Publicado originalmente em 23 de outubro de 2024.

Por Renato Abramowicz Santos, Raquel Rolnik, Lara Giacomini, Vitor Inglez e Débora Ungaretti

À esquerda, na foto, antigos sobrados, – onde funcionavam pensões em imóveis, parte deles tombados –, vazios e concretados após a remoção da população, e do outro lado, à direita, as novas torres da PPP Habitacional (Foto: Renato Abramowicz Santos)

Desde 2017, atuamos de perto no bairro de Campos Elíseos. De lá, acompanhamos as remoções da população seguidas de demolições de quarteirões inteiros para construção de projetos implementados por meio de PPPs (Parcerias Público-Privadas). Sabemos que as tentativas de demolição do território e de remoção da população local não se iniciaram  em 2017 e vem acontecendo – de diferentes formas e com diferentes projetos – há décadas.

Essa reconstituição e panorama histórico são parte também das publicações que compõem esta série, que lançamos agora tendo a região e seus conflitos como foco. A sucessão histórica de grandes intervenções e o conjunto de seus efeitos acumulados no tempo e no espaço revelam um profundo processo de reestruturação territorial em curso em um perímetro da área central da cidade, que abarca Luz, Santa Ifigênia, e, sobretudo, Campos Elíseos.

Pela dimensão e escala dessas transformações, e pelo acúmulo de pesquisa, trabalho e vínculos no território, avaliamos como importante neste momento crítico pelo qual passa a região manifestar e divulgar algumas posições.

Grandes projetos têm este território como alvo desde os anos 1990. Nos anos 2000, intervenções continuaram: indo desde a demolição da antiga rodoviária e seu quarteirão, passando por projetos que mesmo que politicamente derrotados provocaram demolições e deslocamento forçados – como o Nova Luz, no início dos anos 2000, ou o Complexo Cultural Luz, na década seguinte –, até o início da implementação do modelo de Parcerias Público-Privadas (PPP) para viabilização e construção de empreendimentos na área (com mais remoções), chegando ao presente projeto de transferência da sede administrativa do governo do Estado para a região, também por meio de uma PPP, que prevê a demolição de mais cinco quarteirões.

O que esse histórico de intervenções revela são diversas tentativas – com diferentes escalas, dimensões e impactos –, dirigidas sobretudo pelo Estado, em aliança com outras forças e atores, de destruir um território na forma como este foi constituído historicamente, buscando abrir espaços para os produtos imobiliários contemporâneos e seus consumidores.

Esses empreendimentos de “limpeza” e as políticas de “arrasa quarteirão”, na sua sucessão e acúmulo, têm produzido grandes mudanças – ao custo de enormes somas de recursos públicos e de uso da força. Mas, ao mesmo tempo, também produzem um efeito inesperado: por mais que tentem varrer e derrubar espaços e pessoas, alisando o território – o que de fato vão conseguindo –, vão também no mesmo processo produzindo rugosidades e resistências.

Isso quer dizer: por exemplo, ao tentar acabar com o fluxo de usuários, com muita violência aplicada e sofrimento envolvido, conseguem expulsar pessoas, desarticular serviços e redes, mas não conseguem fazer desaparecer essa realidade da cidade. Surgem novos e outros fluxos, em outros lugares, de outras formas; nascem novos coletivos e articulações; são criadas novas práticas de cuidado e defesa. 

O mesmo vale, por exemplo também, para as pensões existentes em Campos Elíseos. Estão há décadas (para não falar há mais de um século) tentando acabar com essas formas de moradia na região. Por mais que quarteirões inteiros tenham sido demolidos, novas e outras formas de morar, populares, aparecem, persistem, novas ocupações são feitas.

O ponto é que a força para limpar este território existe e acontece, há muito tempo, obtendo resultados; mas perceber também que ao fazê-lo criam-se cavidades, brechas, fendas, que geram outros e novos atritos e fricções, que com o tempo produzem novos conflitos, que perpetuam as disputas, antigas e reatualizadas, em torno desse território, seus usos e espaços.

A força motriz do conflito na região – desde o passado, mas sobretudo das fortes disputas em jogo e em curso no presente – deve ser vista, é o que defendemos neste texto, como parte de uma trama de produção de frentes de mercados, e da acirrada disputa em torno desses negócios e dos lucros derivados. Defendemos que a produção do mercado habitacional formal via PPP é apenas uma das faces do processo que surge da construção da “cracolândia” como mercado: é toda uma economia urbana e circuitos econômicos poderosos (formais alguns, informais e ilícitos outros) que se estabelecem, interligados na sua dinâmica e desenvolvimento, que se sobrepõem, atravessam, se reforçam, como veremos adiante.

A sobreposição de distintos interesses, projetos e efeitos que se acumulam em seu conjunto no tempo e no espaço nessa área central da cidade, é uma intensa operação de abertura de fronteira, implantada de forma violenta pelo Estado. Essa frente de expansão seria como mais um – o mais recente – episódio de um processo “de retomada” em curso, que se desenrola, como já mencionado, há décadas. Seria uma espécie de “guerra de reconquista” de uma região que, ao longo do século XX, se constituiu de forma marcadamente popular e negra no centro da cidade.

