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Foto: Marina Harkot

Por Letícia Lindenberg Lemos*, Marina Kohler Harkot**, Paula Freire Santoro***

 

Este texto foi originalmente publicado no livro Direito à Cidade: uma visão por gênero, do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, acompanhado de outros ensaios de qualidade sobre as mulheres e à cidade. Para conhecer o conteúdo da publicação na íntegra, clique aqui.

As mulheres usam a cidade e se movem por ela de modo bastante diferente dos homens. Tais diferenças têm raízes no conceito de gênero, constitutivo das relações sociais e a partir do qual os papéis designados para homens e mulheres são social e culturalmente construídos. A interdependência social – poder contar com uma rede de apoio –, por exemplo, tem um papel muito mais fundamental para mulheres do que para homens. Assim, há aspectos da socialização feminina estereotípica e da divisão sexual do trabalho, que resultam nas diferentes vivências para homens e mulheres no espaço urbano e isso se reflete nas escolhas da forma de se locomover pela cidade.

Susan Hanson, uma acadêmica branca norte-americana, discorre sobre o efeito transformador da ampliação da mobilidade para mulheres a partir da história pessoal de Francis Willard, sufragista norte-americana, que ao descrever seu aprendizado tardio de andar de bicicleta, resgata o importante papel desse modo no processo de emancipação feminina. Hanson aponta que a mulher fica mais restrita ao espaço doméstico e com movimentos limitados, enquanto o homem desenvolve mais atividades fora de casa, no espaço público, com movimentos que se expandem – o que a autora chama de “dualismo familiar”. No entanto, o contexto norte-americano ou europeu é muito diverso do brasileiro ou latino-americano, no qual acessibilidade e mobilidade são fortemente impactadas por recortes de renda, escolaridade, cor e etnia, aspectos culturais e morais, entre outras. Essas questões desenham cidades desiguais e excludentes e impõem a necessidade de relativizar as análises com recortes de gênero, ainda que ampliar a mobilidade das mulheres possa mesmo ser transformador para a vida delas.

Em São Paulo, no final do século XVIII, o espaço público era tido como um local de imoralidade para as mulheres “onde se poderia perder a virtude, desgraçando-se” enquanto que para os homens “era uma região de liberdade”, onde eles poderiam “livrar-se da repressão e do autoritarismo da respeitabilidade encarnados na figura do marido e pai” (frase de Raquel Rolnik do livro A cidade e a lei, de 1997, p. 34). Não que as mulheres não estivessem nesses espaços, mas as que estavam eram estigmatizadas por ocupá-lo. Ainda que a condição do espaço público já tenha se alterado consideravelmente no Brasil do século XXI, o trabalho reprodutivo ainda se mantém principalmente sob a responsabilidade das mulheres, conhecido como “jornada dupla”, resultando não somente em menos horas de trabalho remunerado para elas, como em uma jornada média de trabalho entre 10% e 15% maior que a dos homens. Políticas que observam como conciliar trabalho, vida pessoal e vida familiar são, portanto, fundamentais, e o olhar para a mobilidade urbana não deve ficar limitado à análise sobre o ato de se deslocar pelo espaço – questão frequentemente utilizada por ser mais facilmente mensurável –, mas incluindo leituras sobre as questões sociais que permeiam a mobilidade.

A principal pesquisa sobre os padrões de mobilidade urbana da Região Metropolitana de São Paulo é a Pesquisa de Origem-Destino (OD), realizada a cada 10 anos pelo Metrô desde 1967, com duas aferições – uma em 2002 e outra em 2012 – e cujos resultados são apresentados de forma agregada, o que dificulta as leituras com recorte de gênero. A pesquisa mostra que, apesar de ter ocorrido uma redução da diferença entre homens e mulheres, elas ainda se movem menos que homens – o índice de mobilidade (relação entre determinadas viagens e a população que realizou essas viagens) masculino ainda é maior que o feminino. A participação feminina é bastante baixa especialmente nas viagens dirigindo automóvel ou usando motocicleta, elas geralmente usam modos motorizados individuais como passageiras (de automóvel ou táxi). Para os modos ativos, a participação feminina nos deslocamentos a pé é maior e há uma predominância masculina nas viagens com bicicleta. A participação feminina no uso da bicicleta se manteve, em média, abaixo de 10% em toda a série histórica da pesquisa, ultrapassando essa marca somente em 2012, quando houve um aumento notável da proporção, passando de 9% em 2007 para 12% na última edição da aferição.

