Por Luciana Bedeschi* e Raquel Rolnik**
No dia 27 de julho, o Portal G1 noticiou que 100 favelas foram incendiadas desde o início de 2016 em São Paulo. Depois dessa matéria, mais dois foram noticiados, um na Favela dos Tubos, no bairro do Limão, e outro em Poá, na região metropolitana da cidade.
Para além das tragédias pessoais e coletivas envolvidas nesses episódios, várias são as perguntas a respeito deles: esses são números crescentes ou esses eventos se tornaram mais visíveis? Onde se localizam estas casas incendiadas? Esses incêndios confirmam a lógica seletiva de sinistros em favelas na mira da especulação imobiliária? Ou são simplesmente acidentes? Ainda: qual é o impacto desses eventos sobre as dinâmicas habitacionais da cidade?
Em relação aos números: 100 favelas incendiadas até julho de 2016 é um número impressionante, mas é muito semelhante às médias históricas. Uma CPI na Câmara Municipal, realizada em 2012, cujo objetivo era apurar as causas e responsabilidades pela recorrência dos incêndios, apontou que entre 2009 e 2012 foram 1.643 incêndios em favelas da cidade. Em vários anos foram mais de 200 por ano.
O documentário Limpam com Fogo, produzido pelos jornalistas César Vieira, Conrado Ferrato e Rafael Crespo, busca investigar o que está por trás dos incêndios, e o longa deixa a pergunta no ar, porque se de um lado não é possível afirmar que os incêndios sejam causados propositadamente, por outro lado, os jornalistas defendem que: “não se trata de pôr fogo, mas de deixar queimar”, como afirmaram em entrevista à Carta Capital.
Por exemplo, o incêndio no Morro do Piolho, situado no Campo Belo, em 2014, incluído no documentário, revela as divergências entre moradores da favela que reclamavam da precariedade do atendimento de urgência e o Corpo de Bombeiros, que tentou justificar a demora no combate às chamas.
Como vemos, o tema não é novo na cidade, inclusive desde 2009, é regulado por meio da Lei 15.022 que instituiu um Programa de Prevenção aos Incêndios nas Favelas do Município (Previn), de responsabilidade da Defesa Civil e gerido pela Secretaria de Coordenação das Subprefeituras. Trata-se de ações educativas e de organização de brigadas anti-incêndio, em cada um dos assentamentos precários da cidade.
De acordo com o próprio relatório da CPI, em 2012, dois anos após a criação do Previn, o programa estava implantado em apenas 51 favelas, ou 3% do total na capital. Ainda assim, em inquéritos abertos para apurar as responsabilidades locais onde o Previn existia, moradores reclamavam da falta de manutenção dos equipamentos, entre outros problemas com a gestão do programa.
De acordo com a Prefeitura, até julho deste ano, o Previn, coordenado pela Secretaria de Coordenação das Subprefeituras com as parceiras Sabesp, Eletropaulo e Corpo de Bombeiros, contava com 143 zeladores em 50 assentamentos precários. A favela Morro do Piolho ou Sonia Ribeiro, na zona sul, foi uma das primeiras a ter zeladores contratados nesta fase do programa, mas sofreu dois incêndios, um em 2011 e outro em 2014.
Para além destas questões, é óbvio que a precariedade das instalações elétricas, a farta presença de recicláveis – uma importante fonte de renda para moradores -, entre outras características construtivas dessas comunidades, tornam esses locais mais propícios às chamas. Em tese, isto deveria significar uma atenção maior na prevenção e combate aos incêndios nesses locais. Entretanto, vale para este tema a mesma lógica perversa que predomina no conjunto de questões relacionadas à maioria dos bairros pobres: como são “irregulares”, não são objeto de políticas públicas e, como não são objeto de políticas públicas, são mais vulneráveis de todos os pontos de vista, inclusive, ao fogo.
Em relação à localização destes incêndios e as desconfianças que estas localizações podem gerar em relação a possíveis interesses imobiliários envolvidos, não é possível afirmar que há uma geografia seletiva: nem a CPI de 2012, encerrada sem consenso, nem as pesquisas que já foram feitas sobre o tema nos permitem afirmar isto.
Entretanto, há outro aspecto relacionado que é muito pouco mencionado: a relação entre os incêndios e as remoções. Inúmeras pessoas estão ameaçadas de serem removidas de suas moradias localizadas em favelas na rota de projetos urbanos como as Operações Urbanas; áreas de expansão de infraestrutura, como a do Monotrilho, novas avenidas, estações de trem ou metrô; ou situadas em áreas incluídas em mapeamentos “de risco”. Esta ameaça e a possibilidade que ela se concretize ou não depende de vários fatores, entre eles a capacidade de resistência dos próprios moradores e a rede de solidariedade que se arma em torno da defesa de seu direito de moradia e a capacidade da prefeitura e governo do Estado de oferecerem alternativas de reassentamento aceitáveis para os moradores, entre muitos outros.
Mas o incêndio remove, às vezes não a favela toda, mas certamente parte dela. Cabe então a pergunta: quantas famílias foram deslocadas em função do fogo? Os tais 100 incêndios em favelas que ocorreram em SP desde o início do ano, envolveram quantos moradores? Quantas casas?
Finalmente, este tema levanta a questão dos atendimentos habitacionais: qual é o destino das famílias atingidas por incêndios? Se em um primeiro momento elas se alojam em casas de parentes, amigos e nas igrejas ou mesmo em abrigos da prefeitura, como se resolve esta situação transitória? Mais uma vez aparece o tema da necessidade de políticas habitacionais que deem conta da complexidade do tema.
Segundo o Caderno para discussão pública do Plano Municipal de Habitação de São Paulo, de 27.941 pessoas beneficiárias do Programa Auxílio Aluguel, 7.337 são oriundas de remoções decorrentes de “riscos” ou “obras”. Outras 2.797 são oriundas de outros eventos não classificados ou “sem informação”. A remoção de famílias decorrente de incêndios em favelas pode estar diluída entre uma ou outra classificação. Chama atenção, neste aspecto, que, do total de benefícios, mais da metade se origina entre os anos de 2009 e 2012.
O que não se pode afirmar, entretanto, é que todas as famílias atingidas por incêndios, ou pelo menos a maioria delas, tenham tido acesso ao auxílio aluguel ou a outra forma de atendimento habitacional. O Plano Municipal de Habitação propõe um “serviço de moradia” e quer, justamente, atender situações como esta.
De qualquer forma, é necessário se falar cada vez mais sobre este tema: ele expõe a complexidade e a heterogeneidade da questão habitacional na cidade e o enorme desafio para enfrentá-la.
* Luciana Bedeschi é advogada, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC e pesquisadora do Observatório das Remoções, do LabCidade, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
** Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Antes da gestão petista de Fernando Hadad, imprensa e especialistas não mediam palavras para acusar a prefeitura de omissão criminosa, quando não de patrocinadora de incêndios em favelas, com intenções higienistas.
Como ficamos agora com a divulgação desses numeros? Vão pedir desculpas a Serra e Kassab ou vão acusar a gestão petista de Hadad dos mesmos “crimes”?