Por Larissa Lacerda e Débora Ungaretti
No dia 17 de setembro de 2021, uma sexta-feira pela manhã, esperávamos em um posto de gasolina à beira da Rodovia Fernão Dias uma liderança comunitária da Zona Norte de São Paulo. O objetivo do encontro era conhecer uma nova ocupação de moradia, formada há poucos meses e localizada próxima dali, quase na fronteira da cidade de São Paulo com o município de Mairiporã. Em pouco tempo, Evandro (nome fictício) chegava ao nosso encontro, acompanhado de um grupo grande de pessoas, dividido em seis carros, que iriam conhecer a ocupação em busca de um local para morar. Seguimos em comboio em direção à nova ocupação.
Essas novas ocupações decorrem, em parte, da crise decorrente da pandemia. Mas também têm acontecido por conta de ações do poder público, seja de zeladoria ou de remoções para a realização de obras públicas – que a despeito das recomendações pela suspensão para garantir as condições de isolamento social durante a pandemia, seguiram acontecendo.
O grupo que nos acompanhou naquele dia era formado por homens, mulheres, crianças e idosos moradores de uma ocupação em via pública, localizada no distrito de Vila Medeiros, que estavam ameaçadas de remoção depois de 20 anos vivendo e trabalhando no local. Algumas semanas antes, agentes da GCM e da Subprefeitura notificaram verbalmente as cerca de 30 famílias moradoras e catadoras de materiais de reciclagem de que teriam que retirar, em 10 dias, suas carroças e todo o material de trabalho do local onde vivem e trabalham, sob pena de serem confiscados e sob a ameaça de uso de força repressiva e violência física. Também teriam que deixar as suas moradias – barracos e casas de alvenaria construídos na calçada da rua onde trabalham com reciclagem, apelidada pelas moradoras como Rua dos Anjos, localizada próximo ao Terminal de Cargas Fernão Dias, uma região com infraestrutura, ofertas de trabalho e renda no entorno.
Diante das ameaças, parte das famílias já havia deixado o local, com receio da violência anunciada pelos agentes da GCM. A outra parte passou a buscar abrigo em outros locais, acionando suas redes familiares e comunitárias. Foi assim que chegaram ao Evandro e à ocupação, formada há pouco mais de 6 meses.
Distante mais de 10 quilômetros do Terminal de Cargas, a ocupação está localizada nas bordas verde da cidade, aos pés da Serra da Cantareira, em uma área de mata com predomínio de uso rural e ambiental. Atualmente, cerca de 50 famílias vivem no local onde antes funcionava uma empresa de terraplanagem que anunciou falência após acumular dívidas de IPTU e multas ambientais, conforme nos relataram as lideranças locais.
O terreno onde se distribuem os pequenos barracos de madeira é bastante acidentado; entulhos e partes aterradas (utilizando todo o tipo de material de descarte), viabilizaram a implantação das casas. A energia foi garantida pelas ligações irregulares na rede local, mas a água só chega com o caminhão pipa, que abastece a caixa d’água coletiva uma vez por semana – e é assim para todo mundo, uma vez que a região não é ligada à rede de abastecimento de água. Somada a isso, a ausência de comércios e serviços nas proximidades e mesmo de transporte público (não existem linhas de ônibus que circulam por ali) escancara a precariedade urbana sobre a qual se forma o novo assentamento, habitado por pessoas que não encontram outras alternativas habitacionais na maior metrópole do país.
No entanto, pelo receio de não conseguirem sobreviver nessa região de fronteira da cidade, algumas famílias da Rua dos Anjos optaram por voltar para onde moravam na esperança de que o risco da remoção e da violência não se concretize (o que, de fato, ainda não aconteceu). Caso a remoção venha a acontecer, vão tentar a sorte em outro lugar – possivelmente, algum lugar mais próximo de onde vivem atualmente. Ali, não conseguiriam trabalho, escola para as crianças e acesso à serviços públicos que, em tempos de tamanha precarização, é uma das poucas formas de garantir cestas básicas e outras condições mínimas de sobrevivência.
O instrumento mobilizado pela subprefeitura da Vila Medeiros para ameaçar e remover as famílias da Rua dos Anjos foi a ação de zeladoria urbana, um conjunto de atividades realizadas pelo poder público (ou por empresa contratada) voltadas à “limpeza, manutenção e recuperação do espaço público”. Não é de hoje que ações de zeladoria urbana são objeto de conflitos na cidade; a população catadora de materiais recicláveis e nas mais diversas situações de rua tem sido historicamente alvo de intervenções da zeladoria urbana. Esta mesma população tem contestado publicamente a mobilização desse instrumento como um meio de realizar remoções e deslocamentos forçados de indivíduos.
Ações de zeladoria urbana tem sido uma das formas de remoção silenciosa e invisível, realizada por meio das subprefeituras, e que resulta em expulsão e deslocamento forçado. Essas e outras formas de remoção, que continuaram acontecendo no período da pandemia, têm levado à formação de novas ocupações como esta que acabamos de descrever, em áreas ambientalmente frágeis e sujeitas a deslizamentos, reproduzindo, portanto, a precarização do morar.
*Larissa é doutoranda na FFLCH-USP e pesquisadora do LabCidade; Débora é doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.
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