Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho USP*
Este é um texto de autoria coletiva. Foi escrito de forma colaborativa por um conjunto de pesquisadores reunidos em torno do Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade de São Paulo (USP), e responde, ou busca responder, a uma dupla ordem de inquietações. Uma delas vem pautando nossas discussões há um bom tempo e diz respeito aos nexos entre pesquisa e engajamentos sócio-políticos. Uma questão nada trivial, pois suscita a reflexão sobre os modos de produção e circulação de conhecimento, quer dizer: a construção de um campo epistêmico que afeta o modo como formulamos nossas questões e envolve protocolos e modos de se pensar (e exercitar) as relações entre teoria e empiria, reflexão e prática, autoria e interlocutores/colaboradores. Em 2016 organizamos o seminário temático Epistemopolíticas da Cidade Contemporânea. A questão foi retomada (em debates e seminários) nos anos seguintes, trabalhada em artigos publicados recentemente (GODOI, CAMPOS e MALLART, 2020; MALVASI, SALLA, MALLART e MELO, 2018) e relançada em um programa de leituras e discussões no início deste terrível 2020, já sob o imperativo de se refletir sobre os desafios postos no cenário de devastação social e política em curso desde a guinada à direita nos modos de governo (em 2016) e que agora se radicaliza e é levada ao paroxismo com a obra de destruição promovida sob a égide do capitão-presidente.
E foi então que nos vimos, como todxs, tragados pela pandemia do coronavirus e seus efeitos devastadores. Também como todxs, fomos submergidos sob a avalanche de uma profusão impressionante de informações, de prognósticos sobre os incertos futuros imediatos ou não tão imediatos, de mil análises de cunho diverso, tudo se somando nas imagens e figurações da catástrofe que se constela em nosso presente. Aqui, temos a segunda ordem de inquietações, que retoma e desdobra a anterior, tomando como fio condutor as miríades de iniciativas, formas de articulação e redes de apoio às populações mais afetadas e que vêm se multiplicando país afora. Não se trata, que se diga desde já (voltaremos a isso ao final do texto), de fazer uma celebração edificante (ingênua?) das virtudes da solidariedade popular, muito menos compensar a dureza da catástrofe, mostrando “um outro lado das coisas”. É um modo de perspectivar as questões postas no nosso presente, tentando apreender o campo político, de experimentação e conflito que parece se desenhar nas tramas variadas dessas iniciativas. Defesa da vida e das possibilidades de vida é a questão colocada no coração dessas movimentações, questão que, bem sabemos, não é de hoje, mas que se reconfigura sob a lógica das urgências, cifra dos tempos que correm e que haverá de se prologar para além do presente imediato da doença, das mortes e do luto.
No que segue, há um viés ou um prisma, o atalho pelo qual essas questões serão trabalhadas e que tem a ver com os nossos próprios campos de pesquisa e intervenção — questões urbanas e da moradia, migrações transnacionais, mercados informais e ilegais, violência policial e a questão carcerária.
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São inúmeras, miríades de iniciativas, campanhas e redes de apoio, plataformas de divulgação de informações, de orientações, também de monitoramento do impacto da pandemia nas periferias, nas favelas, nas prisões, nos quilombos, nas populações indígenas. Campanhas de arrecadação de recursos e cestas básicas, de compra e fabricação de equipamentos de prevenção (máscaras, por exemplo), de ações de informação, orientação e assistência imediata às populações locais, tudo isso mobilizando coletivos, grupos de trabalho, frentes e comitês de escopos variados, que se articulam por quebradas, comunidades, favelas, ocupações de moradia, bairros e operam em escalas também variadas — das mais locais e comunitárias até as mais amplas, municipais, nacionais e, em alguns casos, transnacionais.
