Por que o aglomerado da constelação de antenas e o buraco negro da exclusão digital não são vistos como ameaça à democracia
Por Luciana Fukimoto Itikawa*
Para quem vivencia o acesso fácil e imediato ao sinal de antena em determinadas regiões da cidade, mas mora fora da constelação delas, consegue ter a mesma percepção equivalente a sair do céu para o inferno do isolamento de informação. Desigualdades de 2.000 vezes da relação antena/população entre setores censitários para todos os habitantes do município; de 4.500 vezes para pretos e pardos (IBGE 2010); além de 50,86% das residências (IBGE 2020) estarem fora do raio de influência de 250m, são demonstrações do abismo que isso implica para a cidadania plena.
Aqui no Brasil, após consecutivos adiamentos no leilão nacional dos lotes da tecnologia móvel 5G, com requintes de disputas geopolíticas entre EUA-Brasil-China, a situação em São Paulo ainda se encontra indefinida. No início de junho de 2021, a Prefeitura enviou à Câmara Municipal um Projeto de Lei 347/2021 que define o licenciamento dessa infraestrutura. A votação do substitutivo está marcada para esta sexta dia 16/07/2021.
Para além das definições e restrições sobre uso e ocupação do solo e implantação nas edificações, com ressalvas sobre patrimônio e fiscalização, um artigo do substitutivo ao projeto de lei chama a atenção pela sua descuidada indefinição com vistas à ampliação da cobertura do sinal das antenas às regiões de apagões digitais.
Por trás da aparente máscara de democratização da cobertura do sinal digital, há talvez a falta de consciência sobre o incrível potencial que a ampliação do acesso às informações teria não só para os cidadãos, como também para a agilidade e eficiência da máquina administrativa. Nesse sentido, não parece claro não só à Prefeitura do Município de São Paulo, como aos demais níveis de governo, como esse assunto é estratégico em tempos de crise econômica, sanitária e política. Na pandemia, particularmente, o acesso digital remoto às informações de interesse público foi crucial no contexto do distanciamento social. Segundo o CETIC (2021), 72% das pessoas buscaram informações relacionadas à saúde na internet. Considerando os dispositivos utilizados com maior frequência para acompanhamento de aulas ou atividades remotas, enquanto 22% das classes A e B utilizaram o celular em 2020, 54% das classes D e E usaram esse aparelho.
A própria Prefeitura modelou parte da sua política para responder às demandas emergenciais como, por exemplo, a compra de tablets para resolver o acesso das crianças ao ensino remoto, bem como criou plataformas que cadastram os cidadãos e monitoram as filas da vacina em tempo real. Entretanto, ambas as políticas esbarraram na restrição objetiva da falta de acesso ao sinal digital nos domicílios e espaços públicos: tanto por banda larga cabeada, devido aos altos custos das operadoras; quanto pela falta de sinal nos celulares, via antenas.
Há uma larga literatura que tem explorado os potenciais do acesso digital para o futuro da gestão pública urbana, denominada “cidades inteligentes”, seja nos diferenciais da forma de captação (sensores, câmeras, celulares, etc.), da velocidade (100 vezes mais rápida), quanto do volume para análise massiva dos dados (BigData). Entretanto, existem vários lados ocultos dessa modalidade de gestão, que vão além dos problemas de proteção das informações captadas pelo Poder Público, passando pela discriminação e exclusão de pessoas a partir de algoritmos parametrizados e executados por máquinas (IoT ou internet das coisas). Definições estas criadas, selecionadas e analisadas, diga-se de passagem, por humanos. Um desses lados ocultos, por sua vez, diz respeito ao início da nossa discussão: a quem interessa a não universalização do acesso digital por antena, considerando o potencial para a cidadania e para a gestão urbana?
Na pandemia, a restrição ou a ausência de acesso digital à informação problematizaram a própria ideia de participação social. Como justificar a revisão de projetos de lei complexos como as Operações Urbanas e Planos Diretores sem garantir a ampla e diversa participação em quantidade e qualidade nos canais oficiais? Os mapas a seguir mostram como isso desafia, no limite, o próprio significado de democracia.
