2020 foi um ano longo e difícil, em que os direitos à moradia, à cidade, à saúde e à vida estiveram sob forte ameaça, para além do que já vivíamos. O LabCidade continuou, mais ativo do que nunca, denunciando, visibilizando, interpretando e disputando as narrativas neste ano duro, mesmo que sob condições difíceis de trabalho. Na nossa última newsletter, agora publicado como postagem em nosso site, fizemos uma retrospectiva da nossa produção, agradecendo nossos parceiros e anunciando nossa disposição de avançar mais ainda em 2021.
Começou a pandemia
E logo organizamos, a partir de abril de 2020, dentro do site do LabCidade, um especial Coronavírus, criado para acompanhar as formas como o novo coronavírus atingiu as cidades e os impactos e dimensões urbanos da pandemia, particularmente em relação ao tema da moradia.
Em coronavírus, moradia e urbanismo reunimos análises e notícias sobre o impacto da pandemia nas cidades e na moradia no Brasil e em outros países do mundo. Em ações de proteção ao direito à moradia, reunimos medidas adotadas em diferentes cidades, estados e países por poderes executivos, legislativos e judiciário, por ministérios públicos, defensorias públicas, movimentos sociais e outras entidades para proteção do direito à moradia. Também sistematizamos mais de 100 ações e campanhas autogestionadas nos territórios em Campanhas e ações dos territórios, especialmente (mas não só) em São Paulo.
Procuramos compreender a disseminação do coronavírus no território
Ao analisar os mapas da territorialização da covid-19 produzidos pelo poder público e divulgados por veículos de mídia, constatamos que estava sendo mostrada uma leitura simplificada da disseminação do vírus, cuja escala escolhida escondia informações localizadas, dificultando seu enfrentamento através de políticas públicas e planos de ação a partir destes territórios.
Resolvemos então produzir a nossa cartografia do coronavírus. Apesar das dificuldades de obtenção de dados, construímos uma série apresentada a seguir, compreendendo a territorialização da moradia de pessoas hospitalizadas, uma leitura com foco nos profissionais de saúde e na relação entre a necessidade de sair para trabalhar e as condições da mobilidade urbana na pandemia.
Hospitalizações por Covid-19
A partir das informações disponibilizadas via DATASUS, elaboramos no início de junho uma série de mapas temáticos e um mapa interativo que mostrou o número de pessoas hospitalizadas com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), entre elas a covid-19. A análise foi feita a partir do CEP de residência das pessoas que foram hospitalizadas, com dados gerados e disponibilizados em formato aberto em nosso portal de Dados Abertos.
Profissionais da saúde que testaram positivo
A territorialização da Covid-19 entre profissionais de saúde demonstrou de que forma os responsáveis por serviços essenciais estão localizados na cidade, e que o contágio reverbera desigualdades urbanas, como explicamos neste artigo.
Relação entre trabalho e mobilidade urbana
Outro dos estudos de produção e análise cartográfica que realizamos em 2020 foi “Circulação para trabalho explica concentração de casos de Covid-19”. Nele, procuramos complexificar a leitura do impacto da pandemia na cidade para além das noções de “Centro/periferia”, apontando para a importância de uma boa estratégia para o transporte público durante a pandemia. A pesquisa foi publicada também pela Agência Fapesp.
O poder dos mapas
Também resolvemos ensinar a como produzir narrativas cartográficas, através da oficina Cartografias e narrativas urbanas na pandemia, em setembro e outubro de 2020, cujos vídeos estão disponíveis no nosso canal no Youtube. Lá discutimos o campo cartográfico na atualidade, suas potencialidades e tensões presentes no ato de cartografar, numa perspectiva teórico-prática. Buscamos oferecer uma compreensão desta produção para além das dimensões técnicas, mas utilizando técnicas básicas e intermediárias de geoprocessamento utilizando o QGIS.
E as análises com base na pandemia seguiram:
_ Discutimos a qualidade das políticas públicas na gestão da crise sanitária;
_ Apresentamos e discutimos, com profissionais da saúde e outros profissionais de diferentes áreas, as cartografias produzidas e possíveis rebatimentos em termos de políticas públicas para o enfrentamento da pandemia;
_ Estudamos as diferentes dinâmicas de contágio de acordo com a vulnerabilização de grupos sociais (veja ambulantes, população em situação de rua, população encarcerada, população em cortiços, imigrantes, cracolândia e pessoas com direito à moradia sob risco);
_ Confira nosso balanço do ano de 2020 para políticas de gestão da pandemia em relação à gestão pública da mobilidade urbana.
