Por Isadora de Andrade Guerreiro*
Na segunda-feira, dia 15 de abril, a Ministra do STF Carmen Lúcia julgou extinta a Ação Cautelar expedida em 2016 pelo Ministro Ricardo Lewandovski, que suspendia a reintegração de posse da Vila Soma, ocupação de terra em Sumaré-SP. Nessa condição, um novo mandado de reintegração pode ser expedido a qualquer momento pela Vara Cível local, ou ainda pedida pela empresa vencedora do leilão judicial da área ocupada, realizado em fevereiro de 2016, no andamento do processo de falência da empresa Soma. Tal ação de reintegração de posse seria de grande monta, já que se trata de um terreno de cerca de 1 milhão de m², com cerca de 10 mil pessoas em ocupação estável e consolidada há cerca de sete anos – hoje, possivelmente a maior ocupação organizada do país em área continua e número de pessoas.
Os números expressam apenas parte do tamanho da Vila Soma, já que ela deve ser considerada ainda maior pela importância que tem no debate urbano atual: encontra-se na vizinhança da área central da cidade e é gerida por uma coordenação própria, que atua, para além das questões cotidianas, na ação urbanística do bairro ao controlar a ocupação de áreas de risco e preservação ambiental, manter áreas comuns e organizar parte dos serviços de infraestrutura que os moradores não têm acesso. A área, hoje, teria toda a condição urbanística de ser regularizada, já que cumpre todos os requisitos legais urbanísticos. Um estudo técnico realizado em 2017 no âmbito do Grupo de Trabalho Intergovernamental (composto pelos governos municipal, estadual e federal, além da Caixa Econômica Federal e Defensoria Pública, fato que já sinaliza a importância do assunto), que acompanha o processo desde 2014, demonstrou que a urbanização da área teria um custo financeiro de menos da metade do custo de reordenamento urbano com construção pelo Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) – R$125 milhões da urbanização contra R$293,5 milhões do reordenamento. Estimou-se que a alternativa de urbanização demoraria 3 anos para ser concluída ao invés dos 8 anos previstos para o reordenamento com construção de novas unidades, solução esta que envolveria ainda a remoção das famílias, a perda dos seus investimentos na área e os custos de aluguel durante a construção (públicos com o Auxílio Aluguel e próprios).
A solução via MCMV foi buscada oficialmente duas vezes durante o processo. Em ambas, contra a vontade das famílias, que sempre preferiram ficar na área atualmente ocupada. A primeira vez foi buscada uma solução com um projeto padrão, num terreno distante – uma opção que já demonstrou amplamente suas consequências sociais e urbanas danosas. Este encaminhamento, bastante desenvolvido, foi descontinuado em julho de 2015 por conta da ação da gestão municipal de Sumaré – na época (2012-2016) nas mãos de Cristina Carrara (PSDB) – não porque defendesse solução melhor, mas porque tinha tomado as famílias como inimigas políticas e não via outra saída que não a remoção sem encaminhamento habitacional. A opção de tirar as famílias sem outra alternativa habitacional foi tentada e barrada pelo STF por conta de sua total falta de justificativa, preparo e legalidade – uma decisão importante, pois foi a primeira vez que um caso de reintegração de posse foi suspenso sob o argumento de que não pode haver uma desocupação sem saber para onde as famílias iriam – ainda que estivesse com trânsito em julgado na Vara Cível Local. A disputa representada pela Vila Soma foi central nas eleições municipais de 2016, nas quais a prefeita foi rejeitada pela cidade.
Na gestão seguinte, com o atual Prefeito Luiz Dalben, do PPS, o assunto é retomado sobre outras bases: o terreno é leiloado e os novos responsáveis contratam um projeto urbanístico de um escritório renomado de São Paulo, no qual as famílias são atendidas em cerca de um terço da área, com financiamento do MCMV, mas com um projeto diferenciado do padrão do programa. Dada sua localização privilegiada, a área remanescente seria destinada ao desenvolvimento imobiliário. Mais uma vez essa solução não teve prosseguimento por conta do contingenciamento de recursos do programa promovido pela gestão Temer, que negou (em reunião no Ministério das Cidades) a renovação da seleção das famílias já conquistada anteriormente, alegando que a solução apresentada demoraria a chegar aos termos requisitados para contratação pelo programa. Ainda foram buscadas alternativas pela assessoria técnica das famílias por meio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Programa Pró Moradia (um fomento federal aos municípios), porém o prefeito Luiz Dalben não deu andamento às negociações.
Sem o apoio da política pública, a solução de reordenamento do território por meio de solução privada se mostrou incompatível com as possibilidades financeiras das famílias. Desde então, as famílias têm lutado novamente pela urbanização da área que, como dito acima, é mais barata, rápida e socialmente mais justificável do que qualquer outra solução. A empresa vencedora do leilão judicial, atuando agora como nova dona do terreno, tendo em vista as dificuldades apresentadas para a realização de seu projeto imobiliário, está em processo avançado de negociação com a prefeitura e as famílias para a venda direta da área, considerando a possibilidade de gestão mediada pela CDHU e COHAB de Campinas. O que faz pensar sobre a razão desta decisão aparentemente injustificada de Carmen Lúcia. A quem essa decisão interessa, se mesmo a empresa que atua como dona da área está negociando sua venda para os moradores?
Chama atenção a movimentação extemporânea do STF inclusive pelos trâmites jurídicos. Segundo Alexandre Mandl, advogado das famílias, Carmen Lúcia ignorou petição da Defensoria Pública despachada com ela própria em 1º de abril. E, embora sua decisão tenha saído no dia 15, está datada em 30 de março – o que nos leva a questionar o procedimento de publicidade dos atos, uma vez que, antes de sua decisão, acabou por negar vistas à Defensoria, o que traria argumentos que constam no processo do TJSP e que desmentem as justificativas da Ministra. As famílias estão construindo uma solução em busca de consenso para o caso, na qual o STF deveria ser mediador chamando uma audiência de conciliação, como fez em Agosto de 2018, e não dando prosseguimento a uma ação irresponsável. Na citada audiência, houve ofícios para as três esferas do Poder Executivo, mas nenhuma respostas aos mesmos.
A conclusão é que a Vila Soma ousou confrontar a lógica de produção da cidade “oficial”, ao dar uso popular à propriedade abandonada em área central, com o enorme “agravante” de estar organizada. Essa conjuntura – muito parecida com aquela da ocupação do Pinheirinho em São José dos Campos (2004-2012) – define o cenário de disputas em jogo e a enorme probabilidade de uma guerra campal que acontecerá caso se concretize essa reintegração. Se isso ocorrer, vai gerar um problema social de grande vulto (10 mil desabrigados numa cidade de médio porte), que já está em vias de ser solucionado consensualmente. Devemos nos perguntar então: por que o judiciário intervém num processo que se encaminhava para uma solução pacífica?
* Pós-doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade
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