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Por Bianca Tavolari* e Raquel Rolnik**

Depois de diversas contribuições, sugestões e críticas feitas pela sociedade civil à primeira versão do projeto de lei que cria a Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí, na terça-feira, 17 de novembro, a prefeitura apresentou uma nova minuta na audiência pública que lotou o Teatro Artur Azevedo, na Mooca. Ainda que o projeto tenha mudado bastante ao incorporar demandas e preocupações de movimentos sociais organizados, da universidade, de moradores e comerciantes locais, a proposta ainda tem, pelo menos, quatro problemas estruturais.

O primeiro diz respeito à própria lógica que preside as operações urbanas na cidade de São Paulo: esse instrumento parte do pressuposto de que as obras necessárias para implementar o projeto serão financiadas através da venda de CEPACs, os certificados de potencial adicional de construção. Ora, a venda de CEPACs só pode acontecer se depois estes títulos puderem ser utilizados em edifícios que utilizem um alto potencial construtivo, ou seja, em prédios altos. Isso define a morfologia proposta no projeto, optando-se por aquelas que geram muito potencial construtivo.

Particularmente, nesta região, marcada pela presença de um patrimônio arquitetônico industrial do século passado, a opção implica verticalizar o bairro e, portanto, não preservar esse patrimônio. Assim, perdemos a grande possibilidade de pensar a renovação de uma área a partir da reabilitação, e não da destruição das características de seu tecido urbano e de suas edificações.

O segundo problema se refere à transferência de ativos públicos do Estado para o particular. E “ativos”, nesse caso, quer dizer nada menos do que terras públicas, bens e investimentos públicos. Explicando: para atrair os agentes privados, o poder público propõe regras que maximizem a rentabilidade do espaço construído. Se isso é um problema de todas as operações urbanas, a Bairros do Tamanduateí tem uma especificidade que torna esse esquema ainda mais complexo. O projeto de lei prevê a criação de uma empresa pública específica para gerir e implementar o programa de intervenções, a Empresa Bairros do Tamanduateí S/A – BTSA. Essa é uma novidade nas operações urbanas feitas em São Paulo e mesmo no Brasil  – a única experiência semelhante é a da Operação Urbana do Porto do Rio de Janeiro, mais conhecida como “Porto Maravilha”, a primeira a contar com uma empresa própria, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto – CDURP.

A criação da BTSA aprofunda o problema na medida em que todas as terras públicas do perímetro da operação já passam a ser, de saída, parte do capital social da empresa. E, de acordo com o projeto de lei, ela teria competência não só para vender e negociar esses ativos, mas também para desapropriar imóveis, fazer qualquer tipo de parceria público-privada, investir em outras empresas e fundos. Poderíamos pensar que, por se tratar de uma empresa pública, esse arranjo da operação urbana não seria tão problemático. Mas a BTSA vai ser uma sociedade anônima de economia mista, o que significa que o capital social da empresa é divido em ações que podem ser negociadas na Bolsa de Valores e que, portanto, empresas privadas também vão participar dessa gestão.

O projeto de lei garante, inclusive, ao menos uma cadeira do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal da empresa para investidores – e não evita que a maioria dos representantes desses órgãos seja composta por investidores. Dessa forma, para remunerar os capitais investidos e gerar lucros, o destino desses “ativos”, isto é, das terras públicas, terá que ser o mais rentável possível, o que tende a inviabilizar os usos que mais atendem à função social da terra ou os mais necessários para a cidade.

O terceiro problema estrutural diz respeito à moradia. É verdade que, por determinação do Plano Diretor, o projeto de lei destina 25% dos recursos arrecadados na operação para a provisão de habitação de interesse social (HIS). Mas, no entanto, não há um estudo das necessidades habitacionais nos bairros que fazem parte da operação. Informações básicas como número de famílias que precisam ser atendidas, número de pessoas que moram em favelas ou em condições precárias ou mesmo dos moradores em situação de rua são fundamentais para planejar qualquer tipo de atendimento habitacional. Na cartilha sobre a operação e nas audiências públicas, a Prefeitura tem falado em 20 mil unidades habitacionais, mas este número não aparece na lei, o que é no mínimo curioso. Ainda mais problemático é que não há previsão de como e onde essas unidades vão ser construídas, nem tampouco de quais intervenções serão feitas nos inúmeros assentamentos precários existentes na região.

Já o quarto problema diz respeito à participação da sociedade civil no controle das decisões tomadas no curso da operação, ou seja, à gestão democrática. A lei prevê a criação de um Conselho Gestor composto por 18 membros – 9 deles indicados pelo poder público e os outros 9 escolhidos pela sociedade civil, por meio de eleições. À primeira vista, o Conselho Gestor parece paritário. Mas, se olharmos mais de perto sua composição, veremos que a estrutura é bastante desigual. Dentre os 9 membros da sociedade civil, 1 é de entidades profissionais (organizações de classe, sindicatos); 1 é da universidade; 1 é de entidades empresariais (comércio, indústria, associações); 1 é de organizações não governamentais; 2 são representantes do Conselho Participativo Municipal das Subprefeituras; 1 é representante do Conselho Municipal de Habitação; e 2 são representantes dos moradores ou trabalhadores da área da Operação. Parece claro que esses representantes não têm interesses comuns, o que torna difícil que uma decisão possa ser de fato contestada pela sociedade civil. Ainda por cima, o voto de desempate é do poder público. Ou seja, mesmo se todos os membros da sociedade civil estiverem contra a proposta do governo, é ele que decide. Aliás, como tem sido a prática em várias instâncias “participativas”.

A Prefeitura deve encaminhar o projeto de lei da Operação Urbana Bairros do Tamanduateí para votação na Câmara nos próximos dias. Isso significa que o texto ainda não é definitivo e que a Câmara será mais uma arena de disputa em torno do assunto. Vale a pena compreender as implicações desse projeto, que é de extrema importância para a cidade como um todo, não apenas para os bairros que integram a Operação.

*Bianca Tavolari é bacharela em direito, mestranda em direito pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia – CEBRAP e faz parte da equipe do ObservaSP.

**Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e uma das coordenadoras do observaSP.