Memorial construído para Marina. Foto: Letícia Lemos

Priscila Costa, Aline Cavalcante, Amanda Carneiro, Jô Pereira, Letícia Lindenberg Lemos, Flávio Soares e Yuri Vasquez*

No dia 8 de dezembro de 2020, completa-se um mês que a vida de Marina Kohler Harkot foi encerrada à força. Muitas notícias foram publicadas contando um pouco da potência dessa mulher de 28 anos. Marina não era somente mais uma cicloativista e mais uma militante pela equidade de gênero: ela era parte da força motriz das mobilizações em torno dessas questões. A Ciclocidade e o cicloativismo tiveram o privilégio de contar com a colaboração de Marina. Muitas das nossas conquistas são frutos que foram semeados por ela. Por isso, trazemos abaixo um relato sobre suas principais contribuições que vivem em nós. 

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Era janeiro de 2015, quando Marina Harkot, ainda com 23 anos, lançou a pergunta a outras mulheres, durante uma reunião da Ciclocidade: “por que somos tão poucas entre cicloativistas e entre as bicicletas na cidade?. Aquilo soou como uma pergunta-abraço, uma pergunta-convite. Em menos de um mês, acontecia a primeira reunião do que viria a ser o Grupo de Trabalho (GT) de Gênero da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo – Ciclocidade. 

Um grupo misto de maioria feminina se reuniu para dar início a esse trabalho em 22 de fevereiro. Na ata da reunião – porque Marina era do registro, da organização das ideias, do conhecimento acessível e partilhado – consta como local a “casa da Marina”. A partir de então, e desse lugar tão dela, que aquelas mulheres, aquela associação e todo o movimento cicloativista não existiram mais da mesma forma. O  GT Gênero nasceu com a proposta de pensar o uso político da bicicleta pela perspectiva das mulheres e refletir como as questões de gênero historicamente constituídas influenciam a configuração do espaço urbano e da mobilidade. 

Três reuniões depois, Marina levou a pauta das mulheres ao IV Fórum Mundial da Bicicleta (FMB4) em Medellín, Colômbia. Sua participação – sempre propositiva, generosa, baseada em fatos e afetos – inspirou a formação de novos grupos femininos no Brasil e na América Latina.  De volta ao Brasil,  Marina publicou, junto com Yuri Vasquez, o primeiro texto com o posicionamento público do GT Gênero da Ciclocidade, na Revista Velô (pág 31): Precisamos entender os motivos pelos quais é tão expressiva a pouca participação de mulheres dentre ciclistas. Os desafios são grandes, mas o trabalho em busca de cidades realmente equânimes, nas quais políticas sejam pensadas de forma inclusiva precisa ser encarado”. 

Marina e Aline Cavalcante no FMB4. Foto: arquivo pessoal

E os desafios foram encarados. O fato de apenas 6% dos ciclistas de São Paulo serem mulheres mobilizou a criação de um grupo na Ciclocidade para coordenar a investigação, a convite de Marina. Ela também puxou a organização da primeira edição do Cyclofemme no Brasil e, em maio de 2015, o evento ocupou o centro da capital paulista em comemoração ao Dia Internacional das Mulheres Ciclistas. No mesmo ano, por pressão do GT Gênero, a participação mínima de 50% de mulheres na ‘Formação em Ciclomobilidade’ da Ciclocidade foi conquistada. Enquanto isso, o GT continuou a se estruturar e passou, aos poucos, a ocupar praças, bibliotecas e outros lugares públicos da cidade para pensar suas ações e construir uma rede de atuação e colaboração com outros movimentos.

Em 2016, a luta de Marina por equidade de gênero alcançou novos patamares. Nesse ano, juntamente com o  GT gênero organizou um encontro para discutir o uso da bicicleta por mulheres cis e trans e ocupação do espaço público, com a participação da cartunista Laerte Coutinho. Marina, que era conselheira do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (CMTT) na cadeira de ciclistas, foi uma das principais vozes na disputa por paridade de gênero no conselho e nas câmaras temáticas. Ela bateu de frente contra a proposta do governo de duplicar as cadeiras para garantir que mulheres fossem mais do que uma porcentagem, e tivessem voz como conselheiras. E essa demanda explícita gerou frutos. As Câmaras Temáticas e o CMTT passaram a ter paridade de gênero entre seus representantes. É inaceitável encontrar espaços majoritariamente masculinos, sobretudo espaços institucionais que fiscalizam e orientam políticas públicas.

