Por Sarah Feldman*
O caráter plural do patrimônio e seu lugar na administração com autonomia em relação aos interesses imediatos do governo estadual estão na base da concepção do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), criado em 1968. O formato do Conselho, como instância democrática e deliberativa das questões relativas ao patrimônio cultural material e imaterial, não é uma casualidade, mas o reconhecimento de um campo disciplinar que envolve valores históricos, culturais, sociais, políticos, econômicos, jurídicos, em disputa com múltiplos agentes e interesses atuantes na cidade.
O governador João Doria alterou, através do Decreto 64.186 de 10/06/2019, a composição do CONDEPHAAT: reduziu drasticamente a representação das três universidades públicas paulistas, ampliou o número de conselheiros indicados pelo governo que, além de representantes das secretarias estaduais, inclui especialistas de “notório saber” (nesse texto do Nexo, Antonio Augusto Arantes detalha e discute essas mudanças). De fato, o decreto do governador coroa o processo iniciado em 2017, quando, também por decreto, foi ampliada a participação de órgãos governamentais. Portanto, desde 2017 vinham sendo minadas a autonomia e independência das decisões do Conselho, que tinham como suporte importante a representação das universidades. Nas indicações do governo passaram a prevalecer profissionais que ocupavam cargos de confiança e, em sua maioria, sem nenhuma proximidade com a questão do patrimônio cultural.
O processo de aprovação de mais um empreendimento da SISAN – braço imobiliário das empresas de Silvio Santos –, no entorno do Teatro Oficina e de outros três bens tombados pelo CONDEPHAAT, é paradigmático para entender o impacto dessas mudanças e o modus operandi adotado pelo presidente do Conselho, o arquiteto Carlos Augusto Mattei Faggin, no período de 2017 a 2019.
Em 2016, o empreendimento havia sido rejeitado pelo Conselho, pela inadequação da solução projetual, que não considerava nem as especificidades do bairro, nem as relações com o Teatro Oficina e demais bens tombados.
Em 2017, o processo retornou ao Conselho devido ao recurso interposto pelo interessado contra a decisão do Conselho em 2016 e, em 2018, para análise do atendimento do projeto a adequações solicitadas pelo IPHAN. Ainda que o Conselho contasse com representantes qualificados do campo da história da arquitetura e do urbanismo, os pareceres do recurso e das adequações foram elaborados por dois procuradores membros do Conselho. Ignorando absolutamente as recomendações da decisão de 2016, os dois se manifestaram favoráveis ao empreendimento.
Como representante do IAB-Instituto de Arquitetos do Brasil-SP, solicitei vistas do processo, com a finalidade de analisar a solução projetual do empreendimento, considerando sua situação urbana condensadora de significados culturais.
A divulgação do meu parecer (confira aqui na íntegra), derrotado na última reunião de meu mandato como conselheira, em 28/02/2019, me parece fundamental. As informações nele contidas podem colaborar para o questionamento do Ministério Público Estadual sobre a legitimidade das mudanças da composição do CONDEPHAAT e para reforçar argumentos do profundo desrespeito praticado às decisões de tombamento ancoradas na pluralidade de pontos de vista, de saberes, de argumentos.
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