Essas redes de apoio e iniciativas se ancoram e mobilizam uma trama densa, construída ao longo de décadas, de coletivos e movimentos organizados. A pandemia fez acelerar, precipitar, transformar relações e articulações que já existiam, ancoradas no terreno concreto em que se condensa um acúmulo de experiência social, política e histórica de longa data. E é isso o que possibilita o desenvolvimento e a adaptação de práticas e repertórios, também a produção de novos arranjos e alianças. Iniciativas que se ancoram em coletivos locais, formas de ação e de articulação territorializadas, construídas ao longo dos anos, desdobram-se, no contexto da pandemia, em outras tantas ações e iniciativas. Nos correr desses meses de confinamento compulsório, construíram ou consolidaram e ampliaram formas de conexão e articulação (muitas delas também de longa data), mobilizando advogados e operadores de direito, pesquisadores e centros de pesquisa, jornalistas, médicos e trabalhadores da saúde. E é isso que se constela em torno das plataformas digitais que se multiplicaram nesses meses, algumas delas com informações georreferenciadas, com o objetivo de reunir, organizar e divulgar a profusão de ações que se multiplicam pelo país afora. Essas plataformas têm sido mais do que importantes para amplificar as iniciativas de apoio. E também para acompanhar, trazer a público e denunciar as situações concretas nas quais se constelam os dramas vividos e a tragédia construída e, agora, agudizada pelo descaso dos poderes públicos, pela deterioração e desmonte dos programas sociais e serviços públicos de saúde, também pela virulência das forças policiais e dos dispositivos de controle dos espaços de vida e nos espaços de circulação das populações urbanas.
Nas suas diferentes conformações e modos de atuação, essas plataformas e redes de apoio parecem se configurar como verdadeiros operadores de escala, dando ressonância aos agenciamentos locais e transterritoriais para lidar com os efeitos devastadores da pandemia. E também para contornar os efeitos nefastos da desinformação sistemática promovida pelos poderes públicos.
No noticiário da grande imprensa, é recorrente a celebração da solidariedade e da iniciativa popular para dar amparo e apoio às populações mais afetadas. É isso, mas é muito mais do que isso. Nessa malha de articulações há questões politicamente estratégicas que, no mais das vezes, se diluem ou se ocultam sob sua transcrição nos termos de um suposto (e enganoso, para dizer o mínimo) empreendedorismo social, isso em uma cena pública-midiática pautada pelo ritmo vertiginoso do tempo real dos indicadores da circulação viral e pelas medidas desencontradas para o enfrentamento da pandemia. Pois essa malha de articulações parece constituir (e se constituir em) um campo de batalha que não é de hoje, que haverá de se prolongar pelos anos vindouros, mas que se condensa agora e ganha figurações inéditas sob a lógica das urgências do momento — uma pandemia que ceifa vidas, afeta formas de vida e destitui milhares das condições básicas de trabalho e sobrevivência.
A defesa da vida como campo de batalha, também de invenção política: é a questão que se expõe, de partida, em torno da contabilidade macabra dos contaminados, doentes e mortos. O seu registro técnico-burocrático, em meio às várias circunstâncias que produzem as chamadas subnotificações, nada diz sobre o modo como a pandemia afeta mundos sociais, as interações e a trama de relações sociais, de vivências e experiências. Nos modos de viver, trabalhar e habitar a cidade, nos modos como se vive, adoece e morre estão inscritas desigualdades e discriminações que vêm de longa data e, agora, se constelam de forma ainda mais aguda nas várias situações e contextos de vida e trabalho. Pois são esses mundos sociais que ganham forma e visibilidade nessas miríades de redes de apoio e plataformas digitais construídas nos últimos meses.
Face à desinformação sistemática promovida por governantes e gestores públicos, muitas dessas plataformas mobilizam uma extensa e multifacetada rede de relações, coletivos e organizações locais para fazer o monitoramento dos casos de contaminação, hospitalização e óbito. A partir de diferentes técnicas, metodologias, fontes e saberes práticos, articulando atores e formas variadas de mediação, é toda uma rede que se estrutura, desde as capilaridades locais dos coletivos e profissionais atuantes nos territórios, passando pelo trabalho de sistematização e organização de dados, até a sua publicização nas plataformas digitais. Redes sociotécnicas, mobilizando coletivos de escopo variado, agentes de saúde e comunitários, médicos, assistentes sociais, técnicos e servidores públicos, pesquisadores, jornalistas, especialistas de informática e de tecnologia. São muitas, algumas já consolidadas, outras em desenvolvimento e expansão: dos painéis das favelas cariocas ao levantamento da favela de Heliópolis em São Paulo; do mapeamento da distribuição territorial de contágio até plataformas de acompanhamento da disseminação dos casos nas prisões, nos quilombos ou nas aldeias indígenas.
