Por Larissa Lacerda, Débora Ungaretti e Gisele Brito*
O Lote 7 da Parceria Público Privada (PPP) Casa da Família foi assinado em junho de 2019, mas poucos moradores do Violão e Aurora, favelas que abrigam hoje cerca de 800 famílias no Jardim Julieta, bairro da zona norte de São Paulo, e que são demarcadas como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), tinham sido informados de que seriam removidos. O edital da parceria prevê a implantação de um parque linear e de um equipamento público na mesma área onde as comunidade estão sediadas há mais de 40 anos.
Em junho, a pedido de moradores que querem ter informação sobre o destino de suas casas, o LabCidade FAUUSP, junto com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, foi ao território para conversar sobre o projeto que está sendo proposto e, principalmente, sobre a remoção das 800 famílias.
Em meio a este contexto e em resposta à inquietação que as informações sobre a PPP causaram na comunidade, a subprefeitura da Vila Guilherme/Vila Medeiros realizou uma reunião aberta com o diretor-presidente da COHAB, Alexsandro Peixe, e com o diretor de patrimônio da COHAB, Reinaldo Iapequino. A pauta do encontro era tratar exclusivamente da questão do atendimento habitacional das famílias moradoras da favela do Violão no âmbito da PPP Casa da Família. A reunião foi anunciada apenas quatro dias antes, durante uma visita do prefeito Bruno Covas à subprefeitura, sem que houvesse muito tempo para divulgação. A convocação de moradores foi feita por grupos de WhatsApp e Facebook e no boca a boca. Cerca de 120 pessoas compareceram.
A PPP Casa da Família vem sendo anunciada como a principal política habitacional do município, em grande medida legitimada pelo discurso da escassez dos recursos públicos. Neste modelo, o “parceiro” privado fica responsável pela construção dos empreendimentos habitacionais e não-residenciais privados, pela implantação de infraestrutura e equipamentos públicos e pela oferta de alguns serviços de pré e pós-ocupação. Em contrapartida, a Prefeitura disponibiliza terrenos públicos para a realização das obras, que são concedidos para exploração comercial por empresas privadas durante 20 anos – nesse período, as empresas também ganham um valor mensal.
Apenas uma parte dos terrenos disponibilizados são destinados à construção de habitações de interesse social; a modelagem da PPP prevê a construção de habitações de mercado (HMC e HMP) e de empreendimentos não residenciais, inclusive para usos logísticos.
Nenhuma dessas informações, essenciais para que os moradores compreendam o real impacto do projeto em suas vidas, foi apresentada na reunião, que terminou sem exposição sobre o modelo da PPP. A manifestação dos representantes da COHAB se limitou a responder dúvidas dos moradores, formuladas a partir de informações disponibilizadas de forma parcial. De maneira geral, entendemos que foi uma reunião pautada em promessas vazias, uma vez que não encontram qualquer garantia nos documentos públicos sobre o projeto a ser implantado. A postura da COHAB ilustra bem como vem sendo apresentada a PPP, com poucas informações e espaços de participação sem poder de incidência na transformação do próprio projeto.
Neste texto, buscamos debater algumas das afirmações feitas pela COHAB.
(i) A população atingida pelo projeto têm direito à participação direta desde a formulação do projeto
A formulação do projeto que embasou o Lote 7 da PPP e a sua execução desrespeitam o Plano Diretor de São Paulo. Uma das primeiras questões levantadas pelos moradores foi em relação à ausência de Conselho Gestor de ZEIS com representantes do Violão e da Aurora, visto que as favelas estão em uma área demarcada como ZEIS-1 no plano diretor de 2014 – ou seja, área que deve ser prioritariamente destinada à manutenção da população moradora por meio da regularização urbanística e fundiária. A pergunta ressaltava que o Conselho deveria ter sido constituído no momento de formulação do projeto, antes da publicação do edital e da assinatura do contrato entre a empresa vencedora da licitação e a prefeitura.
