Por Guido Otero*
Aproxima-se o fim da reforma do Vale do Anhangabaú, e os que frequentam a região já podem ter uma ideia de como ficará o projeto que, a um custo de quase 100 milhões de reais aos cofres públicos, propõe a substituição de um território popular para um voltado ao consumo, sem reconhecer os usos e a população atual. As necessidades de gestão e zeladoria dos espaços públicos centrais são transformados num cartão postal performático da cidade, cuja concessão à iniciativa privada acabará por enterrar, para além do rio, o seu caráter público e democrático.
Falta de participação na concepção do projeto
O projeto não é novo. Segundo dossiê Privatização da Rua foi iniciado em maio de 2007 quando o escritório do arquiteto dinamarquês Jan Gehl desenvolveu um estudo para o centro de São Paulo a pedido do ITDP. O projeto foi doado à Prefeitura pelo Banco Itaú apenas em 2013, quando foi incorporado ao Plano de Metas da gestão Fernando Haddad.
Desde a sua primeira apresentação, passou pela mão de diferentes arquitetos e empresas de engenharia**, conservando o seu partido original: um espelho d’água intermitente que ocupa o centro do Vale, cuja execução demandou além do corte de árvores a destruição total do projeto anterior.
Mesmo tendo passado por certo “processo participativo” – envolvendo desde workshops a apresentações em órgãos colegiados – nas poucas apresentações públicas que aconteceram o projeto foi bastante criticado. Na audiência pública do dia 11 de dezembro de 2014 quase a totalidade dos manifestantes da sociedade civil denunciaram falta de espaço para a participação efetiva; se posicionaram contra a ideia de uma reforma desta envergadura e o apagamento do projeto anterior – de autoria do arq. Jorge Wilheim e os paisagistas Jamil Kfouri e Rosa Grena Kliass, resultado de concurso público organizado pelo IAB –; e declararam desnecessário um projeto do tipo “arrasa quarteirão” para problemas que poderiam ser resolvidos com manutenções regulares e alguma adequação pontual.
Era este o projeto que o Centro precisava? Deveria ter prioridade sobre outros investimentos?
Parece que o cerne do problema do projeto está na falta de um bom diagnóstico: quais seriam as adequações que uma reforma no Vale deveria tratar? Elas justificariam a dimensão desta intervenção?
A priorização desta obra dentre as inúmeras intervenções necessárias para a cidade – que exige, há séculos e em várias regiões, investimentos em infraestrutura básica – nos parece crítica. O gasto em uma área que não precisava de grandes obras parece, mais do que não prioritário, um mal investimento de dinheiro público. Mesmo na região central, que acumula inúmeras intervenções custosas, haveria outros investimentos mais importantes a serem feitos antes do Anhangabaú.
O projeto está em fase de conclusão, mas desde já podemos arriscar dizer que a obra é uma engenhoca com poucos precedentes no Brasil. Um complexo sofisticado de áreas técnicas, bombas, galerias e sistemas de filtragem, escondidos à luz do sol, construído para a ativação de mais de 700 jatos d’água que cenograficamente iluminados prometem oferecer à cidade um “espetáculo”. Sua distribuição ao longo do eixo central do Vale – que propositadamente foi deixado desocupado, ladeado por imensos postes de luz – cria uma paisagem que, quando em funcionamento se tornará, evidentemente, um novo “cartão postal” da cidade. O objetivo central é criar um marco na paisagem espetaculoso, tentando colocar o Anhangabaú no roteiro do turismo e do marketing urbano, e da iminente propaganda eleitoral. Será que era isso que o Centro precisava? Transformar-se em um “cartão postal” performático que apaga a memória e substitui seus atuais usuários? Ainda, será que a cidade reconhecerá a novidade como uma conquista, principalmente num momento de triste reclusão social relacionado à pandemia do Covid-19?
Ativação do Vale ou substituição do território popular pelas classes médias?
