Stella Paterniani*
Com o objetivo de descobrir como se constituía aquilo que muita gente chamava de “movimento social”, iniciei uma pesquisa em 2008, quando me envolvi com movimentos de luta por moradia do centro da cidade de São Paulo. Parte dessa pesquisa resultou na minha dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, orientada pela Profª Drª Suely Kofes, e no livro recém lançado “Morar e viver na luta: movimentos de moradia, fabulação e política em São Paulo”, publicado pela Editora Annablume.
Via etnografia, busquei levar a sério as formulações das pessoas com quem tenho feito pesquisa ao longo desses anos, seus modos de organizar a experiência (ou a existência), suas elaborações, seus modos de conhecer e de existir. Quem me apresentou a esses modos de conhecer, aos quais tento fazer jus no livro com as noções de Somos uma só, Quem não luta tá morto e Lutar não é crime foram, principalmente, as pessoas que moravam e moram na Ocupação Mauá – um prédio ocupado por movimentos de luta por moradia no centro da cidade de São Paulo, na região da Luz. No livro, busco entender como se forma a coletividade na Mauá e quais as noções de política que os moradores e os envolvidos com a ocupação vivem.
Chamei o resultado de etnografia de uma experiência, com três níveis de compreensão. Primeiro, a experiência da própria ocupação Mauá, entendendo que ela não se restringe ao prédio ocupado, mas se espraia em relações com outros grupos, atores, entidades, coletivos; em eventos, memórias e situações que vão se descortinando, incorporando-se e se diferenciando, também, entre si. Simultaneamente, existe também o esforço em se criar a comunidade Mauá, isto é, construí-la como coletividade coesa, especialmente perante o proprietário do prédio ocupado. Essa experiência, portanto, é composta por processos de construção de uma coletividade que contempla a diferença e é composta por outras coletividades. Esses processos de fortalecimento de uma coletividade via incorporação e diferenciação vieram à tona, de maneira mais intensa, quando do pedido de liminar de reintegração de posse do prédio ocupado por parte do proprietário, que aconteceu durante a pesquisa, em 2012.
Outro nível de compreensão da experiência diz respeito ao meu encontro com a experiência da ocupação para os diretamente envolvidos nela e os confrontos que emergiram daí. Esse segundo nível se mescla ao terceiro: o da escrita. O livro se organiza em duas partes, após uma contextualização histórica sobre o modo de ocupação da cidade de São Paulo, chamando atenção para práticas e políticas de segregação via raça e classe enfatizadas pelo Estado. Os títulos das duas partes centrais seguem frases escritas com letras grandes nas paredes laterais do salão de reuniões da Mauá, duas noções centrais para entender o imbricamento entre a luta e a vida na Mauá: Somos uma só e Quem não luta tá morto. Em ambas as partes, busco mostrar como se orquestra a construção dessa coletividade que contempla a diferença: a comunidade Mauá, composta por três movimentos de luta por moradia e muitos apoiadores e pessoas que orbitam em torno dela, fortalecendo sua luta.
Na primeira parte, mostro as reuniões de base, as assembleias e as atividades de formação como fundamentais para formar esse corpo coletivo. Na segunda, mostro como, especialmente após a liminar de reintegração de posse, os moradores da Mauá buscaram fortalecer a unidade, especialmente ao organizar um ato em defesa da Mauá e ao participar de espaços institucionais de decisão.
O que os moradores, as lideranças e outras pessoas envolvidas nessa experiência me mostraram é que a luta é equivalente à vida. Dizer que “Quem não luta tá morto” quer dizer: viver é lutar. É estar em movimento. É lutar para que seus corpos, suas famílias, seus desejos, suas casas permaneçam ali, onde eles querem ficar, onde suas vidas já acontecem.
O que percebi, também, é que essa forma de vida – a luta – se expressa, na ação política, composta por três elementos entrelaçados e presentes em maior ou menor grau: a resistência, a reivindicação e a prefiguração. Os movimentos de luta por moradia não se constituem apenas como movimentos de resistência, tampouco somente movimentos que reivindicam políticas do Estado.
Percebi essas duas dimensões (resistência e reivindicação) intrincadas entre a vida e a política das pessoas que moram e fazem a luta da Mauá. A ocupação é resistência aos processos de gentrificação que visam expulsar da região central da cidade os moradores de baixa renda e os negros sob o diagnóstico da degradação, a despeito de um outro discurso que afirma que ali não existe vida e que, portanto, é preciso “revitalizar” o espaço.
Esses discursos, que, aliás, muitas vezes se propõem como projetos “novos” como o Projeto Nova Luz, em cuja rua limítrofe da área de impacto se localiza a ocupação – não têm nada de novo. No caso do centro da cidade de São Paulo, os conflitos e as intervenções do poder público ocorrem há décadas e têm sido ancorados nesse discurso da revitalização e da novidade. O diagnóstico da precariedade, da ausência de vida, da bagunça, da desorganização é o que serviu de embasamento para justificar a intervenção via Nova Luz; o Projeto previa a demolição do prédio ocupado. Mas o que tanto o diagnóstico da degradação como o Projeto expressam é a desconsideração dos interesses das pessoas cujas vidas acontecem ali.
A Mauá é também ação reivindicatória na medida em que a reivindicação do movimento é que o Estado reforme o prédio e o transforme em habitação de interesse social, destinado às famílias de baixa renda que o ocupam, via política pública. Desse modo, o que se vê é que a dimensão contra-Estado presente na resistência se combina com o reconhecimento do Estado como interlocutor na reivindicação.
Além dessas duas dimensões, também percebi uma terceira, a da prefiguração: as famílias que ocuparam o número 340 da Rua Mauá já estavam vivendo, em alguma medida, do modo como acreditavam que deveriam e gostariam de viver, isto é, naquele prédio, naquele local: ocupando o prédio, cuidando das crianças, resolvendo problemas de infraestrutura, promovendo festas e encontros, desenvolvendo hortas, atividades de geração de renda, encontros. Foi essa coletividade que contempla a diferença e, não obstante, constrói-se como singular; essa coletividade que muito nos ensina sobre política e sobre como a luta intrinca a política e a vida, que pretendi apresentar nas páginas do livro “Morar e viver na luta: movimentos de moradia, fabulação e política em São Paulo”. Fica o convite à leitura e ao debate.
Stella Paterniani* é doutoranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília e pesquisadora no Observatório de Remoções (FAUUSP/UFABC)