As contagens de ciclistas realizadas pela sociedade civil também mostram uma baixa incidência de mulheres usando bicicleta. A presença feminina não chegou a 15% nos locais com maior proporção de mulheres pedalando, como a Avenida Paulista, enquanto em locais menos centrais a proporção não passa de 2% (Ciclocidade, 2015). As medições, no entanto, mostraram um crescimento de ciclistas impressionante ao longo do tempo, especialmente mulheres, em dois locais onde foram realizadas contagens de forma mais sistemática. Na Av. Eliseu de Almeida, por exemplo, com intervalo de 5 anos entre a primeira e a última contagem, mediu-se um aumento de 122% no total de ciclistas e extraordinários 1.444% no total de mulheres pedalando, passando de irrisórias 9 mulheres contadas em 2010, para 139 em 2015. Já na Paulista, onde houve medições no mesmo período da Eliseu, enquanto o aumento geral foi de 188%, o de mulheres foi de 1.004%.

Nessas duas vias houve infraestrutura implantada após o início das medições, sugerindo alguma influência da infraestrutura na decisão das mulheres por utilizar a bicicleta, embora o caráter pontual desse tipo de pesquisa não permita compreender essa relação. O aumento impressionante medido pelas contagens pode significar que as mulheres que se deslocavam por esses caminhos teriam passado a usar a bicicleta em substituição ao modo usado anteriormente no trajeto. É também possível que o aumento decorra da escolha feita por mulheres que já usavam a bicicleta, mas circulavam por outros caminhos – possivelmente vias com tráfego menos intenso nos arredores das duas avenidas –, por usar a rota com infraestrutura recém implantada, seja por ser mais direta, ou por ter se tornado mais segura para circular com bicicleta. Ou, ainda, pela combinação dos dois fatores elencados, além de outros não explorados aqui.

De fato, houve uma implantação intensa de infraestrutura para circulação de bicicleta em São Paulo entre 2009 e 2012, mas o que foi construído até então somou menos do que 1% da malha viária para veículos motorizados. Ainda, a infraestrutura cicloviária não constituiu uma rede para circulação de bicicleta, mas trechos espalhados pela cidade sem conexão entre si e frequentemente com baixa acessibilidade – por exemplo, ciclovias com poucos acessos –, além de terem sido adotados modelos que não garantem proteção real para os ciclistas – as ciclorrotas – em cerca de 40% da extensão da infraestrutura implementada até 2012.

Ainda, outras pesquisas também realizadas pela sociedade civil indicam que a infraestrutura cicloviária parece ter importância similar para mulheres e homens, mas o principal problema apontado, também independentemente do gênero, foi a falta de respeito dos condutores de veículos motorizados (Para saber mais sobre isso, ver Lemos et al., 2016). Quando mulheres foram questionadas sobre os desafios para usar a bicicleta ou sobre o que as impedia de adotar a bicicleta como meio de transporte, a falta de infraestrutura foi indicada por somente 14% de mulheres que usam bicicleta para transporte e 8% daquelas que não usam, mas usam para o lazer ou têm contato com quem use. Em ambos os grupos de mulheres, desafios como riscos de queda, colisão ou assalto, ou medo de compartilhar a via por falta de respeito dos condutores de veículos motorizados apareceram muito mais frequentemente do que pedalar por uma rua sem infraestrutura cicloviária (Ciclocidade, 2016). Os desafios apontados mais frequentemente pelas mulheres desconstroem a hipótese de que, “por natureza”, a mulher seria menos propensa a se ariscar e mostram que a segregação da bicicleta no sistema de mobilidade seria uma solução para problemas do âmbito de educação do trânsito, mas não é suficiente para superar os problemas apontados. Mostra-se, assim, imperativo adotar uma abordagem mais abrangente da política cicloviária, que não se restrinja à implantação de vias segregadas para a bicicleta.