Uma das principais justificativas daqueles que defendem a intervenção está em uma necessária “ativação” do Vale, dada certa falta de usos ou frequentadores. Aqueles que circulam a região central sabem que público não falta: muitos trabalhadores durante o dia passam ou ficam algumas horas por lá. Talvez nos finais de semana a região relativamente se esvazie ou talvez faltem comércios no nível térreo de alguns edifícios que se voltam para o Vale. Mas o diagnóstico que apontou o esvaziamento populacional e imóveis subutilizados no Centro nas últimas décadas mostrou que, atualmente, é um processo em gradual reversão.
Mesmo neste contexto, a produção de habitação, principalmente para a vasta população que mora em situações precárias no Centro, além de prioritária seria mais eficaz em aumentar o desejado número de pessoas circulando nos diversos períodos do dia. Nesse sentido se o custo da obra do Anhangabaú fosse revertido integralmente para a produção de moradia, o montante multiplicaria significativamente o que já foi investido pelo setor público nesta rubrica até hoje. Desde 1997, a Operação Urbana Centro investiu parcos R$ 1 milhão em Habitação de Interesse Social na região (1% do valor da obra do Anhangabaú!)
O perfil mais “popular” que a região central gradualmente assumiu a partir da década de 1960 pode indicar que as intenções não sejam exatamente a “ativação” do espaço, e sim uma desejada substituição de público defendida por setores da sociedade. Por isso, devemos nos atentar ao desenho da concessão em andamento para gestão deste espaço pelos próximos 10 anos. O edital atualmente aberto para discussão objetiva a prestação de serviços de zeladoria, jardinagem, vigilância e programação cultural em troca da cessão de espaços públicos e quiosques para a sua comercialização, além do fechamento do Vale para uso privado em até seis dias por mês.
Em apresentação pública online, realizada em junho de 2020, a Prefeitura de São Paulo trouxe como referência para ocupação destas novas frentes comerciais reconhecidos restaurantes voltados para o público de classe alta. Ou seja, se o problema que motivou a obra for de “ativação”, o que parece estar em jogo na terceirização da gestão deste espaço é qual será o público do novo Anhangabaú e como serão tratados aqueles que não se enquadrem neste espectro.
Estamos falando de um espaço reconhecidamente público, que guarda inúmeras camadas de memória e referências culturais caras para a cidade. Na história mais recente ele foi palco tanto de uma miríade de eventos culturais voltados para todos os públicos – de shows à exibição dos jogos da Copa do Mundo, nos quais experimentou seu fechamento e controle para o público em geral – quanto espaço de manifestações fundamentais para o estabelecimento da democracia, como o emblemático comício das Diretas Já, que marcou a derrubada da ditadura civil-militar. Se o Vale já foi o espaço da democracia, a sua gestão privada poderá colocar em cheque seu nobre fundamento?
Qual foi o preço?
O valor da obra em curso – quase R$ 100 milhões – representa:
- cerca de 150% do que foi arrecadado na Operação Urbana Centro ao longo de sua existência (R$ 70 milhões em mais de 20 anos);
- aproximadamente o triplo do que esta Operação efetivamente investiu em intervenções e obras urbanas (R$ 35 milhões);
Para a cidade, para além do gasto excessivo e pouco estratégico de recursos públicos resta entender como essa nova fonte – espetáculo que faz referência (de mal gosto) ao rio que jaz soterrado embaixo – será ativada. Se, como as outras fontes da cidade, será só decorativa, “para inglês ver”; se permanecerá desativada (como ficaram os espelhos d’água do projeto anterior) ou se lhe será proibido o acesso aos ansiosos banhistas.
Enfim, este espaço não se resume ao gesto do arquiteto, nem ao cartão postal do prefeito, ele pulsa na ação dos múltiplos agentes que o ressignificam diariamente – vendedores ambulantes, trabalhadores, comerciantes, skatistas, consumidores, passantes e pelas infinitas manifestações públicas que ali se realizam. A gestão privada deste emblemático espaço da cidade acabará por enterrar, para além do rio, seu caráter público e democrático.
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