* Por Valéria Pinheiro

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O Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (LEHAB/UFC) tem desenvolvido estratégias de atuação para além dos muros da universidade. A partir da pesquisa advocacy apoiada pela Fundação Ford e CNPq, e da parceria estabelecida com entidades e coletivos de Fortaleza, realizamos diversas atividades de difusão das análises desenvolvidas no laboratório. Isso porque o problema habitacional em Fortaleza é exorbitante.

Em 2010, por exemplo, a cidade tinha 622 ocupações.  Enquanto isso, o número de habitações construídas é ínfimo e a ação da Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor) é inflada com dados sobre regularização fundiária, títulos entregues em ações que se arrastam por anos.

Além disso, enquanto a Habitafor tem orçamento baixíssimo e pouco peso político, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente, responsável por tocar as grandes obras, as parcerias público-privadas e os outros projetos que, em geral, impactam as comunidades, tem papel central e grande peso político. O tema das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), avaliado como uma forma de garantir habitação de interesse social e mudar a correlação de forças na disputa de recursos e da terra urbana de qualidade é totalmente bloqueado na Habitafor. Em 2009, durante o debate do Plano Diretor foram demarcadas menos de cem Zeis na cidade, número muito pequeno. E depois de muita, muita disputa, atos, spray de pimenta, de reuniões e todo tipo de pressão política, a prefeitura instituiu um comitê de regulamentação. Ainda assim, para piorar, a gestão municipal escolheu apenas nove Zeis para atuar.

Dada essa dimensão e a consciência da conexão direta desse problema com as outras políticas urbanas, buscamos pensar estratégias que provocassem essa reflexão, bem como trouxesse a partir da visibilidade dos agentes envolvidos nos processos de destituição de direitos, um instrumento de fortalecimento das lutas urbanas. Entre essas atividades está a websérie Cartas Urbanas, desenvolvida a partir da parceria com o Coletivo Nigéria, um coletivo de videomakers. Desenvolvemos seis capítulos. Neles, moradores das comunidades dos Trilhos, Bom Jardim, Serviluz, Raízes da Praia e Pau Fininho trocam cartas e, tendo um tema específico como pano de fundo, a cidade vai sendo desvelada. Em 13 minutos por episódio, ouvimos representantes do poder público, especialistas, representantes de movimentos, de comunidades e membros do LEHAB.

CARTAS URBANAS EP. 04 – Vazio Ocupado from Nigéria on Vimeo.

Tal instrumento, de fácil circulação e acesso, serve como pontapé para os debates e dissemina questões pouco ou nunca tratadas pela imprensa em geral. Dar voz aos atingidos e atingidas por ameaças de remoção e grandes projetos, contrapor o discurso oficial, amparar-se nos especialistas convidados e nos técnicos e técnicas do LEHAB e reconhecer-se na tela faz com que os problemas urbanos adquiram uma nova perspectiva para os movimentos populares. Nesse contexto de disputas pela terra e território para fins de moradia e pelo uso do espaço, as resistências coletivas emergem. Por meio da ampla e efetiva luta popular, comunidades permanecem em suas regiões e enfrentam o capital imobiliário na busca de desfrutar igualmente os benefícios que a cidade oferece. São esses defensores do direito à moradia digna que protagonizam a série Cartas Urbanas.

Com o mesmo objetivo de romper os muros da universidade, realizamos os Diálogos de Pesquisa mensalmente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFC. A atividade consiste em encontros para debates sobre pesquisas desenvolvidas na própria UFC e em outras universidades que tenham relação com as pesquisas desenvolvidas pelo LEHAB. Em parceria com o Canto, escritório modelo de arquitetura e urbanismo da UFC, cada Diálogos tem contado com a sala cheia (mais de 100 pessoas, em média) e proporcionado o intercâmbio das análises e problematização para além da academia.

Por fim, gostaríamos de registrar a realização dos Encontros de Comunidades, que surgiram da necessidade de agregar as diversas questões que vínhamos observando na pesquisa à multiplicação dos embates que as comunidades vinham se deparando e buscar tratar disso de maneira mais sistemática. Seu objetivo geral foi debater sobre a integração das políticas públicas e a inserção integrada do debate da moradia nas políticas urbanas e contribuir com o fortalecimento dos movimentos sociais e da articulação de suas pautas.

O Encontro foi construído de forma coletiva. Para além de todo o LEHAB, envolvido na preparação e execução, fizemos o convite a grupos parceiros da universidade, com os quais debatemos metodologia, buscamos apoio para estrutura e facilitamos os momentos no dia. Outras premissas importantes para a realização desse momento foram a valorização dos diversos saberes e a utilização de metodologias diversas como cartografia social, leitura de textos, debate em plenária, trabalhos em grupos.

O 1º Encontro de Comunidade Pelo Direito à Moradia ocorreu em outubro de 2015 no departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará durante o turno da manhã e da tarde. Teve o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, Fundação Ford e CNPq. Cerca de 150 pessoas entre moradores de comunidades, atuantes de movimentos sociais e técnicos e universitários se somaram ao debate. O segundo Encontro de Comunidades ocorreu um mês depois, em novembro, quando demos retorno de todo o material construído coletivamente e sistematizado e se traçaram estratégias de articulação das lutas. O terceiro Encontro se direcionou para traçar estratégias para a Conferência de Habitação, o que ocasionou que as comunidades presentes no encontro tivessem bastante êxito na eleição de delegados, na eleição de conselheiros para o COMHAP e na escolha de suas diretrizes pela plenária do Encontro. O quarto e último Encontro de comunidades de 2016 teve como tema o projeto da Lei de Uso e Ocupação do Solo, seus impactos no acirramento das desigualdades socioterritoriais e como poderíamos atuar coletivamente frente a isso.

O que podemos afirmar diante dessas e outras atividades que realizamos é que o exercício da práxis e a valorização dos saberes populares animam, qualificam e legitimam nossas pesquisas. Utilizar-se do espaço físico e simbólico da universidade pública implica colocar o saber desenvolvido aqui a serviço do coletivo.

*Valéria Pinheiro é pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB/UFC**), mestra em planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).

** O Lehab/UFC faz parte do projeto de pesquisa “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil”. Saiba mais sobre o assunto.