Na mesma direção, outras tantas redes e plataformas desenvolvem estratégias de monitoramento de denúncias de casos de violência policial e de violações de direitos durante a pandemia. A Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio elaborou um formulário de denúncias anônimas para casos de violações de direitos humanos no estado de São Paulo e outro para violações trabalhistas. Em linha similar, o Observatório dos Direitos Humanos – Salve Sul, uma rede que atua de maneira descentralizada, composta por lideranças comunitárias, coletivos, movimentos e instituições localizadas nas periferias da região sul de São Paulo, em parceria com centros de pesquisa e estudos universitários elaborou uma plataforma colaborativa virtual – que busca monitorar, de forma georreferenciada, violações de direitos cometidas por agentes do Estado, como falta de equipamentos de saúde, dificuldades em acessar o auxílio emergencial, falta de atendimentos, entre outras situações e informações disponíveis. Jornalistas e coletivos de mídia independente, por sua vez, fazem o seu trabalho, dando também mais um lance em uma experiência anterior já consolidada, organizando campanhas para que se registrem imagens de eventos de violência policial.
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É uma constelação plural e heterogênea de técnicas, dispositivos e estratégias coletivas e colaborativas de produção de evidências que, ao se contraporem aos dados oficiais, desnudam mais do que a desinformação promovida pelos poderes públicos, os modos pelos quais a maquinaria estatal produz a invisibilização dos corpos afetados e de seus contextos de vida, seja por procedimentos que provocam o bloqueio no fluxo do movimento dos corpos (vivos e mortos) e seus registros seja pela construção de categorias e protocolos de notificação que fazem “sumir” inúmeras situações de doença e mortes, ou então os vários expedientes pelos quais buscam omitir, ocultar ou manipular seus rastros, fazendo no mesmo passo esvanecer (ou buscando esvanecer) as responsabilidades públicas envolvidas na expansão viral.
Este é o ponto que gostaríamos de enfatizar e discutir: esses coletivos e suas redes de apoio têm se mostrado poderosas agências produtoras de informações, saberes práticos e modos de conhecimento do que acontece nos territórios de vida das populações urbanas. É isso que circula por entre os fios que fazem as capilaridades sócio-urbanas e articulam as atuações “na ponta” a esses fóruns e plataformas digitais, nos quais essas informações são trabalhadas, sistematizadas e trazidas a público. Uma cadeia de práticas, mediações e conexões na produção e circulação da informação. Trata-se de uma “epistemologia colaborativa”, mobilizando pesquisadores, especialistas (e suas várias expertises), coletivos militantes, homens e mulheres em seus contextos de vida, ativando saberes práticos e conhecimentos sobre lugares, práticas e circunstâncias cotidianas afetadas pela pandemia — e pela violência estatal, em suas várias modalidades. Epistemologias colaborativas, talvez melhor dizer — epistemopolíticas que se ancoram na própria vida da cidade e suas redes sociotécnicas, de trocas e interações, também de encontros, conexões, convergências e parcerias — formas sócio-políticas construídas, já de longa data e agora atualizadas sob o regime das urgências do momentoi.
