Por Isadora Guerreiro*
No último dia 21 de janeiro, foi publicada a Instrução Normativa nº2 que regulamenta o Programa de Regularização Fundiária e Melhoria Habitacional, dentro do Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), com recursos do FDS (Fundo de Desenvolvimento Social). Ficaram agora mais claras as transformações que o governo federal pretende fazer no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). A regularização fundiária com melhorias habitacionais pontuais vem para substituir a construção de novas unidades para a faixa de renda mais baixa, particularmente com os recursos que, no programa anterior, eram destinados às Entidades Organizadoras (em grande medida representantes dos movimentos de moradia).
Em texto anterior já adiantamos alguns dos problemas desse processo. Duas novidades da regularização já estavam ali levantadas: a atuação de agentes privados com papel lateral dos municípios e a não obrigatoriedade da implantação da urbanização para que a titulação seja efetuada. Os procedimentos do programa foram agora regulamentados, e deixam ainda mais claros os problemas.
Como vai funcionar?
O primeiro passo do programa é o cadastramento dos municípios (que já está aberto desde 1º de fevereiro), que devem, antes de qualquer proposta ser apresentada, se comprometerem a colaborar com as necessidades dos chamados Agentes Promotores. Estes são as empresas privadas que executarão os serviços ligados à regularização: mobilização comunitária e cadastro físico e social, estudos técnicos (cartografia, ambiental e áreas de risco), projetos de regularização fundiária e infraestrutura e, por fim, registros das matrículas individuais e da área (loteamento ou condomínio).
A proposta de regularização – que inclui a escolha da área – é feita por estas empresas diretamente para o governo federal (Ministério do Desenvolvimento Regional – MDR), apenas com anuência do município previamente cadastrado. Portanto, não se trata de procurar soluções relativas a direito à cidade e à moradia adequada para a população que mais precisa, indicada pelo município no seu planejamento (Planos Locais de HIS ou Planos Diretores), ou mesmo populações mobilizadas em áreas de conflito ou de risco. Trata-se apenas de dar abertura para negócios privados que possibilitem a agentes privados extrair renda de áreas informais e precárias já consolidadas.
Isso é exacerbado pelo fato de que, de fato, o programa de titulação não considera a execução da infraestrutura urbana – que é a parte mais cara e complexa de processos de inclusão de assentamentos informais na cidade formal. Ele dá recursos e exige apenas projetos e compromisso de execução futura da urbanização pelo município – sem deixar claro quem vai pagar por isso, se o poder público (níveis municipal e estadual) ou as próprias famílias. A normativa do programa também diz que os recursos não podem ser usados para a eventual compra da terra, principalmente quando se tratam de áreas privadas – e neste ponto também deixa em aberto quem pagará por isso, se poder público ou famílias, ou quem fará a mediação para a compra.
Se a proposta do agente privado for aprovada pelo governo federal, a empresa passa para o processo de contratação. Aqui, mais uma novidade em relação à utilização do FDS no antigo PMCMV: a contratação não será mais feita pela Caixa Econômica Federal (Agente Operador do FDS), por meio das suas filiais regionais, como era no programa anterior. Agora, ela será feita por Agentes Financeiros intermediários, previamente cadastrados, que, além de intermediação financeira, também são responsáveis pela aprovação e acompanhamento técnico da regularização. Estes agentes podem ser companhias municipais e estaduais de habitação (COHABs, por exemplo), mas também, e principalmente, agentes financeiros privados: bancos múltiplos e comerciais, companhias hipotecárias (gestoras de Fundos de Investimento Imobiliário), securitizadoras e previdência complementar, entre outras. Estes agentes estão autorizados a terceirizar a parte técnica de aprovação e implementação da regularização e ficar apenas com a parte financeira. Não compete ao programa legislar sobre a gestão destes recursos internamente ao Agente Financeiro, o que dá margem para que o financiamento seja securitizado, ou seja, a dívida das famílias – originada por um fundo público – seja repassada para agentes externos, financeiros, sem intermediação da política pública.
Esse modelo de intermediação financeira já foi implantado anteriormente, no Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH), durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, perpetuando-se numa pequena modalidade dentro do PMCMV, direcionada a pequenos municípios (chamada de Sub-50). Os relatos dos beneficiários deste modelo são de péssimas experiências: descontrole do processo, ineficiência, impossibilidade de renegociação e isenção do poder público.
Atualmente, é de se esperar ainda mais problemas, com a expansão de fintechs, startups de regularização fundiária e a corrida concorrencial dos grandes bancos privados pela bancarização das classes populares – que inclusive poderão acessar o microcrédito a partir da titulação fundiária. Fica mais claro porque a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) articulou uma doação de R$ 500 milhões ao FDS para viabilizar o Programa Casa Verde e Amarela: é um recurso que retornará aos bancos privados, seja como intermediários do programa, seja como abertura de possibilidades para o microcrédito popular.
Quais áreas poderão ser regularizadas?