_ E lançamos o programa A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik, que teve 31 episódios até agora, grande parte deles dedicada a discutir a pandemia sob a perspectiva do direito à cidade e moradia. Você pode assisti-los em vídeo ou ouvi-los em formato de podcast.
Publicação registra reflexão a partir de quase uma década do Observatório de Remoções
Desde 2012 o Observatório de Remoções vem monitorando os processos de ameaça, remoções e despejos – inclusive no período da pandemia de Covid-19. Com isso, tem ajudado a tirar o tema da invisibilidade e mostrar para a sociedade que processos de remoção prejudicam a vida das pessoas afetadas e as mantém em situações de transitoriedade permanente.
Em 2020 lançamos um balanço crítico feito em um processo de encontros semanais com uma rede ampla de pesquisadores pelo país e transformado em artigos organizados na publicação “CARTOGRAFIAS da produção, transitoriedade e despossessão DOS TERRITÓRIOS POPULARES”. Saiba mais sobre seu conteúdo aqui e baixe a publicação na íntegra.
Mapeamentos trimestrais do Observatório de Remoções em 2020
O mapeamento trimestral segue mostrando remoções em curso, mesmo em meio à pandemia. Confira nossos mapeamentos trimestrais de remoções na pandemia e suas análises: abril-junho; julho-setembro; outubro-dezembro.
Nosso trabalho e de nossos parceiros do Observatório foi repercutido na mídia e pautou diversas reportagens e matérias jornalísticas ao longo do ano.
Veja o mapa interativo ampliado e outros dados.
Outra importante ação que marcou o 2020 do LabCidade foi a Campanha Despejo Zero. Integramos a mobilização junto a mais de 100 movimentos sociais e entidades de todo o Brasil, e obtivemos apoio internacional inclusive da ONU. A Campanha visa a suspensão dos despejos e das remoções, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades, urbanas ou rurais (durante a pandemia, mas também fora dela). A Campanha já conseguiu realizar uma série de ações e intervenções para os atingidos por remoções e despejos, além de fortalecer articulações já existentes.
Um marco importante da Campanha Despejo Zero foi o dia 4 de setembro, em que aconteceu seu lançamento global, com convidados de vários países além do Brasil e participação especial de Balakrishnan Rajagopal, Relator Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Você pode assistir ao vídeo completo neste link.
No site da Campanha, você pode denunciar um despejo, consultar dados, e conferir uma carta-compromisso que muitos candidatos nestas eleições municipais assinaram (e descobrir se quem foi eleito na sua cidade assinou). Acompanhe o Facebook, o Instagram, e o Twitter da Campanha Despejo Zero.
Seminário Internacional Moradia de Aluguel na América Latina: Estado, finanças e mercados populares
Para compreender o aluguel como forma crescente de moradia nos assentamentos populares consolidados, bem como nas frentes de expansão financeiro-imobiliárias que marcam cidades na América Latina, o LabCidade (Brasil), com o apoio de COES (Chile) — Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social —, o Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales UC (Chile), e a Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, organizou o Seminário Moradia de aluguel na América Latina: Estado, finanças e mercados populares, realizado virtualmente em setembro de 2020. Você encontra todas as gravações das 13 mesas no YouTube.
O evento contou com 700 inscritos, 72 trabalhos enviados e 56 selecionados e apresentados produzidos na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela. Além de palestras de Desiree Fields (UC Berkeley); Raquel Rolnik (FAUUSP); Pedro Abramo (IPPUR/UFRJ); Felipe Link (UC/COES). Veja a programação completa aqui.
Além dos Anais de Resumos Expandidos e dos vídeos no Youtube, foram publicados cinco textos em torno dos quatro eixos do Seminário: 1. Mercados populares de locação; 2. Financeirização da locação residencial; 3. Políticas públicas de locação, um primeiro sobre o laboratório de experiências em curso apresentado e um outro sobre uma imobiliária social municipal; e 4. Ativismos ligados à locação residencial.
Geografia eleitoral paulistana
Logo após o término do primeiro turno em São Paulo, identificamos uma narrativa simplificadora sustentada por mapas que circularam na mídia e nas redes sociais: a de que o cenário político da cidade estaria estagnado desde 2018. Procurando compreender e contrapor esta narrativa, construímos uma cartografia em outra escala, mais detalhada, analisando com profundidade as dinâmicas territoriais dos votos para os diferentes candidatos e também dos nulos/brancos e abstenções.
