Marina Kohler Harkot morreu atropelada na madrugada de sábado para domingo (8/11), por volta de meia-noite. Ela andava em sua bicicleta na avenida Paulo VI, na região do Sumaré, zona Oeste de São Paulo, quando foi brutalmente atropelada por um carro dirigido por José Maria da Costa Júnior, que não parou para prestar socorro. Marina era socióloga formada pela USP, mestra e doutoranda em Planejamento Urbano na FAU USP, e pesquisadora do LabCidade. Tinha 28 anos. Nesse post, originalmente publicado como uma newsletter especial do LabCidade, queremos falar um pouco sobre seu legado nas pesquisas de mobilidade, gênero e interseccionalidade a partir dos diversos trabalhos que ela vinha fazendo como ativista e pesquisadora.
Quase 14 mil ciclistas morreram no trânsito brasileiro na última década, 60% dessas mortes por atropelamento — dados do SUS levantados pela Associação Brasileira de Medicina de Tráfego. Já na cidade de São Paulo, só de janeiro a setembro deste ano, 24 ciclistas morreram atropelados por carros. Apesar de serem comumente jogadas na conta dos “acidentes de trânsito”, todas essas mortes não têm nada de acidentais, e tampouco são só uma questão individual ou privada. Elas não estão descoladas das políticas públicas.
A responsabilidade pelo atropelamento nunca será somente do motorista que materializou a interrupção de uma vida: a cidade e o trânsito que matam são uma escolha política, e Marina Harkot sabia disso muito bem — era contra uma lógica de justiça baseada no punitivismo, tão reducionista e despolitizada que encobre as causas do que diz combater. Para tornar a cidade segura é preciso abandonar a aceleração insaciável: estudos citados em relatório de 2018 da OMS apontam que a cada 1% de aumento na velocidade permitida para a circulação de carros, o risco de ocorrerem acidentes fatais sobe em 4%, enquanto uma redução de 5% na média de velocidade pode diminuir o número de mortes em 30%. A política do Acelera SP de João Doria, por exemplo, foi responsável por reverter a queda no número de mortes no trânsito que a gestão Haddad havia conseguido alcançar diminuindo limites de velocidade. Para além do carro e de seu condutor, foi uma escolha política (carrocêntrica e hostil a pedestres, bicicletas e mulheres), uma escolha política que Marina viveu para combater e que a matou. Matou Marina, que queria nossas cidades feitas para nós — espaços construídos para as pessoas, e não para os carros.
Marina sabia que a cidade não é igual para todas as pessoas, por isso defendia a educação como instrumento de superação das relações de opressão estruturais (de classe, patriarcais, racistas, de gênero e sexualidade, patrimonialistas) que estruturaram também nossas cidades. A pesquisadora defendia um olhar sensível às desigualdades sócio-urbanas. Ela nos ensina que a cidade precisa se tornar um espaço compartilhado entre diversos grupos sociais, gêneros, e modais de transporte. Por isso, não se trata de construir ciclovias: elas são importantes, mas a questão de base é a urgência (vital) de se criar uma cultura de compartilhamento da cidade.
A São Paulo carrocêntrica, a São Paulo que segrega poucos ciclistas às suas escassas faixas e os mata, é uma escolha. Nossas cidades não deveriam ser lugar onde se morre debaixo de 4 pneus cantando em alta velocidade. Marina vivia o que pesquisava, pedalava porque sabia que lugar de bicicleta é na rua, e que todo mundo tem direito a pedalar. Sua morte, que aconteceu justamente no Dia Mundial do Urbanismo, deve se tornar movimento e nos incendiar na luta por cidades mais gentis, mais humanas, menos aceleradas e não violentas.
Recomendamos aqui alguns textos sobre Marina, seu trabalho e sua morte. São eles:
- Sorridente e brilhante, Marina Harkot foi vítima dos problemas que denunciava, perfil de Marina publicado no jornal Estadão, com entrevista das coordenadoras do LabCidade Paula Freire Santoro e Raquel Rolnik.
- “A Marina estava onde devia estar, na rua e no caminho escolhido por ela.” Paula Freire Santoro, que também foi orientadora e amiga de Marina, faz uma bela homenagem a ela no programa Meia Hora com o BrCidades.