Longe da promoção do direito à cidade, os objetivos de fazer negócios, endividar e promover a financeirização da moradia das classes populares ficam ainda mais claros quando analisamos a normativa que define critérios e prioriza as áreas a serem regularizadas. Elas não podem ser objeto de conflito fundiário (com ou sem judicialização), devem ser enquadradas como REURB-S (Lei 13.465/2017) e ter entre 100 e 700 domicílios. Mas quais áreas ocupadas irregularmente não têm conflito fundiário e, mais ainda, necessitam de regularização – buscada justamente para dar segurança jurídica aos moradores? Apenas áreas em que é o próprio dono da terra que tem interesse em regularizar: ou o poder público, ou loteadores populares informais (ou grileiros) que querem passar o custo de regularização para as famílias, ou ainda proprietários que desistiram da área ocupada, mas querem ainda ser pagos por ela.
Dentre tais critérios que envolvem a inexistência de conflito fundiário, são poucas as áreas onde é possível usar o programa. Além desses critérios, a priorização dos atendimentos será para áreas públicas, urbanas, que não necessitem remanejamento de população, sem problemas ambientais e áreas de risco (se elas existirem, serão retiradas do projeto), consolidadas e passíveis de adequação às normas urbanísticas municipais, em municípios com mais de 50 mil habitantes e que tenham Plano Local de HIS (PLHIS). Enfim, áreas bastante raras e que, existindo, certamente não estão na lista de prioridades de ação dos municípios para dar resposta à inadequação e insegurança habitacional, além dos conflitos fundiários. Portanto, não se trata de um instrumento e de uma política pública direcionada para atuar sobre os reais problemas urbanos, como diz a propaganda governamental.
Despossessões
Se estas áreas de fato existirem, suas comunidades precisam ficar atentas com a chegada de empresas privadas de regularização fundiária. Pois algumas questões fundamentais para os moradores destas áreas não são sequer levantadas pelo programa, para além da evidente falta de compromisso com a urbanização.
Nada se fala, por exemplo, do Direito Real de Laje (Capítulo V da mesma Lei de REURB 13.465/2017): domicílios construídos em vários andares, de posse de famílias distintas. Quem será titulado nestes casos? Outra ausência alarmante: como ficam os inquilinos e seu direito de permanecer nas comunidades? O cálculo de renda familiar para o financiamento será baseado no inquilino ou no proprietário? Se moradias de aluguel forem regularizadas, haverá alguma ação de formalização dos aluguéis, com proteção dos inquilinos? Não há menção a estas questões, o que mostra que a preocupação com os moradores das áreas é bastante limitada.
No entanto, há muita preocupação com a segurança e viabilidade do negócio, que envolve o endividamento destas mesmas famílias. Segundo a normativa, o contrato de financiamento e a execução da regularização poderão ser efetivados com a adesão de apenas metade das famílias da área, que devem depositar uma caução para tanto, de acordo com sua faixa de renda. Aquelas que não aderirem – seja por não concordarem com o projeto ou por não terem condições financeiras de assumir o financiamento – não terão direito à titulação (ainda que a regularização esteja feita no cartório) e serão de responsabilidade do município.
A situação criada, já vivenciada em experiências práticas, é que acaba ocorrendo uma pressão – pública e privada – para a saída das famílias que não aderirem. Pois os custos da empresa serão os mesmos, mas os ganhos serão acrescidos de acordo com a maior participação. Abre-se a perigosa abertura para a violência privada e para a discricionariedade do poder público que, juntos, podem colocar em andamento grandes processos de despossessão. O mais perverso desta situação é que não será configurado conflito fundiário, destituindo os moradores inclusive das possibilidades de luta por direitos.
Direitos privatizados
Esta pequena análise inicial da normativa do programa de regularização fundiária do PCVA já mostra alguns elementos da política da atual gestão federal para as cidades. Em consonância com a nova Lei de REURB de 2017, parece ter como objetivo a extração de riqueza por meio de uma nova onda de privatização de terras, gerando fluxos financeiros por novos mecanismos de endividamento, focalizados nas classes populares. Processo este todo permeado por violência e despossessão, com incentivo a novos agentes privados pulverizados, porém com fluxos de renda concentrados e direcionados ao mercado financeiro.
Para finalizar, é importante lembrar duas questões: a regularização fundiária é um direito que deve ser efetivado pelo município, e não financiado pelas famílias; e, em relação ao Fundo de Desenvolvimento Social, lembrar que estes mesmos recursos eram antes direcionados para as ações dos movimentos populares de moradia na produção de espaços projetados diretamente pelas comunidades. Ou seja, a forma de utilização desses recursos pelo PCVA, por um lado, privatiza direitos e, por outro, ao serem redirecionados ao mercado financeiro, afetam diretamente a mobilização comunitária na sua luta por moradia digna.
Vale então deixar algumas perguntas: como pensar a organização popular vinculada às políticas públicas na era do Programa Casa Verde e Amarela? É possível acessar moradia digna e direito à cidade dentro desse modelo? Os movimentos de moradia poderiam se colocar como Agentes Promotores privados? Nesta condição, poderiam dar outro direcionamento a este processo? Como fica a luta por direitos quando se adere a uma política pública que passa por cima do município, sem garantir acesso à cidade? Será que as novas iniciativas de articulação de comunidades com agentes privados (inclusive financeiros) pode ganhar espaço na organização popular no contexto de implantação do programa, disputando com movimentos de moradia?
São questões de um novo momento político, no qual a luta por direitos sociais está sendo apropriada por uma diversificada rede de atores privados ligados à prestação de serviços e conectados com as finanças. Sua chegada no território popular já se iniciou, resta saber como será essa nova era de direitos privatizados e como construir resistência a ela.
*Isadora Guerreiro é professora da FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.
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