Reinaldo Iapequino informou que o Conselho Gestor de ZEIS será criado e que a SEHAB está redigindo a portaria para a sua constituição. De fato, pelo contrato assinado com a concessionária Terra Nova, há previsão de formação do Conselho Gestor nos primeiros seis meses de contrato, até dezembro, portanto. No entanto, o Diretor de Patrimônio da COHAB defendeu que a prefeitura sequer teria essa obrigação, uma vez que o terreno no qual serão implementadas unidades habitacionais não é uma ZEIS. Além disso, segundo Iapequino, a legislação não informa sobre o momento de constituição do Conselho. Assim, eles o fariam quando avaliassem ser mais conveniente.
Na realidade, a legislação é explícita ao exigir que o Conselho Gestor deverá ser anterior à elaboração do plano de urbanização, que deverá ser por ele aprovado. O Plano Diretor prevê ainda que a elaboração dos planos de urbanização em ZEIS-1 deve ser feita com participação direta dos seus respectivos moradores e conselhos gestores. Ou seja, a organização de um Conselho Gestor não é uma simples formalidade, mas indica a obrigatoriedade da participação direta de todas as moradoras e moradores sobre os projetos públicos que irão afetá-los. Para tanto, é primordial que o poder público tenha uma atuação ativa na publicização de todas as informações necessárias para que a avaliação possa ser feita por todos, bem como preveja formas de participação direta da população afetada nas decisões sobre o projeto.
Além disso, o projeto inclui não só a construção de unidades mas também a construção de equipamentos públicos e um parque linear, que vão ser implantados exatamente na área onde é a ZEIS-1 e irão gerar a remoção das 800 famílias, como já mencionamos anteriormente. Em outras palavras, a obrigatoriedade do Conselho Gestor não está vinculada à construção das unidades habitacionais em terrenos onde hoje não mora ninguém, mas sim à intervenção que resulta na remoção de moradores das áreas demarcadas como ZEIS-1.
(ii) Os critérios de financiamento por agente financeiro excluem a população atingida do acesso ao crédito para compra de unidades habitacionais de interesse social
Um ponto central para garantir o efetivo atendimento habitacional em uma parceria público-privada é relativo ao financiamento. A produção de habitação de interesse social por meio da PPP repete um modelo de financiamento feito diretamente por uma instituição financeira, sem mediação do poder público. Com isso, além das famílias terem que corresponder às faixas de renda previstas no empreendimento, também precisam se enquadrar nos critérios bancários de acesso ao crédito para adquirir o financiamento da unidade habitacional. Nesse sentido, uma questão levantada na reunião foi relativa às pessoas que tenham o nome no SPC/SERASA, ao que Alexsandro Peixe confirmou que o financiamento não poderá ser aprovado nessas circunstâncias.
Esse e outros critérios, na prática, geram uma séries de dificuldades para famílias de baixa renda e inviabilizam o acesso ao crédito para muitas delas, mesmo que cumpram os requisitos previstos no chamamento de beneficiários da COHAB. Por isso, é preciso que os critérios sejam apresentados de maneira clara e objetiva aos moradores e que sejam fornecidas outras alternativas de garantir o acesso à moradia definitiva para aqueles que não se enquadrarem nesse modelo.
(iii) A previsão de atendimento pela PPP não corresponde à realidade socioeconômica de quem será diretamente atingido
Segundo Reinaldo Iapequino, o contrato assinado para o Lote 7 – Vila Maria/Vila Guilherme prevê a construção de 1.580 unidades habitacionais, sendo 806 para Habitações de Interesse Social (HIS) 1, ou seja, famílias com renda entre um e três salários mínimos e 316 para HIS 2, para famílias que recebem de três a seis salários. Mas essa conta não fecha. O que a COHAB não informou na reunião é que serão construídas mais 316 unidades para HMP (6 à 10 SM) e 142 para HMC (até 20 SM), como consta do Edital de licitação. Isso significa dizer que na PPP que foi anunciada como um projeto cuja única “razão de ser” é atender as famílias do Violão, ⅓ das unidades serão destinadas às famílias que ganham entre R$ 5.622 à 18.740,00, que não corresponde à renda de quem mora ali.