- No 30º episódio do programa A Cidade é Nossa, Raquel Rolnik lembra o Dia Mundial do Urbanismo e todo o contexto político por trás da morte de Marina e de milhares de outros ciclistas (disponível em formato de vídeo e podcast).
- Leticia Lindenberg Lemos, (assim como Marina) ex-pesquisadora do LabCidade e membra da Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade), amiga de Marina, escreve para o LabCidade o texto Pedale como Marina! Andar de bicicleta é uma decisão política, e é entrevistada pela revista Marie Claire na matéria Por que falar do legado de Marina Harkot é tão urgente quanto falar de sua morte.
- Por uma cidade onde mulheres sempre possam pedalar, artigo de Cecília Garcia no Pensar a Cidade (UOL), fala da relação de Marina com o cicloativismo, a importância desse cicloativismo para a vida das mulheres na cidade, e da dissertação de mestrado de Marina.
- “Ela foi atropelada por trás”, diz urbanista da USP, matéria do jornal Época, com entrevista de Paula Freire Santoro.
A experiência de viver a cidade das mulheres
Já no mestrado em 2016, com bolsa Capes, Marina sistematizou quase tudo o que já tinha sido publicado sobre gênero e mobilidade ativa por bicicleta num capítulo de sua dissertação. Ela conclui que as mulheres têm menor mobilidade (são mais imóveis), especialmente se olhamos para os modos motorizados individuais — carro e moto. São passageiras de automóvel ou usuárias de táxi. Têm viagens mais curtas em tempo e em distância e viajam mais a pé e de transporte público. Desde 1987, há uma proporção de viagens femininas maior nos deslocamentos a pé e uma supremacia masculina nas viagens com bicicleta, com uma tendência de aumento do número de mulheres a andar sobre as duas rodas. Traz autoras como Haydée Svab, que mostrou que a categoria “mulheres” não é homogênea e que os padrões de mobilidade são impactados por outras questões além do gênero, como modo de viagem, situação familiar, grau de instrução, faixa de renda familiar, quantidade e idade dos filhos das mulheres. Não estávamos sozinhas.
Um primeiro “filhote” deste mestrado foi trabalhado num texto acadêmico, desenvolvido a convite dos organizadores de um dossiê especial Revista Transporte y Território, que pergunta: Mulheres, por que não pedalam? Outros artigos “filhotes” de sua dissertação mergulham sobre como as mulheres usam a cidade e como a cidade foi conquistada pelas mulheres.
A partir de entrevistas qualitativas, sua pesquisa de mestrado apontou as subjetividades que impactam no uso da bicicleta como modo – que envolvem uma relação com a cidade e suas adversidades, sensação de segurança, seu cotidiano, ser mãe e número de filhos, hábitos, dimensões afetivas, culturais, prática de esportes e relação com o corpo.
Sua pesquisa revela que, para as mulheres, é muito mais complexo dar o passo inicial para usar a bicicleta. Sua dimensão corporal, da prática de atividades físicas, ou ainda, das brincadeiras de rua e do “se arriscar”, não são incentivadas (pelo contrário, são desincentivadas) desde a infância, algo diretamente ligado à socialização feminina e à domesticidade.
A baixa presença de mulheres que pedalam e a ausência de grupos e/ou políticas públicas que as incentivem diretamente, seja através de campanhas de comunicação, seja através de redes de solidariedade, também é uma questão que parece ter influência. Como apontam as discussões sobre representatividade, o poder do exemplo não é desprezível, e os efeitos de “se reconhecer” em meio aos ciclistas são importantes.
Ainda, como São Paulo definitivamente não é uma cidade amigável para o uso da bicicleta, romper a barreira do gênero parece ser um desafio que complexifica ainda mais para que mulheres pedalem. Ciclistas de ambos gêneros percebem o trânsito como sendo perigoso e como o principal ponto negativo no uso da bicicleta na cidade – especialmente se estão acompanhados de crianças, o que é mais comum entre as mulheres, geralmente as cuidadoras nos arranjos familiares. Entretanto, as ciclistas entrevistadas apontam sentir um tipo de medo que está muito mais relacionado à violência de gênero do que à violência de trânsito, e que não é considerado no desenho de políticas de ciclomobilidade: como o medo de passar por determinados locais e em horários específicos (normalmente, à noite). A dissertação de Marina Harkot está disponível na íntegra aqui.
