Isadora Guerreiro, Paula Freire Santoro, Débora Ungaretti, Larissa Lacerda, Raquel Rolnik*
Está em tramitação desde 4 de fevereiro na Câmara o Projeto de Lei 35/2022, enviado pelo Executivo, que, se aprovado, vai regulamentar indenizações para construções irregulares a serem retiradas localizadas em áreas de risco (em função de obras). O que parecia reproduzir o conhecido “cheque-despejo” com valor maior – que poderá chegar a até R$ 60 mil – na verdade é a institucionalização da falta de política habitacional digna para a população de baixa renda na cidade. Ou melhor, é uma política que simplesmente não se responsabiliza por esta população, o que traz consequência direta nos territórios populares. Se o PL for aprovado, a própria prefeitura passa a ser a incentivadora do mercado informal de moradia, por meio de remoções pagas, indexando este mercado ao estabelecer quanto vale uma remoção: até 60 mil reais. Uma solução que não soluciona: o que está definido como “atendimento habitacional definitivo” só vai servir para diminuir os números da “fila”, mas não do universo real dos que precisam de apoio de políticas habitacionais para poder ter acesso à moradia.
A indenização pela construção vai para os construtores, mas… e os locatários?
O PL propõe fazer uma avaliação dos imóveis que estão em área de risco e que são objeto de obras da prefeitura, pagando uma indenização por eles. Se a construção tiver mais de 5 anos e o valor de avaliação for inferior a R$ 60 mil, os beneficiários receberão um bônus de até R$ 30 mil ou até atingir R$ 60 mil. Estes valores não se confundem com a indenização pela desapropriação da área para o proprietário legal da terra, caso a titularidade seja privada, e serão abatidos no valor final do valor de indenização devida ao proprietário legal. Por que esta fórmula não resolve – e pode piorar – nossa crise habitacional? Por que, em primeiro lugar, o beneficiário que optar por esta indenização ao invés do Auxílio Aluguel para deixar sua moradia não poderá mais entrar na política habitacional de qualquer esfera federativa, pois esta indenização será considerada atendimento habitacional definitivo.
Se o imóvel estiver sendo alugado para outro morador (que não o “dono” da construção), não cabe o pagamento do bônus, apenas a indenização pela construção. No entanto, não está esclarecido o que vai acontecer com o locatário, uma das partes mais vulneráveis em processos de remoção. Não está dito ainda se caberia o Auxílio Aluguel a ele, depois da indenização ao construtor da edificação e da desapropriação ao “proprietário” da terra. Assim, os locatários têm risco de ser duplamente prejudicados: pela violência e pelas perdas materiais e imateriais da perda da moradia ou do comércio, e pela total ausência de atendimento temporário e definitivo – ou de ressarcimento pelos danos decorrentes da remoção. Possivelmente ainda serão os locatários que sofrerão as pressões dos locadores para eventualmente servirem de “laranjas” para que os construtores recebam mais benefícios. Está criado um mercado de indenizações a construções em área de risco.
Solução habitacional “definitiva” tão precária e transitória quanto o Auxílio Aluguel
O secretário de habitação João Farias declara que é uma solução excepcional, para frentes de obra já planejadas, e que não se transformará num instrumento generalizado de pagamento para construções em áreas de risco. Mas o PL não prevê um período para aplicação desta solução e a história das soluções habitacionais provisórias têm sido a de uma saída eternamente provisória, que deixa as vidas em uma situação de “transitoriedade permanente”. Além disso, uma lei, quando aprovada, não está restrita apenas aos casos que a secretaria demanda. Um exemplo é o próprio Auxílio Aluguel, que, hoje, mesmo sem que a prefeitura queira, está sendo concedido por via judicial – na medida em que, pelo texto da lei, as famílias removidas têm direito a este auxílio.
A gestão Ricardo Nunes justifica o PL para poder ter mais um instrumento de negociação com as famílias que precisam ser removidas em frentes de obras da prefeitura nas áreas de risco da cidade. Muitas delas não têm mais aceitado o Auxílio Aluguel, pois sabem que não vão conseguir alugar um local adequado com o valor do benefício – que, além disso, não continua até a conquista da unidade habitacional definitiva para aqueles removidos de áreas de risco. Outro fator que impede as pessoas de aceitarem o Auxílio Aluguel é o fato de que os pontos comerciais existentes se perdem no caso de uma remoção. O novo instrumento indenizará também estes pontos, fazendo com que seja mais fácil as famílias aceitarem sair do local.
Em tese, de acordo com o secretário de habitação, as famílias têm ainda a opção do Auxílio Aluguel, para obterem moradia por políticas públicas no futuro. Mas famílias nessas situações não têm escolha: ou ficam na fila da habitação por muitos anos (há famílias recebendo o Auxílio Aluguel há 14 anos em São Paulo), sem perspectiva de atendimento definitivo e expostas às violências e incertezas do aluguel informal; ou aceitam uma indenização que, embora de valor aparentemente elevado, apenas compra um novo lote ou moradia disponíveis nos mercados informais, possivelmente em nova área de risco.
E estimula o mercado informal
O PL não estaria estimulando novas construções ao injetar recursos no mercado informal através das indenizações aos construtores, que não necessariamente são os ocupantes ou quem precisa de moradia?