Além do quadro de implantação de infraestrutura para circulação de bicicletas, uma conjuntura mais ampla é essencial para explicar o aumento que vem sendo medido pela OD e pelas pesquisas da sociedade civil. Além do início da concretização de uma política pró-bicicleta, ocorreu uma mobilização mais ampla e maior organização da sociedade civil, o que foi associado a eventos marcantes no período. As Bicicletadas, versão brasileira da Critical Mass de São Francisco, nos Estados Unidos, se constituíram como local de articulação de uma luta em prol da bicicleta, e entre as diversas mortes de ciclistas no trânsito paulistano nesse período, três tiveram grande divulgação na mídia, possivelmente por estar no território das classes de mais alta renda e por ser uma pessoa dessa classe, além de membro ativo no movimento cicloativista, a falecer. Ainda que sejam eventos negativos, ajudam a trazer para o debate público o uso da bicicleta e, possivelmente, promover um movimento reativo, estimulando seu uso.

Ainda, a política cicloviária dos últimos anos ajudou a reforçar os padrões de segregação socioespacial. Os locais que receberam infraestrutura cicloviária foram justamente onde o uso da bicicleta se mostrou menos intenso em toda a série histórica da OD e com menor concentração de mortes de ciclistas. Em outras palavras, a infraestrutura não foi produzida onde mora e circula (ou morre por incidentes de trânsito) a maior parte dos ciclistas. E isso se refletiu nas desigualdades de classe e gênero. A adoção recente da bicicleta, por exemplo, se deu nas classes mais altas, especialmente para as mulheres, que moram em territórios historicamente mais favorecidos por infraestrutura, com melhores condições urbanas no geral, incluindo empregos.

Aos poucos, as mulheres mudam sua relação com o espaço público, e junto com mobilizações sociais mais atuais pelos modos ativos, ocupam as cidades, ainda que sobre uma base socioterritorial desigual, com infraestrutura concentrada, que reflete as enormes diferenças de classe, escolaridade, raça e etnia, entre outras questões. Para mulheres (e meninas), ações para tornar a bicicleta uma opção real e atraente não se encerram na produção de infraestrutura cicloviária, mas demandam uma abordagem ampla, que entenda a mobilidade urbana como um campo maior do que o deslocamento e permeado por questões sociais e culturais. As mudanças que vêm ocorrendo no universo feminino em relação a aspectos demográficos e do mercado de trabalho no país e, especialmente, as alterações culturais e morais em curso que pressionam a ideologia fundada na dualidade homem-mulher – com a diminuição das famílias do tipo “casal com filhos” e aumento da diversidade de formatos encontrados, especialmente na metrópole paulistana – indicam que também teremos alterações intensas no futuro. As questões sociais e culturais que vão derivar dessas mudanças devem ser consideradas no desenho de políticas de mobilidade, incluindo aquelas relativas ao uso da bicicleta como meio de transporte.

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* Letícia Lindenberg Lemos  é arquiteta urbanista e doutoranda na FAU-USP. Tem especialização em mobilidade ativa pela United Nations Institute for Training and Research e fez parte da equipe do observaSP, projeto do LabCidade.

** Marina Kohler Harkot é cientista social, mestre e doutoranda em Planejamento Urbano pela FAU-USP. Atua em coletivos da sociedade civil ligados à promoção da bicicleta. Também é conselheira eleita do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito de São Paulo.

*** Paula Freire Santoro é arquiteta urbanista, professora de Planejamento Urbano da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.