Conselheiros e suplentes da Frente pela mobilidade ativa eleitos para o CMTT. Foto: Ciclocidade

Nesse mesmo ano, Marina foi fundamental também na articulação e apoio na criação do GT gênero da UCB (União dos Ciclistas do Brasil), e lutou  pela representação feminina no Encontro Brasileiro de Mobilidade por Bicicleta e Cicloativismo – Bicicultura, realizado em São Paulo em 2016 – que teve mulheres como protagonistas em 45% das atividades. O momento de construção do Bicicultura com demanda por paridade  é um marco na busca por espaço para mulheres no movimento nacional da Bicicleta. Foi o gatilho para que os movimentos nacionais de mulheres – inclusive o da UCB – tomassem aquilo como fundamental, e fizeram com que a paridade passasse a ser a norma vigente nas demais edições do evento dali em diante. 

Ao longo do Bicicultura de São Paulo, Marina articulou reuniões de mulheres que decidiram pela criação de um fórum nacional ampliado para a mobilidade ativa, cujo objetivo era a promoção da equidade de gênero nas associações locais pró mobilidade ativa e pela maior incidência de mulheres nos espaços de decisão e construção de políticas públicas de mobilidade, nas esferas local, regional e nacional. Assim, Marina oficializou o lançamento e a fundação do Fórum Nacional de Mulheres pela Equidade de Gênero na Mobilidade Ativa (FoMMA), com mulheres de todas as partes do país em defesa da mobilidade urbana, pensada e construída por mulheres,  para todas as pessoas. 

Reunião de mulheres durante o Bicicultura para criação do FoMMA. Foto: Bicicultura 2016

Foi também em 2016 que, depois de um longo processo de disputa e tensionamento internos, o GT gênero da Ciclocidade  conquista fundos para o desenvolvimento da pesquisa “Mobilidade por Bicicleta e os Desafios das Mulheres de São Paulo”, a partir da reivindicação de priorizá-la no planejamento anual da Ciclocidade. Idealizada, construída e realizada coletivamente por mulheres ativistas, pertencentes ao GT, a pesquisa foi pioneira – no contexto da associação, e possivelmente entre as organizações de ciclistas existentes na cidade – pelo menos em três aspectos: (1) toda a equipe de trabalho – concepção, coordenação e pesquisadoras – foi formada exclusivamente por mulheres; (2) foi a primeira pesquisa em São Paulo a levantar dados junto ao grupo feminino a partir de uma perspectiva de gênero; e (3) foi dada prioridade em chegar o mais perto possível das periferias da cidade, de modo a colher relatos com a maior diversidade de perfis socioeconômicos e de condições territoriais.

Os resultados foram apresentados no Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo, com forte repercussão midiática, e discutidos durante o seminário “Mobilidade Urbana e a Perspectiva das Mulheres” do WRI (World Resources Institute). A pesquisa também deu subsídios para a pesquisa de mestrado de Marina na FAU-USP “A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo” e para diversos artigos e apresentações em congressos científicos mundo afora. 

Marina, Priscila Costa e Letícia Lemos se preparando para apresentar os resultados da pesquisa “Mobilidade por Bicicleta e os Desafios das Mulheres de São Paulo” em setembro de 2016. Foto: Flavio Soares

