*Por Raquel Rolnik
Esta terça-feira (22) foi o Dia Mundial Sem Carro. Em muitos países, a data costuma gerar debates e ações concretas em torno de alternativas ao automóvel como meio de transporte, entendendo que esta é a forma menos eficiente, mais predatória e mais perigosa (em relação à vida) para a cidade e seus moradores. Mas, no Brasil, não temos o que comemorar. Justamente neste dia, que deveria provocar discussões e ações sobre mobilidade segura, o Congresso resolveu aprovar o chamado PL da Morte, medida que já discuti — e lamentei — aqui. Para os paulistas, a conjuntura conta ainda com outro projeto que vai na contramão deste objetivo: está em tramitação na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo o PL 529, de João Doria (PSDB), que, dentre outras mudanças, faz a extinção da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU). Estas duas decisões políticas, apesar de legislarem sobre matérias distintas, contribuem para que não se supere os efeitos de um modelo que prioriza uma mobilidade hostil, mortal e individualista, cara, e que favorece um estado de caos inescapável na cidade.
A relação entre os projetos de lei, um nacional e outro estadual, está no fortalecimento do carro como protagonista da mobilidade urbana. Mas por que isso é negativo? Por que pensar em um (ou mais de um) Dia Mundial Sem Carro?
No Brasil, em três anos, os acidentes de trânsito custaram 3 bilhões ao SUS. Foram feridos mais de 1,6 milhão de brasileiros em acidentes de trânsito na última década, de acordo com levantamento de 2019 do Conselho Federal de Medicina, divulgado pela Agência Brasil. Antes do coronavírus, 60% dos leitos de UTI do SUS eram ocupados por vítimas de acidentes no trânsito, segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego. Entre 30 e 40 mil pessoas morrem todo ano no trânsito brasileiro. O texto do PL 3.267/2019, de autoria do Executivo, dentre outras medidas, vincula a suspensão do direito de dirigir por pontos à gravidade da infração cometida, dobrando o número de pontos que o motorista pode atingir antes de perder sua habilitação, de 20 para 40, caso não tenha cometido infração gravíssima. Com uma infração gravíssima, o teto de pontos cai para 30. Com duas, 20. Para motoristas profissionais, o teto será sempre de 40 pontos. A regra anterior era um máximo de 20 pontos em qualquer situação.
Se uma redução de apenas 5% na velocidade média do veículo pode resultar em 30% menos acidentes fatais, protegendo também motociclistas; e se usar o cinto de segurança reduz o risco de morte em uma colisão em até 50% para passageiros nos bancos da frente e 75% nos bancos de trás, por exemplo, porque alterar o Código de Trânsito Brasileiro a fim de facilitar infrações , gerando um trânsito ainda mais mortal? Já é sabido que um sistema de pontuação rígido muda o comportamento dos motoristas para melhor, contribuindo para a queda das mortes no trânsito, como vários estudos demonstram.
O que a noção de falso conforto do carro esconde é que o modelo de mobilidade que o prioriza em detrimento de transportes coletivos e do deslocamento por modos ativos (a pé ou bicicleta) gera uma série de custos individuais e sociais, e não apenas financeiros. O primeiro fator é o tempo-espaço: se um ônibus consegue transportar 45 pessoas confortavelmente no mesmo espaço em que dois carros transportam, em média, três pessoas, isso significa que se essas 45 pessoas optarem pelo carro, invés de haver 1 ônibus circulando no espaço urbano, teremos 30 carros! E o espaço do solo urbano não é infinito: optar por uma política de mobilidade baseada no carro significa perder espaços na cidade (como parques, praças, locais de convivência, serviços), aumentar distâncias, inutilizar o deslocamento ativo, e tirar tempo de vida das pessoas. Ninguém deveria perder 3, 4 horas de seu dia no transporte, o que soma anos inteiros vividos dentro de uma lata se tomarmos para as contas o todo do período de vida ativa de alguém no mercado de trabalho. Além do espaço e do tempo, encher a cidade de carros muito além de seu limite, e estar em um eterno processo de expansão deste limite, tem custos energéticos, ambientais, urbanísticos, econômicos, médicos, e, principalmente, humanos.
A grande questão aqui — e não podemos ser enganados com um discurso oposto — é que esta realidade não é um fatalismo, algo que só se poderia, em sonho, no máximo, se remediar. Esta realidade é escolhida. É uma priorização de gestão. Isto se revela nas decisões e opções de política, como esta, agora, de extinguir a EMTU.
A extinção da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos do estado de São Paulo faz parte de um pacote de medidas de corte de gastos e extinção de diversas autarquias que o governo estadual encaminhou à Assembleia Legislativa — dentre estas medidas, inclusive, faz parte o sequestro de valores dos fundos das universidades paulistas e da Fapesp, instituições fundamentais de pesquisa científica, que inclusive auxiliam (e deveriam ter mais espaço para isso) no desenvolvimento de políticas públicas de mobilidade no nosso país. A EMTU é uma empresa que foi criada em 1977 para planejar e gerir os transportes intermunicipais na região metropolitana de São Paulo. Ela foi responsável pela criação de corredores de ônibus muito importantes, como o corredor ABD, de 12 quilômetros, que liga São Mateus à Jabaquara (passando por Mauá, Santo André, São Bernardo do Campo e Diadema, estendido ao Morumbi), os corredores na região metropolitana de Campinas, no Vale do Paraíba, e agora mais recentemente o VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos) da Baixada Santista.
É evidente que a ideia de uma companhia que faça a gestão do transporte intermunicipal é absolutamente necessária, ainda mais em uma região metropolitana tão grande e tão complexa quanto a de São Paulo, e que a EMTU não tem conseguido desempenhar plenamente este papel na medida em que os municípios continuaram sua própria gestão dos sistemas de ônibus de uma forma não integrada. E, diante deste quadro e das potencialidades da EMTU, o que o governo estadual resolveu fazer? Em vez de fortalecer uma empresa pública que trabalha com planejamento e gestão do transporte metropolitano nas várias metrópoles do estado, o que é vital para o funcionamento das cidades, a proposta do governo estadual é assumir que se trata de uma prestação de serviço privada e que cabe ao Estado um papel simplesmente regulador do “negócio”.
Nesta Semana Nacional do Trânsito e do Dia Mundial Sem Carro, temos muito o que lamentar sobre as escolhas de gestão da mobilidade urbana que estão sendo feitas no nosso país.
*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.
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