Ademais, é importante destacar que a distribuição do número de unidades por faixa de renda foi feita ainda no Edital, ou seja, antes do cadastro realizado pela SEHAB para identificação das condições socioeconômicas das famílias. Fica latente que a PPP não foi elaborada para atender as necessidades e condições socioeconômicas das famílias para quem, em tese, ela se destina. Uma das informações mais relevantes da reunião passou quase despercebida. Ao serem questionados sobre as famílias que não conseguirem acessar o financiamento, os representantes da COHAB afirmaram que elas serão direcionadas à outra política habitacional. Mas qual outra? Atualmente, tanto a prefeitura quanto o governo do Estado concentram a produção de habitação de interesse social por meio de parcerias público-privadas, algo que vem ganhando força, especialmente desde os cortes e paralisações do programa federal Minha Casa Minha Vida.
Não mencionaram o que tem sido reiterado em outros espaços pela COHAB: de que o atendimento da população atingida poderá ser feito mediante subsídio de 100% do valor da unidade ou do valor de locação social para aqueles que não se enquadrarem nas faixas de renda ou nos critérios bancários. Para viabilizar essa proposta, o edital prevê a possibilidade da COHAB atuar como agente financeiro em 15% das unidades de habitação de interesse social 1 previstas no projeto, o que corresponde, no Lote 7, a 121 unidades. O problema aqui, mais uma vez, são os critérios utilizados para a modelagem econômica-financeira, que não se baseiam em leituras das necessidades reais e da situação sócio-econômica de quem será impactado.
121 unidades não serão suficientes para o atendimento de todas as famílias que não se enquadrarem nos critérios de financiamento. Esse é o tipo de pergunta que necessariamente precisaria ser respondido antes da assinatura do contrato.
(iv) As populações atingidas têm o direito à regularização fundiária e urbanística
Ao ser questionado sobre a possibilidade de permanência de casas que não estivessem sobre o córrego, Alex Peixe alegou que não. Em sua justificativa, ignorou deliberadamente o marco regulatório vigente, o histórico dos programas habitacionais dos últimos 30 anos e o histórico da área. Um dos motivos usados para a “erradicação das favelas” – termo utilizado no edital de licitação da PPP – se dá pelo fato de estarem em terras de titularidade pública.
A possibilidade de regularização urbanística e fundiária de assentamentos precários localizados em áreas públicas está garantida por meio do direito de concessão de uso de áreas públicas urbanas àqueles que a possuírem por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para a sua moradia ou de sua família está garantido na Constituição Federal e regulamentado por meio do Estatuto da Cidade e da Medida Provisória nº 2220/2001.
Na cidade de São Paulo, programas municipais de regularização urbanística e fundiária possibilitaram a manutenção da população de suas moradias. A demarcação das zonas especiais de interesse social -1 no Plano Diretor indicaram quais áreas da cidade devem ser prioritariamente destinadas à manutenção da população moradora, por meio da urbanização e regularização fundiária.
Por fim, a própria história do local passa pelo reconhecimento da possibilidade de regularização fundiária. As favelas do Violão I e II – como são denominadas pela SEHAB – ou Violão (dos dois lados da Av. do Poeta) e Aurora, como são chamadas pelos moradores, ocupam a área desde 1975, segundo relatos dos moradores e do próprio cadastro da SEHAB. Ocupam a área há 45 anos. Ao longo desse período, melhorias nas casas – antes, em sua maioria, de madeira e, atualmente, de alvenaria – e no bairro – que atualmente conta com ruas e iluminação públicas – foram e continuam sendo reivindicadas pelos moradores, sendo a principal a implantação de serviços de saneamento básico.
A Secretaria Municipal de Habitação está se abstendo deste processo em detrimento das garantias à segurança na posse das populações que vivem em assentamentos irregulares, favelas e demais territórios populares, enquanto a COHAB e a concessionária Terra Nova, aliadas por meio da parceria público-privada, ignoram as legislações existentes, e violam direitos das populações diretamente impactadas.
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