Os resultados da pesquisa revelaram que a maioria das mulheres que usava a bicicleta como principal meio de transporte em São Paulo se autodeclarou preta ou parda (52%), de baixa renda (com um número considerável sem renda) e estavam concentradas nos bairros mais afastados do centro. Mulheres que, em sua maioria,  não foram contempladas pelas políticas cicloviárias dos anos 2014-2016, e que, apesar disso e por necessidade, se expunham ao risco diário nas avenidas dos extremos da cidade.  Com objetivo de descentralizar a articulação política na Ciclocidade, e visando maior diversidade representativa para a formulação de políticas, o GT Gênero inscreveu o projeto Feminismos sobre 2 Rodas no edital do Fundo Elas, da ONU Mulheres, e foi contemplado entre 645 projetos em todo o país. O FeminismoS sobre DuaS RodaS, foi um projeto no plural e em movimento, como o próprio nome sugere, idealizado e realizado por muitas mãos, incluindo a da Marina. Um projeto de mulheres para mulheres das cinco zonas da cidade, articulando oficinas, palestras e rodas de conversa, entre diferentes movimentos sociais feministas e antirracistas, para o fortalecimento de uma rede ampla no ativismo pela mobilidade por bicicleta e direito à cidade.  No final daquele ano, Marina apoiou a eleição de Priscila Costa do GT Gênero no primeiro Conselho Municipal de Políticas para Mulheres de São Paulo, garantindo uma cadeira entre os anos 2016 e 2018. 

Em 2017, e em decorrência do episódio de violência de gênero no Bicicultura – que envolveu membros da Ciclocidade, o GT articula e garante maior representação feminina (e feminista) na diretoria da Associação. Marina é uma das vozes mais atuantes nesse momento – tanto no sentido de garantir justiça às envolvidas, quanto no sentido de acolher emocionalmente as vítimas e endereçar os próximos passos. “A Ciclocidade é maior do que esta diretoria, não podemos enterrar a associação justamente por causa de uma violência de gênero. Vamos nos unir, nos fortalecer e ocupar todos os espaços”, dizia ela para Aline Cavalcante e Cyra Malta, as primeiras duas diretoras feministas indicadas pelo GT Gênero a ocupar as cadeiras de direção, diante da maior crise institucional vivida pela Ciclocidade em toda sua história. Esse desdobramento impulsionou a eleição de mulheres como diretoras gerais em outras organizações Brasil afora. 

Entre os anos de 2018 – 2020, Marina mergulhou de fato em sua tese de doutorado na FAU-USP. Tantos anos de dedicação ao estudo e debate sobre a perspectiva de gênero no planejamento urbano fez com que Marina se afastasse do dia a dia da Ciclocidade. Segundo ela mesma, precisava de um “tempo” do cicloativismo, porque tinha  “saturado” do tema – um sentimento comum de quem esteve imersa e construindo por dentro e por fora os espaços de influência e de poder para mulheres. Ainda sim, Marina e Marcela Duarte se disponibilizaram a cuidar de processos internos da associação, trabalhos ‘burocráticos’, de bastidores, essenciais para a continuidade da Ciclocidade. 

Ela foi rede de apoio, sempre tensionando por mais participação e transparência,  colaborando na elaboração de projetos, na sistematização de ideias e até na escrita de projetos, materiais, cartilhas, emails. Ela esteve presente como uma espécie de conselheira ao lado da diretoria feminista que seguiu dali em diante, com Aline, Cyra e hoje com Jô Pereira, sempre oferecendo seu conhecimento como pesquisadora e seu carinho e apoio como amiga. Desde então, Marina era Conselheira Fiscal da Ciclocidade. 

Sua existência entre nós não foi nada comum. Impulsionou tantas mudanças em todas as partes, desafiando estruturas rígidas e o senso comum. A sensação que fica é que não alcançaremos as palavras do tamanho e da importância que ela merece. Talvez tais palavras nem existam ainda perto da sua grandeza. Mas foi justamente ela que nos ensinou a imaginar e arriscar coisas não ditas e nem vistas. E é por ela que continuaremos a construir uma cidade que mantenha viva milhares de outras pessoas através do seu legado. É em respeito a sua história de amor e dedicação à  luta por uma São Paulo mais gentil e menos veloz que hoje enxugamos as lágrimas uma das outras e seguimos firmes. Marina presente. Marina vive! 

Stêncil por Juliana Calheiros, adaptação Priscila Costa

*Participantes do GT Gênero da Ciclocidade em diversos momentos desde sua fundação até este ano.