O próprio Auxílio Aluguel estimulou os mercados informais, criando demanda específica por estes aluguéis, uma vez que as famílias não encontram moradia que conseguem pagar com o valor do auxílio. Agora, o estímulo funciona como uma injeção de recursos para os que construíram em áreas de risco – que tanto podem ser os que precisam e não tem onde morar como também os empreendedores deste mercado informal. Com mais recursos, estes empreendedores podem investir em novas construções e fortalecer este mercado informal de aluguel, pois a demanda por moradia não será solucionada com este PL.
Trata-se, portanto, de enorme incentivo para o mercado informal de terras e moradias. Mais do que isso: trata-se de uma indexação pública para os preços do mercado imobiliário informal, como já é o Auxílio Aluguel, que faz os preços de locação aumentarem nos locais em que há grande parte da comunidade que o recebe. É o caso de Paraisópolis, não por acaso o local onde este PL quer começar suas ações, e onde o mercado imobiliário informal está a todo vapor.
O secretário avalia que a medida não estimulará novas ocupações, pois as construções afetadas pelo PL precisam ter cinco anos. Acreditamos que é errado o entendimento de que apenas as construções de mais de cinco anos serão indenizadas: o PL diz que apenas estas receberão a bonificação de R$ 30 mil além da avaliação indenizatória. No entanto, as que têm menos de cinco anos podem receber a indenização sem bonificação.
Ao não identificar os critérios que serão mobilizados para aferir o titular das construções (que serão estabelecidos em decreto), a prefeitura não deixa claro quem serão os beneficiários das indenizações. Mais uma vez parece ignorar as complexidades das relações e acordos nos espaços informais de moradia, que não se pautam, necessariamente, por relações contratuais ou outros procedimentos mais formalizados. A própria identificação dos beneficiários pode instaurar uma série de disputas e conflitos pelo benefício, envolvendo sujeitos internos e externos a esses territórios, que podem resultar em processos ainda mais violentos.
A política de diminuir a “fila” dos que precisam de moradia, mas sem solução habitacional, é uma armadilha
Mas se o novo “benefício” não parece ser uma alternativa ao auxílio aluguel, tampouco é uma solução habitacional definitiva para os que precisam de moradia.
A prefeitura não está enfrentando um problema complexo – solução habitacional definitiva para quem, por falta de opção de acesso à moradia digna, ocupa áreas de risco à vida – mas sim criando artimanhas para agilizar a abertura de frentes de obra. E, com isso, aparentemente enfrentar um tema que em função dos deslizamentos, enchentes e mortes recentes, está na agenda de discussão pública, que podem levar a problemas muito maiores.
Não há mais programas habitacionais para a faixa de renda mais baixa da população. O Programa Casa Verde e Amarela não alcança esta faixa de renda com provisão habitacional; a CDHU foi extinta em âmbito estadual; e, por fim, estado e prefeitura apostam nas Parcerias Público-Privadas (PPP) como solução única para a habitação, sabendo que este modelo de provisão também não alcança esta faixa de renda.
Se não há solução, solucionado está? A solução é a mesma já encontrada anteriormente pelas famílias agora removidas: ocupar outra área, comprar um lote irregular, alugar cômodos precários.
Se quisesse dar algum “atendimento habitacional definitivo” efetivamente, a prefeitura deveria considerar uma nova moradia definitiva – através da construção de uma política “chave a chave”, ou seja, a família removida é deslocada para uma nova moradia já construída – ou uma carta de crédito com compra assistida, que viabilize uma solução habitacional efetiva.
Os valores seriam outros. Nenhum programa habitacional atualmente considera R$ 60 mil um valor possível para construir ou comprar um imóvel. O programa habitacional municipal Pode Entrar estabeleceu em 2019 o valor de R$ 150 mil por unidade habitacional, valor este que já está em discussão e certamente será maior no momento da regulamentação final do programa. Inclusive já há várias decisões judiciais que levaram indenizações às famílias que ocupam áreas informais e de risco – como no caso do Rodoanel Norte ou do Monotrilho da Zona Sul (Linha 17 Ouro) – que chegaram a pagar o valor de uma unidade habitacional da CDHU, um valor portanto muito maior que o que está sugerido no PL.
Além de “resolver” o problema tapando o sol com a peneira, a prefeitura aliviará a “fila” da habitação que sabe que não terá andamento nos próximos anos sem política habitacional. É a institucionalização da precariedade que, além do mais, passa a ser financiada diretamente pela prefeitura. Tudo isso com a justificativa social legítima das obras em áreas de risco – que permanecem sem política adequada e preventiva.
Vemos então que não se trata de um novo cheque-despejo de alto valor. Trata-se de atendimento definitivo que de definitivo não tem nada. A prefeitura está atendendo a população diretamente nas áreas informais que deveria estar urbanizando. Mais do que enxugar-gelo, é uma política de reprodução de insegurança habitacional, gerando novos e estimulando velhos mercados imobiliários, inclusive informais.
*Isadora é professora na FAU-USP e pesquisadora pós-doutoranda do LabCidade; Paula é professora na FAU-USP e coordenadora do LabCidade; Débora é pesquisadora doutoranda no LabCidade; Larissa é pesquisadora doutoranda na FAU-USP; Raquel é professora na FAU-USP e coordenadora do LabCidade.
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