (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras) e a SMSP (Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras). A maior parte do que foi destinado para essas secretarias foi aplicada em obras relacionadas aos modos coletivos ou ativos, conforme previsto pelo PDE, incluindo construções de corredores de ônibus, melhorias de calçadas ou vielas e construção de passarelas e ciclovias. É preciso que se diga que a ampliação do percentual de recursos gastos com habitação de interesse social e mobilidade urbana coletiva e ativa foi uma demanda da sociedade civil, que participou ativamente da elaboração do Plano Diretor e, portanto, é uma vitória dos grupos que se envolveram nesse debate.

 

Quando comparados à Lei Orçamentária Anual (LOA) do município de 2013 a 2015, os dados abertos também mostram que os recursos do Fundo representaram um incremento orçamentário relevante para algumas secretarias. Para a Secretaria Municipal de Cultura (SMC), por exemplo, significaram 7% de aumento; para a SIURB, 6%, e para a SMSP, 10%. Para os investimentos municipais em habitação, o Fundurb colaborou com 16,3% no período, com valor de cerca de R$ 113 milhões, conforme demonstra o Gráfico 2 abaixo.

Gráfico 2 – Orçamento municipal da habitação* – Detalhamentos dos investimentos municipais, 2015.
* Considerando os gastos com auxílio aluguel que integram as despesas correntes de custeio. Fonte: Plano Municipal de Habitação de São Paulo – Caderno para discussão pública, Sehab, junho de 2016.

Apesar do respeito à proporção estabelecida pelo PDE, o processo de aplicação dos recursos ainda precisa ser melhorado. A destinação de alguns recursos para obras de HIS, por exemplo, foi questionada por representantes dos movimentos de moradia, por não ter sido referendada no Conselho Municipal de Habitação. No campo da mobilidade urbana, parte significativa dos recursos foi destinada para melhoria de calçadas, mas sem que fosse apresentado projeto das intervenções previstas. E, ainda, os projetos são enviados para os conselheiros com pouca antecedência, dificultando que seja feita uma boa análise ou mesmo que sejam elaboradas propostas alternativas.

Além disso, em 2014 houve obras pagas pelo Fundurb dentro da Operação Urbana Consorciada Água Branca (OUCAB), como uma parte do corredor Inajar de Souza. Por um lado, é contraditório utilizar dinheiro de um fundo destinado à totalidade do território municipal para um investimento dentro de um perímetro delimitado por uma operação urbana, que possui arrecadação própria e cujos recursos não podem ser compartilhados com o restante da cidade, pois devem ser obrigatoriamente investidos na área da operação. Por outro, por serem implementadas em apenas um pedaço do território, as Operações Urbanas por vezes preveem obras em somente parte de uma avenida, deixando o resto para ser financiado por outras fontes, em um processo esquizofrênico..

Ainda que fique evidente que é necessário fazer alguns ajustes na utilização do Fundurb, parece que há avanços em curso que passam pela transparência da gestão, pela ampliação das possibilidades de debate público e da participação da sociedade civil. Em tempos de debate sobre corrupção, são estas iniciativas que permitem o monitoramento da gestão não apenas por especialistas, mas também por cidadãos. Não se pode esquecer que, nos anos 1990, a valorização da terra nem era recuperada e, nos anos 2000, houve uma série de eventos de corrupção na cobrança da Outorga Onerosa, com desvio de muito recurso. A manutenção e o aprimoramento dos sistemas de monitoramento da política certamente devem continuar.

*Paula Freire Santoro é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAUUSP) e uma das coordenadoras do observaSP.
** Mathews Vichr Lopes é estudante de graduação da FAUUSP, bolsista FAPESP, e integra a equipe do observaSP.
*** Letícia Lindenberg Lemos é arquiteta urbanista e mestranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Tem especialização em mobilidade não motorizada pela UNITAR e faz parte da equipe do observaSP.