Texto originalmente publicado no Nexo Jornal

Por Luciana Bedeschi* e Paulo Romeiro**

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Rio de Janeiro. Foto: @ikkoskinen/Flickr

No final do ano passado, o governo editou a Medida Provisória MP 759/16, supostamente com objetivo de facilitar a regularização fundiária de terras urbanas e rurais. As análises da questão urbana e rural da MP, entretanto, mostram que, por trás dessa proposta, há uma tentativa de mercantilização das terras ocupadas por assentamentos da reforma agrária e dos assentamentos informais urbanos, anistia às ocupações irregulares de alto padrão, além da venda, sem qualquer critério de interesse social ou coletivo, de imóveis patrimônio da União.

A mídia hegemônica e entidades como Irib (Instituto do Registro Imobiliário do Brasil), CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) e Confederação Nacional de Municípios reproduziram o discurso oficial, aparentemente repetindo informações divulgadas pelo Ministério das Cidades, e festejando a MP. Movimentos sociais do campo e da cidade, entretanto, começam a apresentar sua contra-narrativa, algo fundamental uma vez que os reais objetivos e consequências da adoção dessa Medida Provisória não constam claramente do discurso oficial.

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), por exemplo, já se posicionou contrariamente à Medida Provisória por meio da Carta de Fortaleza, divulgada no final de janeiro, na qual denuncia a privatização das terras destinadas à reforma agrária. O movimento se posicionou sobre a questão da seguinte forma: “Somos contrários e combateremos a Medida Provisória n. 759 do retrocesso da Reforma Agrária, que privatiza as terras destinadas à reforma agrária, transformando-as em mercadoria, legaliza os grileiros de terras públicas e exclui as trabalhadoras e os trabalhadores acampados do processo de assentamentos”. O MST também denuncia “a privatização das terras, disfarçada de titulação”, em alusão à proposta da MP de titulação individual, por meio da transferência da propriedade, e a possibilidade de venda das terras dos assentamentos. Considerando a atual situação econômica e a capacidade de endividamento dos assentados, a venda será inevitável, uma vez aberta essa possibilidade, frente à pressão econômica imposta pela expansão do agronegócio.

No último dia 1º, foi realizado o debate “Regularização fundiária no Brasil o que está em jogo?” realizado pelo IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil e pelo IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico) com apoio do Instituto Pólis, no qual ficou evidenciado que a MP visa atacar a questão fundiária no Brasil em diversas frentes.

A complexidade e a amplitude das questões em jogo vão muito além de pretensões de facilitar a regularização fundiária de assentamentos urbanos informais e assentamentos da reforma agrária

Mostrou-se que há um claro intuito de privatização das terras públicas da União. Tendo como justificativa a necessidade de aumento da arrecadação, sem obedecer a critérios de interesse social ou coletivo e ignorando o princípio da função social da propriedade, que deve orientar a política fundiária do governo, a proposta da MP visa expressamente instituir mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União. Nesse caso, o que está sendo vendido como tentativa de desburocratização e aumento da eficiência na gestão do patrimônio público, na prática esconde a possibilidade de transferência desse patrimônio e de recursos naturais sem qualquer critério de interesse social ou coletivo, na medida em que o governo terá carta branca para alienar esses imóveis. Um efeito perverso dessa possibilidade de alienação sem qualquer critério será, por exemplo, a legalização da grilagem de terras públicas, inclusive na Amazônia Legal, representando uma séria ameaça ao patrimônio ambiental brasileiro e aos modos de vida tradicionais.

Outro ponto debatido é a intenção de disponibilizar para o mercado terras ocupadas atualmente por população de baixa renda nas cidades e de assentamentos da reforma agrária no campo. Além da titulação individual das terras da reforma agrária, a MP, no meio urbano, revoga a Lei n. 11.977/09, que estabelece princípios que orientam a regularização fundiária, definida até a edição dessa Medida Provisória, por um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais para transformá-la, prioritariamente, em um processo de titulação em massa, que tem como intuito não a moradia adequada, mas a mercantilização da terra urbana.

Outra questão central dessa Medida Provisória é que ela prioriza a regularização fundiária de ocupações de alto padrão, como condomínios fechados e loteamentos em áreas de preservação ambiental, sem qualquer contrapartida. Com a conversão da MP em lei, por exemplo, condomínios fechados, que na realidade foram aprovados como loteamento e, portanto, deveriam disponibilizar suas ruas e praças para o uso público serão regularizados sem qualquer contrapartida, o que significará a privatização dos espaços públicos, de que todos poderiam desfrutar, resultando ainda em maior segregação socioterritorial nas cidades.