Por que é preciso pautar a política, o ativismo, a construção coletiva
Seu mestrado também revisita políticas que podem ser implantadas e que vão na direção da normalização e popularização do uso da bicicleta, recorrendo a estratégias que ultrapassam o desenho e implantação de ciclovias e ciclofaixas – importantíssimas, especialmente, para promover uma mudança de imaginário coletiva sobre o espaço dos ciclistas na cidade, mas que definitivamente não são a única solução.
O real incentivo à intermodalidade apontado por ela envolve a instalação de bicicletários que tenham horários de funcionamento e capacidade adequada em estações e equipamentos públicos; zonas de tráfego acalmado intra-bairro; infraestrutura cicloviária que considere em seu desenho dimensões de segurança pública, escolhendo rotas que passem por ruas iluminadas, com atividade comercial que funcione no período noturno e sem pontos cegos; políticas de educação e comunicação, com incentivo ao uso da bicicleta desde a infância e campanhas de comunicação que tenham como público-alvo as mulheres – e não o intrépido ciclista com roupas esportivas, ou o executivo de terno que vai de bicicleta até o trabalho. Marina abre um horizonte de possibilidades para incentivar o uso da bicicleta em grandes cidades e, sobretudo, entre grupos sub representados como as mulheres. Se quisermos mudar este cenário, há de se pensar para além de soluções simplistas.
O acompanhamento da política urbana e de mobilidade permeou vários de seus textos, que criticavam a proposta de Plano Cicloviário de São Paulo, o compartilhamento de bicicletas amarelas restrito a uma área da cidade, ou mesmo análises sobre os primeiros resultados da Pesquisa Origem e Destino de 2017 .
Seus trabalhos sobre mobilidade e enfoque em gênero não se restringiram à mobilidade por bicicleta, mas também à pé, vide artigo com Mateus Humberto Andrade e Mariana Gianotti, que sintetizamos neste post em nosso site e que terminou nos aproximando do Victor Andrade e Clarisse Cunha Linke, organizadores do livro e do LabMob do Rio de Janeiro. Victor segue um interlocutor do LabCidade, foi banca no mestrado em Planejamento Urbano e Regional na FAU-USP de Marina.
A incorporação de uma abordagem interseccional em pesquisa internacional Segurança na Mobilidade dos estudantes com enfoque em gênero
Em 2018, Paula Santoro, Marina Harkot e Letícia Lemos coordenaram a aplicação da pesquisa sobre a segurança na mobilidade dos estudantes com enfoque em gênero, aplicada para a Região Metropolitana de São Paulo. Para saber sobre a pesquisa, um resumo do caso de São Paulo está em Santoro & Harkot (2020), um artigo em inglês apresentado no Seminário Crime and Fear in Public Spaces em 2018, e este texto em nosso site sobre o processo de feitura da pesquisa. Uma versão em espanhol está aprovada para uma publicação de artigos selecionados apresentados no Tercer Congreso Internacional sobre Género y Espacio na UNAM, no México, onde Marina apresentou o trabalho.
A nova pesquisa deu continuidade ao que sinalizava sua investigação de mestrado. Mostrou que, se a violência patrimonial é a que atinge tanto homens quanto mulheres, a violência de gênero restringe a mobilidade das mulheres e a sua liberdade, exigindo escolhas: evitar certos pontos de ônibus/linhas, não utilizar o transporte em certos horários, pensar na roupa a vestir e, até mesmo, onde se sentar dentro do ônibus.
Gênero não foi a única variável identificada que influencia na ocorrência e na frequência da violência vivenciada, mas também a localização da instituição e a cor/raça autodeclarada. Mulheres negras, pardas e indígenas que frequentam instituições consideradas “periféricas” são mais vítimas de crime de assédio sexual: 81,3% delas foram vítimas, enquanto entre as brancas das mesmas instituições foram 55,6%.
