Por Renato Abramowicz Santos, Felipe Moreira, Débora Ungaretti e Raquel Rolnik*
No dia 28 de fevereiro de 2020 o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP/SP) entrou com uma Ação Civil Pública (ACP) contra o Governo do Estado de São Paulo, a CDHU e a prefeitura municipal cobrando a reparação e indenização às quase 200 famílias que foram indevidamente removidas em 2018 de uma quadra (quadra 36) que faz parte de uma Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS-3) do centro de São Paulo, sem que o atendimento habitacional definitivo estivesse garantido junto ao Conselho Gestor desta ZEIS. Esta situação está longe de se restringir apenas a essa quadra e essa ZEIS.
A quadra 36 dos Campos Elíseos está sendo atingida por um conjunto de intervenções propostas pelo governo estadual e municipal para, segundo eles, “revitalizar” a região conhecida como cracolândia.
Há vários anos são anunciados projetos na região que, mesmo sem sair do papel e avançar na construção do que era previsto (como, por exemplo, o projeto anunciado, pago com dinheiro público e depois abandonado do Complexo de Dança),demoliram quadras inteiras e fecharam estabelecimentos comerciais de grande porte, como o shopping Luz. Ações de destruição como essa tem aumentado os terrenos vazios e abandonados, o que traz como uma de suas consequências a consolidação e aumento da cena de uso aberta de drogas e o chamado fluxo de usuários naquela região. Para além da recorrente violência da “guerra às drogas” e a contínua ameaça e remoção de moradores e comerciantes, nenhum dos projetos de “revitalização” apresentam propostas efetivas para transformar a vida dessas pessoas que circulam e habitam a região em condições precárias.
O projeto mais recente anunciado é a construção, por meio de Parcerias Público Privadas (PPPs), do hospital Pérola Byington na quadra 36 desta ZEIS e, nas quadras vizinhas, quadras 37 e 38 da mesma ZEIS, produção de habitações e outros equipamentos públicos. Até o momento não há garantia nenhuma de que os moradores removidos para dar lugar às PPPs serão acolhidos nessas ou outras habitações a serem construídas na região. No caso da quadra 36, o governo do estado removeu todos(as) os(as) moradores(as) e comerciantes (algumas estavam ali desde os anos 1960 com suas famílias) e demoliu boa parte dos imóveis da região, restando dois: um equipamento público e um casarão tombado que estava na época ocupado por cerca de 70 famílias.
A ACP apresentada pelo MP/SP entende, com razão, que este processo está cheio de irregularidades. Primeiramente, viola os artigos 48 e 52 do Plano Diretor do Município de São Paulo, que determinam a garantia da segurança na posse dos(as) moradores(as) caso a área esteja ocupada, e que, ainda, estabelecem tanto a formação do conselho gestor como a definição de um plano de urbanização pactuado junto a este conselho antes que ocorra qualquer intervenção. Tendo o Estado de São Paulo, portanto, removido ilegalmente os(as) moradores(as), a sua obrigação passa a ser garantir o atendimento habitacional definitivo – e o provisório até que o primeiro seja disponibilizado. Esse deve ser o procedimento para qualquer ZEIS estabelecida segundo a legislação da cidade.
Outro aspecto irregular importante é a violação do direito à moradia adequada das famílias após a remoção. Neste caso, o Estado de São Paulo apresentou como uma alternativa provisória (auxílio-aluguel) com valor insuficiente para pagar um aluguel na região)e, como alternativa definitiva, a carta de crédito, incompatível com o perfil de renda de muitas das famílias e com a sua permanência no centro – dado que o valor da carta de 150 mil reais não permite a aquisição de imóveis com tamanho adequado às famílias na região central (só é possível, e com muita dificuldade, encontrar quitinetes).
Deste modo, ainda hoje, quase 2 anos após as remoções, 42 famílias que ainda estavam recebendo o auxílio-aluguel continuam sem conseguir acessar o atendimento definitivo. Na prática o que aconteceu foi: de um lado, 200 famílias foram retiradas de suas casas, perderam seus comércios, seus vínculos com o lugar e fontes de renda; e, de outro, o poder público gastou quase um milhão de reais [fonte: ACP, MP-SP] para mantê-las afastadas do grande terreno baldio que aquela quadra se tornou visto que as obras só começaram e, num ritmo bem lento, após mais de um ano depois das remoções, em agosto de 2019.
Para agravar a situação das 42 famílias que continuam com atendimento provisório, desde janeiro de 2020 a CDHU cortou o auxílio aluguel sem apresentar nenhum aviso prévio ou explicação. Assim, as famílias sequer tiveram condições de se preparar ou mesmo negociar a situação com seus(suas) respectivos(as) locadores(as) e todas elas estão acumulando dívidas e/ou ameaças de despejo. Uma destas famílias, inclusive, foi despejada na primeira semana de março de 2020 após inúmeras tentativas de negociar com o proprietário e idas à CDHU pedindo explicações e a retomada do pagamento.
Essa última violação foi a gota d’água para o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) entrar com uma Ação Civil Pública (ACP) contra o governo estadual, a CDHU e a Prefeitura Municipal, parceira do governo na PPP e que se responsabilizou, ao longo do processo, por atender definitivamente os moradores removidos da quadra 36 em conjunto com os moradores de mais duas quadras vizinhas, 37 e 38, ameaçadas neste exato momento de ter o mesmo destino: remoção e demolição para integrar outra PPP – nesse caso, da habitação.
Na ACP, além de elencar e denunciar as violações e ilegalidades que se acumulam ao longo do processo, o MP exige o atendimento definitivo das famílias, como prometido pelo poder público, e o imediato retorno de pagamento do auxílio aluguel cortado das famílias removidas da quadra 36. Vale lembrar que, com essa interrupção ilegal, as famílias removidas se encontram ameaçadas de serem despejadas mais uma vez. Essa ACP foi construída com argumentos sólidos e é fruto do acompanhamento realizado pela promotoria ao longo de todo o processo, inclusive ouvindo os atingidos e os governos envolvidos diversas vezes.
Uma audiência será marcada para tratar do assunto, no âmbito do processo judicial. Será essencial a mobilização de todos e todas para garantir que o desfecho seja, desta vez, favorável às famílias.
* Renato é Doutorando na FFLCH-USP, pesquisador do LabCidade;
Felipe é Conselheiro da Quadra 36 e arquiteto e urbanista do Instituto Polis.;
Débora é Doutoranda na FAU-USP, pesquisadora do LabCidade;
Raquel é Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade
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