É por tudo isso que nesta semana, foi lançada por um coletivo de entidades e pessoas a carta “Medida Provisória nº 759/2016: A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil”, que sistematiza os principais problemas da MP debatidos no evento mencionado. A carta aponta a complexidade dos temas reunidos nessa proposta de lei e a amplitude das questões em jogo, que vão muito além de pretensões de facilitar a regularização fundiária de assentamentos urbanos informais e assentamentos da reforma agrária. A MP n.  759/2016 representa um assalto em diversas frentes ao território brasileiro, pois aprofunda o processo de privatização do Brasil e impede o acesso democrático à terra nas cidades, no campo e na Amazônia Legal.

Leia íntegra da carta:

CARTA AO BRASIL

Medida provisória nº 759/2016:

A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil

Introdução

A presente carta tem o objetivo de convocar ao engajamento os movimentos sociais brasileiros e todas e todos que acreditam na luta pela Reforma Urbana e Agrária, para que pressionemos o Governo Federal, exigindo que seja retirada da pauta do Congresso Nacional a Medida Provisória nº 759/2016 e que se promova um amplo debate sobre o direito à posse e à propriedade, pautado nos princípios constitucionais, nas garantias individuais e coletivas de trabalhadores rurais e urbanos, e no princípio da função social da propriedade, na cidade, no campo e na floresta.

Política Nacional de Regularização Fundiária: uma construção democrática

Desde a década de 70 os grandes centros urbanos foram alvo de notável crescimento populacional, e com ele o surgimento de assentamentos informais em todo o país, que se incorporaram nas favelas, áreas públicas ocupadas, loteamentos informais e conjuntos habitacionais implantados pelo poder público de forma irregular. Na época, a Lei 6.766/1979 deu os primeiros passos para o reconhecimento do direito à regularização fundiária dos loteamentos populares das periferias urbanas.

A lógica desordenada e excludente do crescimento urbano resultou em mais de 11 milhões de pessoas vivendo em assentamentos informais no país, cerca de 6% da população brasileira. Essa realidade se apresenta como um desafio para as três esferas de governo, sobretudo no que diz respeito à introdução da regularização fundiária como uma das ações prioritárias da política habitacional e de acesso a terra.

Em 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001), resultado do acúmulo de décadas de debate público com inúmeros setores da sociedade. O Estatuto regulamentou o capítulo da Política Urbana da Constituição Federal de 1988, regulamentando o princípio da função social da propriedade e do planejamento territorial participativo. Definiu como uma de suas normas gerais a “regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa” (art. 4º). Após amplo debate, consolidou-se na última década o marco legal da Política Nacional de Regularização Fundiária.

Em 2007, com a Lei 11.481/2007, a antiga e esparsa legislação do patrimônio da União foi atualizada e adequada à Constituição de 1988 e ao Estatuto da Cidade, munindo a União de instrumentos para a execução da regularização fundiária de interesse social. São exemplos desta modernização que democratizou o acesso à propriedade pública, a previsão expressa da Concessão de Uso Especial Para Fins de Moradia (art. 22-A  da Lei 9.636/1998), a isenção de taxas com ampliação da população de baixa renda para aqueles com até 5 salários mínimos mensais, a ampliação das hipóteses de interesse social e da aplicação da Concessão de Direitos Real de Uso aos imóveis públicos federais. No ano seguinte a Lei 11.952/2009, criou o Programa Terra Legal para a Regularização Fundiária de áreas da União na Amazônia.

Também em 2009 o Brasil passou a contar com uma legislação nacional com regras gerais para Regularização Fundiária Urbana (Capítulo III da Lei Federal nº 11.977). Esta regulação nacional, lei 11977/2009, orientou e instrumentalizou os municípios brasileiros para a regularização fundiária, através dos artigos 53 a 68, da seção 2, que tratam da regularização fundiária de interesse social e específico através da Demarcação Urbanística e foram revogados pela MP 759.  A Lei 11977/2009 é autoaplicável, ou seja, não carece da edição de normas locais para sua imediata aplicação nem de decretos ou regulamentos posteriores. Os principais avanços trazidos por esta legislação foram:

  • 1ª Lei nacional de regularização fundiária
  • Estabelecer de princípios e procedimentos próprios da regularização fundiária
  • Conceder autonomia Municipal para os programas e ações de regularização fundiária – incluindo licenciamento urbanístico e ambiental
  • Criação da “Demarcação Urbanística”, instrumento de regularização fundiária novo para uso e aplicação pelos Municípios
  • Definir regras para os registro de imóveis, desjudicializando a Regularização Fundiária
  • Definir conceitos de: Regularização fundiária, área urbana e Zona Especial de Interesse Social
  • Distinguir regularização fundiária de interesse social (baixa renda) e regularização fundiária de interesse específico (média e alta renda)
  • Estabelecer o conteúdo mínimo do projeto de regularização
  • Determinar os atores legitimados para promover a regularização fundiária
  • Criar procedimento para o licenciamento ambiental pelos Municípios, em consonância com o Código Florestal

Contudo, em 22 de dezembro – apagar das luzes de 2016, foi publicada a MP 759 que destrói toda a construção de anos de trabalho em regularização fundiária ao impor, entre outros destaques:

  • Revogação da disciplina nacional de Regularização Fundiária de Assentamentos Urbanos (Capítulo III da Lei nº. 11.977/2009)
  • Alteração das regras de Regularização Fundiária e Venda de Imóveis da União, do Programa Terra Legal na Amazônia, da Regularização Fundiária Rural
  • Alteração das regras da Política Nacional de Reforma Agrária

A MP 759 traz em seu texto uma série de inconstitucionalidades, desrespeitando competências federativas e atentando contra a probidade administrativa na gestão da cidade e do patrimônio público, independente de sua função social. Evidencia-se, portanto, que:

  • Não há justificativa para urgência, posto que o Brasil possui uma legislação avançada nesse campo (o que não impede que venham ocorrer novos avanços necessários pela via jurídica adequada)
  • Causa enorme confusão jurídica ao revogar dispositivos legais e substituir por outros que não são autoaplicáveis, conferindo enorme discricionariedade aos inúmeros regulamentos do Poder Executivo necessários para que a MP tenha eficácia
  • Impõem maiores ônus para a população de baixa renda, prejudicada com a revogação dos procedimentos de regularização fundiária urbana que dependem de nova regulamentação para terem continuidade em todo o Brasil, e principalmente pela facilitação da concentração fundiária
  • Flexibiliza a regularização para ocupações irregulares de alto padrão, anistiando o mercado imobiliário e especuladores urbanos e rurais

 

Riscos e retrocessos de direitos – A MP 759 rompe com vários regimes jurídicos de acesso à terra, construídos com participação popular. Ela também promove a liquidação do patrimônio da União e coloca em risco a Floresta Amazônica. A MP 759 foi editada sem consulta pública às populações atingidas, sem diálogo com os diversos segmentos que compõe o Conselho Nacional das Cidades, bem como o Ministério Público e a Defensoria Pública, sem ouvir os movimentos sociais, sem ouvir profissionais multidisciplinares da União, Estados e Municípios que trabalham com as políticas de regularização fundiária rural e urbana. Corrompida por inconstitucionalidades, a MP 759 promete falaciosamente algo que não vai cumprir, pois remete maior parte da matéria a regulamentações futuras. Temas fundamentais que deveriam ser previstos agora, ficam postergados para disciplina por “atos” do Governo Federal.

Regularização fundiária é direito, e não pretexto para a concentração fundiária e anistia a loteamentos e condomínios irregulares de alto padrão – A MP 759 cria tratamento desigual entre os ricos (Reurb-E) e pobres (Reurb-S), flexibilizando a regularização  de loteamentos e condomínios fechados de alto padrão. Editada em 22/12/2016, a MP 759 é um verdadeiro presente de natal” para falsos loteadores das áreas urbanas, desmatadores e grileiros de terras públicas na área rural, a ainda:

  • Extingue critérios que asseguravam o interesse social o que vai prejudicar os trabalhadores, sobretudo no presente contexto de crise.
  • Acaba com o tratamento prioritário das áreas de interesse social por parte do Poder Público e respectivo investimento em obras de infraestrutura, em construção de equipamentos públicos e comunitários para requalificação urbanística para a melhoria das condições de habitabilidade.
  • Extingue o licenciamento ambiental diferenciado para as áreas de interesse social, inviabilizando na prática a regularização fundiária destes casos pelo Município.
  • Revoga os mecanismos para obrigar os loteadores irregulares e grileiros de terras públicas a promoverem a adoção de medidas corretivas, repassando ao Poder Público o encargo dos investimentos e o impedindo de ser ressarcido.