E aí já tínhamos caminhado para procurar como incorporar abordagens interseccionais nos estudos urbanos. Um primeiro resultado é que fomos convidadas (Paula e Marina) para escrever um capítulo de um livro que cruzava informações obtidas em vários países da pesquisa, com abordagem interseccional. O resultado foi este capítulo, em inglês, do livro Transit Crime and Sexual Violence in Cities, organizado pelas professoras Vânia Ceccato (KTH Estocolmo, Suécia) e Anastasia Loukaitou-Sideris (UCLA Los Angeles, EUA), publicado neste ano de 2020.
A agenda de pesquisa trazida pelo Seminário Cidade, Gênero e Interseccionalidades
Em janeiro de 2019 organizamos o Seminário Cidade, Gênero e Interseccionalidades no Centro de Pesquisa e Formação do SESC, trazendo referências acadêmicas para esta linha de estudos do LabCidade (veja todos os posts relacionados ao assunto). Nele foi apresentada uma agenda de pesquisa nestes temas, organizada em várias mesas com convidadas. O material virou um conjunto de podcasts que deu um grande trabalho de edição, feito pela Marina Harkot e Larissa Lacerda.
Marina coordenou mesa, mas também apresentou pesquisas em torno do seu tema de mestrado, que podem ser ouvidos, na voz dela mesma, aqui.
Inicialmente mergulhamos no conceito de gênero, nos textos clássicos, e encontramos novas autoras. Paula Soto Villagrán, professora no México convidada para o Seminário do SESC, nos trouxe a ideia da experiência da mobilidade. Marina desenvolve esta ideia teórica dizendo que os espaços podem ter significados específicos para quem vive a experiência de se mover, a partir da cultura, conhecimento do trajeto, experiência prévia, constância da utilização de um determinado modo e conhecimento da operação do modo. Quando se estuda a mobilidade com abordagem de gênero ou interseccional, a sensação de segurança e a experiência de ter sofrido violências e opressões pode ser determinante na escolha de onde ir, com qual modal, a que horas, moldando o comportamento dos corpos que sofrem estas opressões.
Depois do SESC ministramos cursos curtos em outros lugares; Marina deu cursos na Escola da Cidade, em São Paulo, e aulas em um curso chamado “Vem por Aqui“, do escritório Bloco B, de Florianópolis.
Disciplina compartilhada na graduação da FAUUSP
No segundo semestre de 2019, ressoando o seminário do início do ano, organizamos e oferecemos a disciplina “Cidade, gênero e interseccionalidades: conceitos, teorias e práticas” no curso de ghttps://www.labcidade.fau.usp.br/marina-harkot-vive/raduação em Arquitetura e Urbanismo, da FAU USP. Foi um curso concebido e organizado de forma coletiva, encabeçado pela professora Paula Santoro, junto à Marina Harkot, Larissa Lacerda, Gabriela Tamari, Artur de Souza Duarte e Isabela Leite. O curso teve como objetivo subsidiar uma reflexão crítica acerca de formas de planejamento, introduzindo conceitos, teorias, políticas e práticas no campo do planejamento urbano que incorporam gênero, entre outros marcadores sociais da diferença, como categoria de análise do território e base para a atividade planejadora. As discussões se basearam nas leituras de textos acadêmicos, podcasts, vídeos e trocas de experiências, em uma experimentação epistemológica e política que nosso grupo vem ensaiando – em muito, estimuladas pela Marina.
Com o objetivo de apresentar e discutir os múltiplos temas e abordagens possíveis no interior do grande campo dos estudos de gênero, convidamos pesquisadoras de diferentes áreas e lugares, enriquecendo ainda mais os debates em sala. Assim, dividimos a sala de aula com Jacqueline Moraes Teixeira, professora da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora do NAU e do NUMAS, da USP, e do CEBRAP; Gabriela Leandro Pereira, a Gaia, professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA e pesquisadora do Lugar Comum, no qual coordena o Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território; Ana Castro, professora da FAU USP e pesquisadora do Outros — laboratório para outros urbanismos — e do Grupo de Pesquisa Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina; Ana Barone, também professora da FAU USP e pesquisadora do LabRaça; Beatriz Sanchez, doutorando em Ciência Política na USP e pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política da USP e do CEBRAP; Poliana Monteiro, doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na UFF e pesquisadora do GPDU UFF; Luciana Itikawa, professora da FMU/FIAM e pesquisadora da WIEGO (Women in Informal Employment Globalizing and Organizing) e, por fim, Fernanda Furlan de Souza e Mariana Duran Meletti, graduandas da POLI USP.