Ao serem consolidadas, sistematizadas e trazidas a público nesses espaços ao mesmo tempo materiais e digitais, essas informações permitem apreender o que se esconde sob as tais subnotificações, para além da contabilidade falha ou falsa ou falaciosa. Contaminações, doenças e óbitos operam como reveladores das políticas de morte exercitadas nas prisões (ARAUJO, CAMPELLO, GODOI e MALLART, 2020; GODOI, MALLART e CAMPELLO, 2020); das práticas de racialização expostas (não apenas) na violência e letalidade policial, que afeta sobretudo jovens negros moradores de periferias e favelas; das desigualdades sociais e territoriais inscritas na precariedade das condições de moradia e de saneamento básico, dos serviços básicos de cuidados e saúde; dos efeitos deletérios do desmonte dos serviços públicos de saúde (ARAUJO, MALLART e GAUDENZI, 30/06/2020); dos dispositivos de invisibilização de maiorias que, por conta de nebulosos critérios de credenciamento, não contam e não são contabilizados nos procedimentos de acesso aos recursos emergenciais do Estado, ou então porque seus modos de existência não se ajustam às formas normalizadas da vida social (e seus códigos e registros oficiais)ii. Também: a violência como forma de governo de populações “indesejáveis” e seus territórios. A paralisação/interrupção e bloqueios dos circuitos do trabalho e da vida urbana parece ter dado a senha para um acirramento, também vertiginoso, da violência policial, acompanhando formas de controle dos espaços urbanos, seus usos e modos de circulação. Em São Paulo (e, podemos supor, também em outras cidades), as remoções violentas de ocupações no centro e nas periferias urbanas vêm se multiplicando, tanto quanto expulsões e a truculência policial contra populações em situação de rua, na assim chamada Cracolândia, também contra os ambulantes que arriscam manter suas atividades nas ruas da cidade, afetando de modo ainda mais cruel migrantes transnacionais, muitos deles em situação irregular e desprovidos de redes mais sólidas de apoio e proteção.
Na contraposição entre dados oficiais e o Painel Covid-19 nas favelas do Rio de Janeiroou o Covid nas Prisões,por exemplo, há muito mais do que o contraste entre dados falhos ou falsos e outros mais confiáveis. Tampouco se trata de uma disputa de narrativas acerca da gravidade da pandemia. Trata-se, a rigor, de uma disputa cognitiva. Essas informações têm um outro estatuto, diferente dos registros oficiais; não é apenas e tão somente uma contabilidade. Ou melhor: se há uma contabilidade de contaminados, doentes e mortos, isso é algo que se inscreve na trama dos territórios de vida — e esse é um terreno de experiência e experimentações, também um campo de conflito e disputa. Ademais, nas informações produzidas pelos dispositivos práticos dessa epistemologia cooperativa, são outras as fontes mobilizadas, outros protocolos, outros procedimentos, outras mediações, fazendo a composição variada entre observação e acompanhamento diário dos lugares e territórios afetados, depoimentos e testemunhos, registros digitais, cruzamento de planilhas e prontuários e mais outros tantos procedimentos exercitados por redes sociotécnicas sob modalidades variadas.
É toda uma cartografia cognitiva que aí vai se desenhando e na qual as informações construídas operam, no mesmo passo, como produção das evidência de como as agências estatais funcionam por meio do descaso sistemático dos cuidados e da assistência básica, do desmonte dos serviços públicos de saúde, da obstrução de acesso aos recursos públicos, do uso da violência como modo de governo das “populações indesejáveis” e de seus territórios; e também dos modos operatórios pelos quais a maquinaria estatal produz a ocultação dos corpos contaminados, dos corpos doentes, dos corpos mortos. Também a ocultação das marcas — evidências — da violência que se abate sobre corpos negros e periféricos, sobre populações removidas, sobre populações despejadas, sobre populações expulsas de seus territórios de vida, quando não expropriadas de seus meios de vidaiii.
Uma cartografia cognitiva que faz ver a dupla face da violência do Estado. A violência do Estado recai sobre as pessoas, afetando seus mundos sociais, o entorno urbano, redes e artefatos dos quais dependem a vida e as formas de vida. Mas a violência do Estado também opera pela negação/recusa/ocultação/distorção das evidências tangíveis dessa violência e violação de direitos básicos. Essa negação não é apenas retórico-discursiva. Trata-se de práticas e procedimentos que mobilizam a maquinaria estatal para bloquear o acesso e a divulgação de informações, para produzir “evidência negativas”, para fabricar registros que ocultam mortes, execuções sumárias e violações de direitos básicosiv. Conhecemos isso e poderíamos multiplicar exemplos. Muitas páginas poderiam ser (e já foram) escritas para mostrar os modos operatórios pelos quais esse trabalho de ocultação se processa em torno de eventos violentos nas periferias urbanas, nas favelas, nas ruas da cidade, nas prisões, e mais… muito mais. E outras muitas páginas poderiam ser escritas em torno dos modos como a maquinaria estatal busca ocultar, quando não manipular, registros e evidência dos corpos contaminados, dos corpos doentes, dos corpos mortos. Basta acompanhar o que vem sendo produzido por essa epistemologia cooperativa exercitada pelas plataformas e redes de apoio mobilizadas no atual contexto pandêmico.