Privatização em massa do Patrimônio da União – A doação e venda dos imóveis da União dependem de critérios legais para que o interesse público e social seja atendido com o rompimento do domínio público. A MP pelo instrumento da “legitimação fundiária” permite a privatização sem nenhum critério legal, por mero ato discricionário do Poder Executivo. Possibilitam-se a regularização de condomínios de alto-padrão, loteamentos fechados em áreas federais, sem a devida exigência de contrapartidas ambientais. Um dos grandes negócios da MP 759 é promover a liquidação do patrimônio da União (terras e águas federais) em prejuízo de sua função socioambiental, ou seja, a MP 759 entrega o patrimônio público nacional ao mercado imobiliário e aos grandes empreendedores público-privados.

Anistia a desmatadores e grileiros na Amazônia – A massiva crítica ambiental à MP 759 alerta para o fato de que as terras públicas da Amazônia estarão, mais do que nunca, sujeitas à grilagem, neste caso favorecida pela MP 759 que amplia prazo para “regularizar” invasões e grilagens inclusive tolerando o desmatamento como prova de ocupação. A MP 759 deturpa os critérios de regularização fundiária do Programa Terra Legal na Amazônia (Lei 11.952/2009) permitindo a regularização em favor de quem já é proprietário de outro imóvel e para ocupantes após 2004, sem cadeia possessória contínua. Passo contínuo à privatização de terras da União na Amazônia, almeja-se a liberação da venda de terras rurais a estrangeiros, proposta pelo Projeto de Lei nº 4.059/2012, apoiado pelo atual Governo.

Ameaça à Política Nacional de Reforma Agrária: No tocante à regularização fundiária rural, a MP 759 é marcada pela mercantilização da terra e desoneração do INCRA das obrigações junto às famílias assentadas. Altera a Lei nº 8.929/1993 (Lei da Reforma Agrária) e a Lei nº 13.001/2014 (sobre créditos de famílias assentadas). Na contramão do interesse público nacional e regional que envolve a matéria, a MP 759 tende a “municipalização” da seleção de famílias beneficiárias, fortalecendo as oligarquias locais.

A MP 759 e a aversão às lutas populares. Na cartilha da MP 759 “Quem luta, tá morto”:  A ofensiva do artigo da 62 impõe um retrocesso de garantia de direito à justiça, o que totalmente é inconstitucional! Nesta mesma lógica, são preteridas as famílias acampadas nos assentamentos da Reforma Agrária.  Nas situações de conflito fundiário urbano judicializado, assentamentos organizados estão sob a imposição da MP 759 impedidos de:

  • Defender-se a partir do princípio da função social da propriedade
  • Defender-se a partir das disposições das ZEIS
  • Defender-se com base na usucapião constitucional
  • Defender-se com base na desapropriação do artigo 1.228, §4º do Código Civil

A financeirização da terra urbana e rural: A MP 759 não pode se impor à parte do contexto político e socioeconômico Brasileiros. A recente promulgação da PEC nº 241, que congela os gastos públicos por 20 anos, somada aos cortes no Programa Minha Casa Minha Vida para as menores faixas de renda sinalizam para um cada vez maior afastamento do Estado brasileiro no cumprimento das funções públicas e sua substituição pela iniciativa e negócios privados. A MP reforça a financeirização do espaço urbano e rural. Fortalecendo ainda mais os negócios bancários e, no longo prazo, a intensificação do mercado imobiliário e fundiário excludente, sobretudo, nas metrópoles brasileiras. A fórmula baseada na mera entrega de títulos conduz ainda ao fortalecimento do conceito privatista da terra e a concepção da propriedade como mero direito, fatores responsáveis pela tradição patrimonialista que constitui e mantém as elites fundiárias no Brasil.

 

Não à MP 759!

Nenhum Direito a Menos

Regularização fundiária é um direito

Em defesa da democracia na cidade e no campo

Pela função social da propriedade, na cidade, no campo e na floresta!

Luciana Bedeschi* é advogada, mestre em direito urbanístico e ambiental pela PUC-SP, doutoranda em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, atualmente pesquisadora do Observatório de Remoções, grupo de pesquisa do LabCidade – FAUUSP e UFABC.

Paulo Romeiro** é advogado, mestre em direito urbanístico e ambiental pela PUC-SP, doutorando em Direito Econômico, Tributário e Financeiro pela FDUSP, atualmente pesquisador do Instituto Pólis e do ObservaSP.