Além das aulas regulares, também organizamos aulas abertas, com o objetivo de ampliar as discussões da sala de aula para um público mais amplo.
“Feminismos, luta e representação política” abordou a multiplicidade das mulheres e dos feminismos, convidando Carol Ricca Lee, da Plataforma Lótus; Isabela Sena, da Bibliopreta; Moara Brasil, da M.A.R e @colabirinto; Magô Tonhon, da @mulherestrans; Sarah Roure, da Marcha Mundial das Mulheres;e Tabata Tesser, das Católicas Pelo Direito de Decidir.
“Masculinidades possíveis”, abordou o tema das masculinidades com a apresentação do filme “O silêncio dos homens” e debate com Antonio Carlos Barossi, professor da FAU USP; Ismael dos Anjos, diretor da pesquisa que deu origem ao filme; José Lira, professor da FAU USP; e Leonardo Foletto, do LabCidade FAU-USP e do BaixaCultura.
Também levamos a disciplina para a rua! Duas aulas abertas foram organizadas fora da universidade.
Para discutir as territorialidades LGBTQ+, a Casa 1 – Centro de Cultura e Acolhimento LGBT, localizada no bairro da Bela Vista, região central da cidade, foi nossa sala de aula. Para nos introduzir ao tema, contamos com a presença de Remom Bertolozzi, membro do Acervo Bajubá, uma iniciativa comunitária de salvaguarda e pesquisa da memória e cultura LGBT brasileira.
Com o olhar voltado para os territórios da prostituição – tema que, mais tarde, se tornaria o objeto de doutorado da Marina – organizamos uma aula que teve um primeiro momento na Casa do Povo, localizada no bairro do Bom Retiro, onde contamos com a exposição de Sarah Feldman, professora do IAU USP, sobre os territórios da prostituição na São Paulo. Dali, partimos para as ruas da região, guiadas por Paula Janovitch, pesquisadora do coletivo PISA: cidade + pesquisa, que, caminhando pelas ruas, rememora toda a história da Zona do Meretrício no Bom Retiro, um espaço de confinamento das prostitutas, criado pelo governo nos anos 1940.
Olhando agora, com um certo distanciamento no tempo, percebemos a potência que foi essa disciplina: diversa, realizada a muitas mãos, abrindo espaços, buscando outras vozes, outras falas, extrapolando os muros da universidade e indo produzir e transmitir conhecimento nas ruas, de forma aberta. É nessa universidade – aberta, diversa e inquieta – que a Marina apostava, e essa disciplina, nesse formato, foi uma das expressões de sua forma de pensar e construir, sempre de modo tão generoso com seus colegas.
Interseccionalidades como forma de abordagem
Estávamos felizes porque o último artigo que fizemos no LabCidade, um artigo coletivo dentro de uma publicação sobre o Observatório das Remoções, trouxe a interseccionalidade como ferramenta epistemológica e política para olhar as remoções e os processos de despossessão aos quais ela está atrelada. Foi uma abordagem mais próxima da que idealizávamos mas não havíamos conseguido desenvolver na pesquisa internacional sobre mobilidade dos estudantes já mencionada aqui.
Perguntamos no artigo: o que significa pensar a remoção e suas consequências a partir da narrativa de mulheres que enfrentam esses processos? Nossa aposta era que, ao recuperar as narrativas e reflexões de mulheres que sofreram ameaça ou remoção, seria possível iluminar dimensões do processo despercebidas ou encobertas pelas análises gerais do fenômeno. Faltam dados oficiais sobre as remoções, mas, também e especialmente, sobre quem é removido, o que nos impede de compreender suas consequências para os diferentes grupos de pessoas afetadas.
