Por Luciana Itikawa, Gabriela Dias, Kelly Alencar, Pauline Piconi, Thais Santana*
Mapear a violência contra a mulher tem sido além de um exercício urbanístico, uma oportunidade para nos aproximarmos dessa questão urbana tão paradoxal e desafiarmos os instrumentos de análise territorial.
Antes de apresentarmos nosso ensaio de mapas, priorizamos escolher aqui dois recortes como provocações para análise. Um dos recortes é a interpretação que a violência contra as mulheres pode ser uma nova fronteira urbana, agora sobre o corpo feminino. Nova porque é o retorno da agenda moral combinada à racista e neoliberal. O segundo, é a judicialização como pensamento único da política pública em detrimento da prevenção e proteção, um dos aspectos mais progressistas da nossa legislação.
A produção dos mapas a seguir aconteceu no âmbito da disciplina Escritório Modelo do Curso de Arquitetura e Urbanismo da FIAMFAAM/FMU no 1º semestre de 2019, a partir do belo trabalho de uma dedicada equipe e buscou ampla interlocução em diferentes espaços, com diferentes instituições antes, durante e depois. O resultado consolidado, com todo o conjunto de mapas, sistematização dos dados, revisão da literatura e as demais hipóteses de interpretação estarão completos em artigo para revista científica em breve.
Primeiro ensaio de mapas de violência contra a mulher
Em Fevereiro de 2019, solicitamos a base de dados sobre violência contra a mulher à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) via Lei de Acesso à Informação (LAI) para os anos de 2016, 2017 e 2018. Pedimos que eles nos fornecessem microdados do Estado de São Paulo de três tipos de violência: homicídio (doloso e culposo), estupro (incluindo o de vulnerável) e lesão corporal (incluindo a grave).
Entre os dados pedidos estão: localização, horário e tipo da violência, idade, grau de instrução, informação do agressor, a partir da relação com a vítima, entre outros. A primeira constatação a partir da espacialização dos microdados separados por ano é a onipresença das ocorrências das violências em toda a mancha urbana. Focamos nossa análise no município de São Paulo e adotamos cinco estratégias:
1) série histórica entre os anos de 2016 a 2018;
2) topografia das violências em números absolutos para identificar locais de maior incidência;
3) densidade das violências per capita, a partir da graduação por distrito;
4) mapas com espacialização separadamente por tipo de violência, grau de instrução e raça;
5) cruzamento de renda x localização das ocorrências de homicídio x delegacias da mulher/centros de referência em todo o município de São Paulo e zooms em três áreas.
Infelizmente, muitas informações que chegaram nesses microdados registrados em boletins de ocorrências das delegacias (incluindo as delegacias da mulher) estavam desfalcadas. Algumas delas, grau de instrução e relação com a vítima, por exemplo, em apenas 50% dos casos estavam preenchidos. Isso levou a suspeição sobre a confiabilidade de alguns recortes devido ao não preenchimento na íntegra dos dados diante de toda a amostra.
Ao longo do processo de espacialização das ocorrências de violências, quatro questões chamaram atenção: em primeiro lugar, as violências pouco ou nada tinham relação com os marcadores comuns de segregação centro-periferia. Em segundo, manifestam um padrão de concentração/ dispersão, porém, não exatamente em função da relação direta com as atividades econômicas no território ou vetores de valorização imobiliária.
Em terceiro, os equipamentos urbanos específicos para lidar com a violência contra a mulher – especialmente as delegacias da mulher e os centros de referência da mulher – não estão estrategicamente implantados segundo a distribuição das ocorrências, revelando apagões e redundâncias no território. Isso pode estar relacionado a uma possível incompreensão do fenômeno como essencialmente espacial.
Por último, questões como raça e domesticidade são condicionantes que apareceram em quatro pesquisas nacionais sobre o tema. Essas nuances, porém, não apareceram claramente na nossa base de dados da SSP-SP e, consequentemente, no nosso mapeamento. Segundo as pesquisas, como estes são marcadores que são decisivos para caracterização da violência contra a mulher no território, demonstram a necessidade de uma leitura interseccional. A seguir selecionamos 3 mapas com as respectivas análises.
Apesar da presença maciça das violências (homicídio, estupro e lesão corporal) em toda a mancha urbana, o mapa com a topografia da violência contra a mulher no ano de 2018 revelou que algumas regiões possuem mais ocorrências em números absolutos: região da Sé, Brasilândia e Capão Redondo. A topografia da violência é possível a partir da ferramenta chamada densidade de kernel para análise dos fenômenos pontuais.