Mas então isso também significa dizer que a construção das evidência da violência estatal, em suas várias modalidades, é também a construção de um campo epistêmico-político que opera como crítica prática e politicamente situada de como a máquina estatal opera, mostrando no mesmo passo a falácia contida no modo como os registros oficiais são fabricados, de como as marcas dessa violência são ocultadas, negadas, distorcidas e, no limite, apagadas. Evidências e informações tornadas públicas nos vários fóruns — materiais e digitais — em que são debatidas e mobilizadas como provas da violência do Estado em campanhas de denúncia e agendas de demandas e reivindicações em negociações conflituosas com os poderes públicos.
Importante dizer: isso tampouco é de agora — essa epistemopolítica cooperativa vem sendo exercitada há tempos por meio das várias formas de parcerias e colaboração entre coletivos e movimentos organizados, centros de pesquisa, advogados e defensores públicos, jornalistas e operadores de serviços sociais de escopo variado. Mais recentemente, no Rio de Janeiro, em torno da questão das operações policiais, formou-se uma das experiências mais evidentes dessa epistemologia colaborativa, articulando movimentos de favelas e de familiares de vítimas de violência do Estado, ONGs de atuação social e jurídica, ativistas da produção de dados, órgãos estatais como a Defensoria Pública e pesquisadores de universidades fluminenses. Baseada em dados não oficiais, a produção da rastreabilidade da letalidade policial nas favelas cariocas foi feita a partir de testemunhos e evidências materiais, demonstrando a escala do aumento da letalidade policial nos últimos anos, tornada exponencial desde a intervenção federal em 2018 e no início de 2019 (governo Witzel), levada ao paroxismo em plena pandemia (GRILLO e HIRATA, 30/01/2020). Disso resultou um relatório (GRILLO, HIRATA e DIRK, 2020), com dados oficiais e alternativos, amplamente divulgado nas redes e plataformas digitais e que foi usado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro para uma solicitação de medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de nº 635 — a ADPF 635 ou ADPF das Favelas — dirigida ao Supremo Tribunal Federal (STF). Entre outras demandas/exigências, está a suspensão das operações policiais nas favelas cariocas durante a pandemia. Pela primeira vez, movimentos de favela e de familiares de vítimas da ação policial sustentaram sua própria arguição oral no STF. As operações policiais foram suspensas — ao menos temporariamente.
É toda uma cartografia sócio-urbana e política que vai se desenhando nessas movimentações e articulações — figurações do conflito urbano em tempos de pandemia e suas urgências. Talvez seja melhor dizer: toda uma vasta e já longa agenda do conflito urbano que parece agora se condensar e se redefinir sob o regime das urgências que, também sabemos, haverá de se prolongar pelos meses (anos?) vindouros.
Tomemos por exemplo situações que acompanhamos de perto em São Paulo: desde o início do confinamento, as remoções forçadas se multiplicaram em ritmo aceleradov. Um caso, entre outros: em 16 de junho cumpriu-se uma decisão judicial de reintegração de posse no bairro Roseira 2, no distrito de Guaianases, na Zona Leste de São Paulo. Com forte aparato policial, cerca de 900 famílias foram removidas. A decisão foi dada em caráter de urgência, em um plantão judicial, sem que as famílias tivessem tempo para organizar sua defesa e sem garantia, sequer a promessa, de alguma solução para o seu alojamento. Era uma ocupação recente, realizada em abril. Nos termos da decisão judicial, esta era a justificativa: os ocupantes se aproveitaram da “balbúrdia implantada pela pandemia” para ocupar o local. Alegação da Prefeitura: apesar de se tratar de área particular, o terreno estaria destinado à construção de unidades habitacionais vinculadas ao programa Minha Casa Minha Vida. Quer dizer, a justificativa era tirar casas para construir casas — se é que serão construídas. Um outro caso: um pedido de urgência — “mesmo diante da pandemia” — da Prefeitura para a remoção da população de dois quarteirões do centro do São Paulo (projeto de desapropriação da área), no bairro do Campos Elíseos, na região conhecida como Cracolândia. Justificativa: a aglomeração das pessoas nessas duas quadras constitui risco de “contaminação em massa”. Ou seja, para as pessoas não se contaminarem, que sejam retiradas da proteção de suas casas! As remoções vêm se multiplicando em ritmo acelerado, ao mesmo tempo que já há registros de novas ocupações realizadas por moradores despejados sumariamente pelo não pagamento de aluguel — perderam seus empregos na pandemia, perderam suas casas e estão sob a ameaça de remoção nos assentamentos precários em que se instalaram.