Mas não paramos por aí: fizemos do artigo um exercício teórico-político. No percurso da escrita, buscamos construir uma ferramenta epistêmica que nos permitisse (re)compreender a remoção pelas experiências de diferentes mulheres, ou seja, não se tratava apenas da constatação do efeito diferencial da remoção sobre os corpos, mas de um entendimento alargado sobre o próprio processo como mais uma dimensão da acumulação por despossessão em suas formas contemporâneas. Para alcançar esse objetivo, nos apoiamos em teóricas feministas interseccionais, entendendo a interseccionalidade como um campo amplo, em constante refazimento e disputas, mas que, necessariamente, impõe uma abordagem racial dos processos, relacionada às demais estruturas de opressão que organizam a sociedade.
Como método, e para a composição do texto, procuramos revisitar e justapor fragmentos de falas coletadas e de territórios populares visitados e vividos em imersões por meio de pesquisas do Laboratório e de parceiros, bem como visitas no tempo, que nos colocaram em contato com outras falas e territórios populares através da literatura – como os relatos da vida na Favela do Canindé contidos nos livros “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus e “Becos da Memória”, de Conceição Evaristo.
O artigo se dividiu em três eixos principais, todos transpassados pelo diálogo constante com as experiências e relatos de campo e com as narrativas literárias. O primeiro deles propôs um diálogo com a literatura feminista que compreende os processos de remoção como mais um dentre processos de despossessões estruturais, com enraizamento colonial, e que assume novos contornos ao longo do tempo – no artigo, exploramos a ‘dívida’ como uma de suas manifestações contemporâneas.
Marina se envolveu na organização destes fragmentos e nos eixos de diálogo com a literatura, e, especialmente, desenvolveu o segundo deles, que procurou compreender o processo de remoção como violência, não exclusivamente infligida no ato de remover, mas como parte de violências cotidianas, lentas, que incidem sobre esses corpos, com características de trauma coletivo.
Fechamos o texto apresentando fragmentos que ajudam a compreender os processos de remoção como processo em torno do qual as assembleias formadas catalisam a potência transformadora inscrita na conflitualidade e contraditoriedade mesmo desses processos, encerrando com este terceiro eixo de análise.
A publicação na íntegra pode ser lida aqui.
O medo moldando comportamentos e os territórios construídos a partir de subjetividades
A finalização do mestrado, a pesquisa segurança na mobilidade, os debates junto ao grupo Cidade, Gênero e Interseccionalidades e os cursos que ministramos, a levaram para outras direções de pesquisa e atuação. Inicialmente queria construir uma tese de que o medo, substantivo feminino, moldava os comportamentos das mulheres na cidade. Ironicamente, o debate público sobre sua morte deu-se em torno de seu comportamento – se estava dentro ou fora da ciclovia, a motivação de ter saído à noite. Marina estava onde devia estar e escolheu seu caminho, da mesma forma que as mulheres escolhem, muitas vezes pautadas pelo medo.
Inicialmente olhava para as mulheres, para estender para todos nós, a leitura de que nos encerramos voluntariamente em casa, condomínios ou até bairros inteiros murados que nos protegem dos perigos do “lado de fora” amedrontador, que pode ou não estar baseado em dados reais de vitimização. Ora grupos se restringem a circular por territórios construídos por subjetividades que permitem que as expressões identitárias, de cultura, de reconhecimento possam acontecer – como os territórios LGBTQI+, que podem ser considerados como segregados pela sociedade, mas também como auto-segregados. Ora políticas ou regulações públicas, como os zoneamentos morais, bem como ações de repressão do Estado, como as ações policiais, terminam segregando determinados grupos em enclaves criminalizados. E a tese de doutorado trabalhava esta hipótese, de que muitos territórios – que podem inclusive ser “demarcáveis” como já vínhamos trabalhando em aulas e textos -, são construídos a partir de subjetividades.
A interlocução com Diana Helene, como parte de seu estudo sobre territórios da prostituição e zonas morais, vira um podcast no qual Marina Harkot é entrevistadora, e Diana Helene explica as ideias tratadas no seu livro “Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas”, que saiu em 2019 pela editora AnnaBlume.
Por fim, gostaríamos também de convidar a todas/todos para uma defesa-homenagem da FAU USP e da USP à Marina, a ser agendada ainda em 2020, como uma forma de reconhecimento por sua trajetória acadêmica, para que suas ideias sigam no ativismo, mas também nos campos de pesquisa onde transitava.
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