Por outro lado, apesar de termos identificado em números absolutos uma concentração maior das ocorrências na região central, bem como extremos noroeste e sudoeste, ao cruzarmos com a população residente por distrito, o retrato é outro. A densidade das ocorrências passa a registrar um maior índice em regiões diferentes. Em primeiro lugar está a Sé, por ter a única Delegacia da Mulher 24 horas, seguido dos distritos da Barra Funda, Bom Retiro, Consolação, Bela Vista, República, Brás, Belém, Tatuapé, Pinheiros, Itaim Bibi, Santo Amaro e Socorro.
Por último, quando confrontamos a localização das ocorrências de homicídio x renda x delegacias da mulher e centros de referência em todo o município de São Paulo, podemos observar uma distribuição desigual desses equipamentos pelo território, descolados dos critérios renda e quantidade de ocorrências de homicídio. Enquanto alguns distritos no extremo leste possuem um maior número desses equipamentos, há total ou parcial ausência nos distritos com renda per capita maior e em alguns do meio da zona leste e sudeste. Ao conversarmos com funcionárias que trabalham em dois centros de referência, elas defenderam a proximidade ou justaposição dos centros de referência e delegacias da mulher. Assim, segundo elas, os componentes apoio psicológico, assistência jurídica, medidas protetivas, abrigamento e encaminhamento penal possam ter direcionamento por estarem estrategicamente localizados e articulados.
O que as narrativas “o corpo da mulher é meu” e “o corpo da mulher é de todos” têm a ver com o espaço urbano
O que a dinâmica espacial do capitalismo na periferia tem a ver com o corpo da mulher? Na nossa análise, tudo. O regime de acumulação capitalista em sua etapa extensiva nos países periféricos abriu fronteiras no território deixando o legado de uma mancha urbana horizontal e espalhada com regime fundiário excludente. Uma importante literatura sobre segregação urbana identificou que a sua etapa intensiva abriu novas fronteiras internas, onde até então havia passado por saturação de investimentos, transformadas em francos processos de gentrificação. A reprodução da força de trabalho incompleta nos países periféricos, ou seja, a não universalização dos direitos sociais, fez do acesso à terra formal e às infraestruturas urbanas artefato seletivo.
Enquanto o trabalho produtivo não garantia direito à cidade, o trabalho reprodutivo – responsabilidade do Estado, tornou-se ocupação compulsória às mulheres. O trabalho não remunerado doméstico, como parte da reprodução da força de trabalho não contabilizada, é a naturalização da tomada do corpo da mulher, reforçada pelo capitalismo periférico. Sem creche ou hospital suficientes para cuidado dos familiares, sem renda para pagar trabalho doméstico remunerado que a liberasse parcial ou totalmente para o trabalho produtivo, as mulheres brasileiras atravessaram o século XXI associadas à vida doméstica e, sobretudo, como parte da esfera patrimonial e patriarcal. Pior, nos países periféricos estão em maior número em ocupações informais precárias e, quando chefes de família, redundam em piores condições habitacionais.
A agenda neoliberal, como um rolo compressor sobre os direitos dos trabalhadores, aprofundou e agregou outra camada de precarização sobre as mulheres (Veja mais nos artigos Mulheres na periferia do urbanismo e Terceirização e o rapto do Território do Trabalho). Até hoje, apesar de ainda acumularem trabalho produtivo e reprodutivo, elas se descolaram da simbiose casa-família-corpo. Uma moradia no Brasil é para a Constituição Federal um direito social, mas prevalece a leitura do senso comum que é apenas um patrimônio. Por sua vez, desde a colonização, o corpo da mulher é visto em extensão ao patrimônio do homem, ou à disponibilidade de outrem. Ironicamente, isso permaneceu incólume no século XX e, para perplexidade nossa, no XXI. Nesse sentido, a agenda moral combinada à neoliberal verificada entre as décadas de 1950 a 1980 não é nova. O que parece novo hoje é ver uma retomada da agenda moral com discursos anacrônicos requentados contra a voz feminina que se recusa a calar e está agora cada vez mais potente.
Os dados de quatro importantes pesquisas nacionais sobre o tema confirmam exatamente esses dois aspectos: para os homens agressores, as motivações da violência contra as mulheres estão relacionadas a dois fatores: 1) não corresponderam às expectativas da subordinação, obediência e virtude, como disciplinamento do corpo feminino; 2) saíram desse disciplinamento e devem estar à disposição para o gozo sexual, seja na casa, na rua ou até mesmo no espaço virtual. Em ambos, existe o aniquilamento simbólico da autonomia, vontade e voz da mulher, incluindo a liberdade do seu corpo e, por extensão, a fruição e o direito à cidade.