Esses e outros casos vêm sendo acompanhados pelo Observatório das Remoções e pelo Fórum Aberto Mundaréu da Luz, que reúne coletivos diversos, movimentos de moradia, centros de pesquisa, grupos de teatro, núcleos da Defensoria Pública, moradores da região central da cidade. Em sinergia com outros tantos coletivos e grupos atuantes já de longa data nesses campos de intervenção, ao lado de movimentos sociais diversos e redes ampliadas de apoio, essas e outras situações têm sido matéria de denúncia em inúmeros fóruns — materiais e digitais, nacionais e internacionais —, dando ressonância a reivindicações e campanhas pela suspensão dos despejos e das remoções durante a pandemia. É o caso da campanha articulada nacionalmente Despejo Zero em Defesa da Vida, no Campo e na Cidade.
Durante a pandemia, o campo de atuação e resistência social, política e cultural é também mediado pelos movimentos migratórios. Em diálogo com as lutas sociais e antirracistas travadas mundo afora, redes de solidariedade protagonizadas por migrantes transnacionais e brasileiros se desdobram, nesse contexto, em três principais ações: mobilização pela regularização migratória e enfrentamento da política de indocumentação (a exemplo da campanha #RegularizaçãoJá e das iniciativas para pressionar o Estado a garantir o acesso de migrantes ao benefício emergencial); combate à invisibilidade (a exemplo da campanha pela inclusão da nacionalidade nos formulários da Covid-19); e enfrentamento à violência racista e xenofóbica (a exemplo da #CampanhaSomosJoãoManuel).
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Sabemos, não haverá volta à normalidade. Ou melhor: a normalidade é o cenário de devastação social em curso nos últimos anos sob a lógica da “economia política da barbárie” (MENEGAT, 2019), cujo script está sendo seguido à risca sob a égide do capitão-presidente. Nessa espécie de suspensão dos ritmos rotineiros da vida social sob o regime de uma quarentena sem fim, há uma aceleração vertiginosa dos tempos. Aceleração do trabalho de destruição, fazendo ver a barbárie intrínseca a essa versão extremada de um ultraliberalismo — na formulação precisa de Renato Lessa (07/2020), o programa de uma sociedade inteiramente liberada de todos controles públicos, mediações institucionais e regulações normativas, transformada em uma grande arena de negócios e fronteiras de mercados —, o reino dos “indivíduos livres”, livres porém com um fuzil na mãovi, figura que traduz várias camadas de sedimentação de uma longa história de “acumulação primitiva de poder e desigualdade”.
Mas também aceleração da invenção e experimentações políticas trabalhadas nesse campo de batalha em defesa da vida e das possibilidades da vida. A pandemia acionou miríades de redes e coletivos já existentes e em torno desses, outras conexões e outras mediações — transversais e extraterritoriais. Na batalha pela vida e pelas possibilidades de vida há todo um mundo de relações, de conexões, de cumplicidades e solidariedades práticas que transbordam amplamente fronteiras territoriais ou identitáriasvii.
É um campo político, também um campo em disputa. Empresas e fundações privadas também estão presentes, também para elas a pandemia funciona como uma espécie de abre-alas para expandir presença e influência sob a cobertura do dito empreendedorismo e da assim chamada filantropia empresarial. E há também uma zona cinzenta na qual recursos e formas de apoio circulam por entre as nebulosas relações tecidas por operadores dos negócios e mercados ilícitos nas periferias e favelasviii.