Em primeiro lugar, o Projeto de Lei em nenhum momento, na sua justificativa ou no corpo do texto, coloca a centralidade da universalização do acesso às informações como direito social e essencial ao exercício da cidadania, conforme o Marco Civil da Internet (2014), a Constituição Federal (1988) e o Guia para Cooperação Digital da ONU (2020). Em segundo lugar, o Projeto de Lei estipula a polarização prioritária/não prioritária, sem ao menos apresentar um mapa ou a relação das mesmas, bem como um diagnóstico da distribuição das antenas, a partir das especificidades no território. Em terceiro lugar, a ausência de uma proposta espacializada não nos permite avaliar os múltiplos efeitos que teria segundo o recorte das interseccionalidades de raça, gênero, classe, etc. Os mapas a seguir demonstram a necessidade de um diagnóstico da desigualdade de acesso ao sinal em uma escala micro, por entender que essa desigualdade existe mesmo dentro da menor unidade administrativa, os distritos, com diferenças brutais de acesso.
Mapa de “Sombras” – territórios fora do raio de influência das antenas 5G.
O Mapa A mostra em laranja as áreas de influência de 250m de alcance máximo do sinal de internet das antenas caso a tecnologia 5G fosse inteiramente instalada, substituindo as atuais 3G e 4G. Fora das áreas de influência estão 2.006.530 residências, ou seja, 50,86% do total existente (3.959.170) em 2020, onde moram 6.038.514 pessoas.
Figura 2: Quantidade de antenas por setor censitário, “topografia” de antenas, renda.
O Mapa C mostra a distribuição das antenas existentes contadas a partir do interior de cada setor censitário: as desigualdades nas quantidades de antenas entre os setores censitários chegam a 2.000 vezes e 4.500 vezes, quando computamos apenas pretos e pardos. O Mapa D mostra a concentração de antenas, a partir da técnica de geoprocessamento Kernel, que é resultado do cálculo da densidade de elementos, com a gradação dessas concentrações no espaço. O Mapa E mostra o quadrante sudoeste, com a concentração das rendas mais altas.
Figura 3: Uso do solo predominante, quantidade de empregos e assentamentos precários
Os mapas F e G confirmam a hipótese que a concentração das antenas por setor censitário coincide com os usos do solo predominantes não residenciais (Mapa F: vermelho= comércio; roxo= indústria; azul= institucional), bem como os locais com maior oferta de empregos (Mapa G: azul). O Mapa H, por sua vez, com exceção dos cortiços que majoritariamente ocupam os distritos centrais, evidencia que a maior parte dos assentamentos precários (favelas, núcleos precários e loteamentos irregulares) estão majoritariamente nas periferias, como se fosse o mapa negativo da localização das antenas.
Figura 4: Densidade de mulheres chefes de família e densidade de pretos e pardos
O Mapa I mostra a quantidade de mulheres chefe de família/população e o Mapa J, a quantidade de pretos e pardos/ população dentro de cada setor censitário. Enquanto o Mapa I mostra um padrão de ocupação de concentrações de mulheres chefes de família em algumas áreas do centro expandido, pretos e pardos ocupam alguns distritos centrais e as periferias. As variáveis raça e gênero são fundamentais para compreender que esta camada de precariedade, a exclusão digital por antena, varia segundo a localização.
Figura 5: proposta de subdivisão de áreas prioritárias a partir de setores censitários
Os mapas acima demonstram que essa infraestrutura, apesar de licenciada e operada por entes privados, está aquém de uma política pública inclusiva e democrática. Os números e contrastes são tão expressivos no espaço, o que nos leva a crer que existem ilhas de excelência de inclusão digital em um tsunami de exclusão. Não só a desigualdade de acesso, como impacto à saúde e ao patrimônio histórico são colocados de forma genérica, sem um dedicado estudo sobre distanciamentos.
A proposta de subdivisão em áreas prioritárias acima, segundo a contagem de antenas em setores censitários pode ser um ponto de partida para a definição mais equânime da distribuição dessa infraestrutura. Além deste parâmetro, outros elementos devem ser considerados tais como arborização, edificação, relevo, raça, gênero, classe, renda, saúde e patrimônio histórico. Além disso, o controle social em espaços de negociação coletiva, com observância e avaliação da instalação das infraestruturas, parece fundamental para corrigir distorções, item ausente do substitutivo ao Projeto de Lei em votação.
*Pesquisadora colaboradora do USP Cidades Globais, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP)
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