Não é à toa que as três principais leis que tratam da violência contra a mulher: A Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio e a Lei de Importunação Sexual enfrentam esses flagelos que ameaçam a integridade, a liberdade e os afetos e respectivas escolhas sobre seu corpo, sua relação com a moradia e seu comportamento na cidade.
A judicialização da violência contra a mulher como pensamento único da política pública
O recalque sobre a escravidão nos levou à perpetuação do racismo estrutural, apesar de passado um século. O debate sobre segurança pública tem identificado o encarceramento e a defesa do armamentismo, como controle social dos jovens negros, pobres e periféricos. Por outro lado, algumas políticas progressistas de segurança pública vão no caminho inverso: desencarceramento e desarmamento. Passados mais de 20 anos de retorno à democracia, há uma importante literatura que identifica a excessiva judicialização como silenciamento da política. Ou ainda: a judicialização é justamente a nova ordem política, simultânea à nova onda conservadora. O encarceramento seletivo é ameaça à democracia.
Por essa razão, apesar da Lei Maria da Penha ser reconhecida mundialmente pela grande contribuição sobretudo em relação à prevenção, a literatura aponta que a centralidade na mulher tem sido substituída pela lógica do sistema de justiça penal tradicional. Assim como a Lei Maria da Penha aprovada em 2006, a Lei do Feminicídio e Lei de Importunação Sexual foram sancionadas nos últimos anos, respectivamente, em 2015 e 2018. No entanto, o avanço na legislação não foi acompanhado da desconstrução no homem dos estigmas e expectativas sobre o comportamento e lugares da mulher. Até há pouco tempo ainda no século XXI, as violências contra a mulher eram identificadas como crimes passionais e legítima defesa da honra (masculina).
A maior demonstração desse abismo entre legislação e costumes é aquilo que os operadores do direito destacam, entre outras características, a extrema crueldade das violências contra a mulher: tortura, repetição dos golpes, mutilação dos membros ou desfiguração do rosto e morte anunciada.
Apesar de termos avançado no reconhecimento em lei das demais violências contra a mulher além da física (psicológica, sexual, patrimonial e moral), no julgamento e no encarceramento, ainda permanecem insuficientes algumas ações previstas nas leis. Educação, conscientização ampla da sociedade e ênfase na proteção e assistência à mulher vítima da violência parecem determinantes para enfrentar as complexidades desse fenômeno que a judicialização isoladamente não dá conta. Sem essas ações, conviveremos com a ambiguidade de ser a 3ª legislação mais progressista, segundo a promotora de São Paulo Valéria Scarance, versus o 5º pior índice de violência contra a mulher no mundo.
Nesse sentido, o risco da judicialização ser a prioridade da política pública é dar livre acesso ao avanço da agenda moral conjugada às agendas racista e neoliberal. A interceptação da violência, isoladamente, não extinguiria as motivações da mesma. Por essa razão, uma política pública que enfrente a violência contra a mulher deve priorizar os Centros de Referência, considerar a interseccionalidade gênero, raça, classe e orientação sexual, bem como adotar critérios espaciais para implantação dos diferentes equipamentos (saúde, educação, assistência, proteção, segurança) que comporiam um Sistema Integrado de Prevenção à Violência contra a Mulher.
* professora orientadora da Unifesp, professora FIAMFAAM/FMU, pós-doutora pelo IEB-USP e doutora pela FAU-USP; alunas da graduação em Arquitetura e Urbanismo da FIAMFAAM/FMU;
** Colaboraram na produção dos mapas: Alessandra Borges, Andreia Apolinário, Igor Alves, Jéssica Souza, Letícia Cavalcante, Nathalia del Bianchi, Vandreza Araújo, Victoria Eugênio e Yasmin Mendes.
*** Agradecimentos à interlocução com Samira Bueno e equipe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Stephanie Ribeiro; Rute Alonso da Silva (SMADS); Marisa Condé e equipe do Centro de Referência Eliane de Grammont; Luciene Rosa Santana e equipe do Centro de Referência Beth Lobo; Paula Santoro e equipe do LabCidade; Daniele Klintowitz e equipe do Instituto Pólis; Juliana Cardoso, Eduardo Suplicy e Camila Furchi e participantes da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara municipal; profa. da UnB Lourdes Maria Bandeira e prof. da FIAMFAAM/FMU João Bonett Neto.
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