Em meio às suas fricções e ambivalências internas, e também incertezas, é um campo político que se configura sob o regime das urgências. Mas que, talvez por isso mesmo, sinaliza esboços de formas sociais e políticas à altura dos tempos das urgências — urgências da vida — em que estamos mergulhados e que a pandemia apenas e muito dolorosamente levou a seus paroxismos. Daí que essas experimentações e formas políticas em construção têm um sentido que não se esgota no presente imediato da doença, das mortes e do luto.
A pandemia e a disputa cognitiva inscrita nessas iniciativas operam como reveladores do que está em jogo — e em risco — nos “terrenos de vida”: trama de relações e interações socioafetivas ancoradas na materialidade das redes e conexões das quais dependem as condições da vida e as formas de vida: moradia e as redes ampliadas que constroem os sentidos práticos do “habitar” (MOTTA, 2019); redes viárias, de água e saneamento, transporte, serviços de saúde e cuidados, também clima, vegetação e tudo o que compõe o entorno e suas conexões com os circuitos da vida urbanaix. Um mundo de conexões e relações e interações ancoradas nas materialidades da vida urbana e que vão além, muito além, do “trabalho-e-família” e de um sentido estreito (e falacioso) de “sobrevivência”. É sobre isso e em torno disso que as miríades de coletivos e iniciativas vêm se articulando, construindo e inventando formas de defesa de possibilidades de vida e formas de vida. E é sobre isso e em torno disso que as miríades de coletivos e iniciativas reconfiguram e redefinem agendas e formas de uma conflitualidade já em curso e que haverá de se desdobrar nos anos vindouros.
Como nos sugere Anna Tsing (2015), é preciso perscrutar os mundos sociais (teia de relações, de conexões, de vinculações) construídos sob a condição da precariedade, quer dizer: invenções, experimentações e agenciamentos em torno das urgências da vida em um cenário destituído de estabilidade e garantias e no qual a malha social e suas referências cognitivas e normativas vêm sendo esgarçadas. Não se trata de cair no clichê do “vamos ver o outro lado das coisas” e fazer a celebração edificante da iniciativa popular. Trata-se, isso sim, de levar a sério — e disso tirar consequências — que essa é uma situação que já se constela em nosso presente e que vai se prolongar. Se é preciso saber como se dão esses agenciamentos práticos é porque é partir deles — um certo modo de perspectivar o mundo — que será possível reativar a experiência do pensamento e exercitar a imaginação política.
Em vez do catastrofismo paralisante com suas “alternativas infernais”, como diz Isabelle Stengers (2013), staying with de trouble propõe Donna Haraway (2016), e que podemos entender como uma convocação a lidar com a contingência das relações e dos mundos, perscrutando e acompanhando e se engajando nas composições, laços, alianças e conexões que se fazem no/em torno dos problemas e das “emergências” da vida. Como ela diz, é uma forma de tomar posição no mundo e um certo modo de perspectivar os desafios postos a todos nós — também nós, amigos-pesquisadores engajados nas modalidades de produção situada de conhecimento. Pois este é um campo político que é também, como sugere Haraway, um campo epistemológico que supõe (e exige) a produção de formas engajadas de conhecimento. É isso que nos parece inscrito nas epistemologias colaborativas — epistemopolíticas — em operação já há um bom tempo e que têm mostrado toda sua potência e todo o seu sentido político nestes tempos de pandemia.
Dissemos linhas atrás que não se trata de cair no clichê do “vamos ver o outro lado das coisas”. A rigor, não existe um “outro lado das coisas”. É um modo de perspectivar as questões postas no mundo e que permite apreender — e disso também tirar consequências — que este é um campo de batalha, de conflito — é o campo em que a guerra social opera. Essas experimentações políticas se fazem no terreno em que o “homo bolsonarus” (LESSA, 07/2020) faz seu trabalho de cupim, erodindo as tramas da sociabilidade no mesmo passo em que a lógica policial-miliciana avança e se fortalece nas práticas de controle de territórios e extermínio das populações “indesejáveis” (FELTRAN, 2020). A vida como campo de batalha, isso está longe de ser uma formulação retórica. São as vidas e formas de vida que estão em risco. Essas experimentações políticas se fazem justamente nesse terreno em que os riscos de morte e destruição compõem o cotidiano vivido das maiorias e estão no epicentro do cenário político atual, no Brasil e mundo afora.