_ No primeiro turno os mapas apontavam a vitória do candidato Bruno Covas (PSDB) em toda a cidade, em um grande mapa azul. Esta leitura ignorava nuances importantes, como a grande quantidade de abstenções, que cresceram mais no centro expandido onde as pessoas tinham maior possibilidade de aderir ao isolamento social;
_ As gradações dos mapas permitiram sair de uma narrativa política clássica que marcou a cidade, a de que, supostamente, o centro consolidado rico votaria no PSDB e a periferia no PT. Notamos que nas regiões do espigão (Lapa, Perdizes, Paulista, Vila Mariana) e no eixo da Av. Rebouças houve votação expressiva em Boulos (PSOL). E parece ter havido uma divisão no voto da direita, cuja disputa envolveu mais candidatos.
_ No segundo turno (parte 1; parte 2) as narrativas dos mapas divulgados na mídia tradicional apontavam para a coincidência absoluta no embate entre “direita” (Covas e Bolsonaro) e a “esquerda” (Boulos e Haddad) e que, diante disso, nada teria mudado entre 2018 e 2020. Mas será que, de fato, nada mudou na geografia dos votos? A narrativa que simplifica o debate entre direita e esquerda, áreas ricas e pobres da cidade, não ajuda a entender quais foram as coalizões, as forças e os repertórios político-culturais que estiveram presentes em 2018 e 2020. E também é incapaz de apontar as transformações do espaço ocupado pela população que concentrava a renda e o poder na cidade, no chamado “vetor Centro Sudoeste”, e que hoje se expande a Leste, Norte e Sul.
Luto e luta por Marina Harkot
Em 2020, com muito pesar, fomos obrigados a nos despedir de Marina Kohler Harkot, que foi pesquisadora do laboratório até 2019, além de muito amiga. Marina morreu atropelada na madrugada de sábado para domingo (8/11), por volta de meia-noite. Ela andava em sua bicicleta na avenida Paulo VI, na região do Sumaré, zona Oeste de São Paulo, quando foi brutalmente atropelada por um carro dirigido por José Maria da Costa Júnior, que não parou para prestar socorro. Marina era socióloga formada pela USP, mestra e doutoranda em Planejamento Urbano na FAU USP, e pesquisadora do LabCidade. Tinha 28 anos e foi morta pelo modelo de cidade hostil que viveu para combater.
O trabalho de Marina, apesar da idade, já era extenso: fez pesquisas muito relevantes para a mobilidade urbana feminista. Abaixo, confira nossos posts sobre seu legado importantíssimo.
Contamos sobre sua morte como um momento de Luto por Marina, Luta por Marina. E seu assassinato foi motivo para refletir sobre o urbanismo no vídeo A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #30: Dia Mundial do Urbanismo – Marina Vive.
No post Marina Harkot Vive, contamos sua trajetória que passou pela experiência das mulheres de viver a cidade, seu envolvimento como ativista e pautando políticas públicas, o enfoque interseccional ganhando corpo não apenas na escolha das referências, mas no método de ensino e pesquisa. E da sua agenda no urbanismo feminista, ganhando espaço na sua produção acadêmica que distanciava-se um pouco do tema da mobilidade para falar de espaço público e de territórios segregados.
O Legado de Marina Harkot nos mundos da mobilidade urbana foi descrito por cicloativistas amigas e envolvidas em ações, pesquisas e outros trabalhos que fizeram coletivamente. Outro texto, escrito por Letícia Lemos, parceira de várias pesquisas e debates, sugeriu aos leitores: Pedale como Marina! Andar de bicicleta é uma decisão política.
No dia 11 de dezembro, às 10h, a FAUUSP realizou uma belíssima banca-homenagem de doutorado de Marina Kohler Harkot, transmitida pelo Youtube do LabCidade FAUUSP. A banca foi mediada pela sua orientadora, Paula Freire Santoro, e composta pelos professores: Paula Soto Villagrán (Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa, Cidade do México); Diana Helene Ramos (Profa. do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFAL); Clévio Dheivas Nobre Rabelo (Professor Adjunto da Faculdade de Arquitetura da UFC); e Gabriela Leandro Pereira (Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura da UFBA e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA). A banca também contou com a presença da diretora da FAUUSP, Profa. Ana Lanna, e dos professores João Whitaker e Eduardo Nobre, ambos representando o Programa de Pós-Graduação da FAUUSP e a Pró-Reitoria da USP, que entregaram uma carta atestando o evento e a trajetória acadêmica de Marina à sua família. As arguições tomaram como base um memorial organizado contando sua trajetória, opções de abordagem e metodologia, apresentando seu projeto de pesquisa. Assista aqui.
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