*Sob coordenação de Vera Telles, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), participaram da elaboração deste texto, a partir discussões desenvolvidas nos últimos meses: Ana Lidia Aguiar, Bruna Bumachar, Bruna Ramachiotti, Daniel Perseguim, Diego Araujo Junior, Juliana Machado Brito, Karina Quintanilha, Larissa Lacerda, Leandro Fernandes Sampaio, Phirtia Rodrigues, Renato Abramowicz, Roberta Canheo, Tiago Cortez. Contamos ainda com a colaboração de Benedito Roberto Barbosa (o Dito), advogado, membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, militante e sempre presente nos conflitos urbanos na cidade de São Paulo.
NOTAS
i Epistemologia colaborativa é termo cunhado por Eyal Weizmam. Neste texto nos apropriamos abertamente da noção e de questões trabalhadas na “arquitetura forense” exercitada por ele e sua equipe (WEIZMAN, 2017, 2018).
ii Entre outros, é a situação das populações em situação de rua, parcelas mais precarizadas dos trabalhadores informais, populações circulantes, também os migrantes transnacionais.
iii É a situação de trabalhadores ambulantes, muitos deles tendo suas mercadorias apreendidas sob formas violentas, sem respeitar nem mesmo os protocolos estabelecidos pela Prefeitura para esses casos.
iv Esta é questão que está no fulcro da “arquitetura forense” proposta por Eyal Weizam (2017).
v Segundo dados levantados pelo Observatório de Remoções, desde o início da quarentena em São Paulo, em março de 2020, mais de duas mil famílias estão ameaçadas ou foram removidas de suas casas em todo o estado — número certamente subdimensionado. Para mais informações, ver (on-line): https://www.labcidade.fau.usp.br/remocoes-aumentam-durante-a-pandemia-despejozero/
viEste foi o contundente “adendo” de Luiz Eduardo Soares à exposição de Renato Lessa em seu programa no YouTube. Disponível (on-line) em: https://www.youtube.com/watch?v=VGh2K7GcOgA
vii Em outro momento será importante refletir sobre o lugar e o papel central das instituições públicas nessa malha de articulações e nessa epistemologia colaborativa: universidades, instituições e centros de pesquisa, trabalhadores da saúde e os programas de saúde em família, do Sistema Único de Saúde (SUS), escolas e professores da rede pública, defensores públicos e outros. Agradecemos a Carolina Grillo por este alerta mais do que valioso e que não foi possível incorporar no corpo deste texto.
viii Eis uma agenda de pesquisa a ser trabalhada. As fricções e ambivalências dessas redes de apoio é questão também discutida por nosso coletivo de pesquisa e que deverá ser tratada em outro texto, já em andamento.
ix Bruno Latour formula a questão e noção de “terrenos da vida”, sobre a qual será importante refletir e trabalhar em outro texto (LATOUR, 2017; LATOUR e SCHULTZ, 2019).
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Fabio; CAMPELLO, Ricardo; GODOI, Rafael; MALLART, Fabio. “O massacre do coronavírus”. Boletim n. 24 – Ciências sociais e coronavírus, Anpocs, 2020. Disponível (on-line) em: https://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2338-boletim-n-24-o-massacre-do-coronavirus
ARAUJO, Fabio; MALLART, Fabio; GAUDENZI, Paula. “Contextualizar o desmonte é essencial”. Le Monde Diplomatique Brasil, Acervo Online, 30 de junho de 2020. Disponível (on-line) em: https://diplomatique.org.br/contextualizar-o-desmonte-e-essencial/
GODOI, Rafael; MALLART, Fabio; CAMPELLO, Ricardo. “O colapso é o ponto de partida”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Reflexões na Pandemia (seção excepcional), 2020. Disponível (on-line) em: https://www.reflexpandemia.org/texto-21
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HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham/Londres: Duke University Press, 2016.
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