O bairro de Campos Elíseos foi construído pela aristocracia cafeeira no seu auge econômico e político, mas que com mudanças sociais e o desenvolvimento urbano da cidade deixou para trás seus sobrados históricos, que, apesar da sua deterioração física, não ficaram vazios: tornaram-se moradias e comércios populares.

O esforço e empenho do Estado e das forças do mercado para retomar uma das poucas áreas incrustadas no coração de São Paulo, que ainda permanece e resiste como majoritariamente popular e negra do centro da cidade, explicam a intensidade do conflito e do grau de violência empregado. E também só é possível entender o porquê dessa força utilizada pelo reconhecimento da potência da resistência popular em permanecer vivendo nessa região, que obviamente possui muitos e grandes problemas e desafios, mas mesmo assim é o espaço de vida estabelecido e consolidado de diferentes populações e coletivos que constroem historicamente esse território, seus circuitos e materialidades.

Outra dessas áreas populares e negras remanescentes que persiste na área central, e que também – e isso não é coincidência – está sob violento ataque e pressão é o Bixiga. Uma potente e combativa articulação de resistência e defesa do patrimônio (material e imaterial), da cultura e memória negras e do território, se constituiu encabeçada, não por acaso, por entidades do movimento negro. 

Mas há diferenças entre as “guerras de reconquista” que almejam (e alvejam) essas distintas regiões. Uma das mais importantes é que no bairro de Campos Elíseos se constituiu e consolidou, ao longo dos anos, o que acabou ficando conhecido como “a cracolândia” de São Paulo. Esse elemento particular, altamente complexo, e que se tornou constituinte das dinâmicas e conflitos que há décadas se desenrolam, permitiu que a “guerra de reconquista” da região fosse realizada por meio de outra, legitimada política e socialmente: a “guerra às drogas”.

A “guerra às drogas”, ineficaz, racista, militarizada, espetacularizada e sensacionalista, acontece e se justifica tendo o crack e o fluxo como alvos principais. Porém, como em outros episódios de “guerra às drogas”, a preocupação não é com a saúde e bem estar da população, mas sim com a repressão e com as possibilidades abertas para a  geração de formas de extração (de capital político e econômico, de extorsão, de formação de grupos privados de segurança com a participação de agentes públicos).

O que se observa é que o acionamento da “guerra às drogas” possibilita a abertura e desenvolvimento de frentes de mercados variadas, nas quais não são apenas os “traficantes” que lucram: como ficou escancarado na última grande operação que atingiu a região, agentes do governo do Estado e da prefeitura municipal são não apenas mediadores das redes, mas atuam também como operadores ativos e participantes  dos mais variados negócios e nos ganhos econômicos  deles obtidos.

A “guerra às drogas”, dessa forma, não visa solucionar a questão do uso abusivo e do tráfico de drogas, como ela anuncia. Ela produz, de forma violenta, mercados e circuitos (econômicos e políticos), cujos lucros e quem se beneficia deles se encontra  em esferas e espaços mais ricos, brancos e poderosos do que nas ruas e calçadas de Campos Elíseos. E, como em toda guerra, a violência atinge e afeta de forma mais ampla e profunda muitas mais pessoas, espaços e dinâmica para além do “tráfico”, que originalmente é sempre anunciado como justificativa. A violência contamina e corrói territórios e relações sociais de forma sempre desestruturadora. 

Em Campos Elíseos, a “guerra de reconquista” se apoia, se recobre e se justifica como “guerra às drogas”. Contudo, para não parecer que fantasiamos um mundo idílico, harmônico e virtuoso, desconectados e desconhecedores dos desafios e complexidades da realidade do território, é preciso reconhecer que, de fato, há estruturas e circuitos ilegais e criminais que o atravessam e constituem – como existe por toda a cidade.

Para que não haja dúvidas, então, mais um ponto a ser declarado: não concordamos nem compactuamos com a existência e adoção de práticas violentas, de ameaça, coação e extorsão realizadas por qualquer grupo. Sabemos que em ambientes assim é impossível o pleno florescimento e desenvolvimento da dignidade, bem estar, prosperidade e estabilidade individuais e coletivos – e também sabemos que em situações de maior precariedade e vulnerabilidade, os modos de exploração e extração têm ainda mais facilidade e condições de acontecer, se entranhar, e serem exercidos.

Reconhecemos, igualmente, que estas estruturas e circuitos ilegais podem, em detrimento da própria população do território, atender diretamente a interesses do Estado e do mercado. O extrativismo que operam pode contribuir para a rentabilidade/lucratividade de operações do mercado formal, como demonstra o caso da empresa multinacional Novelis: maior recicladora de alumínio do mundo, louvada publicamente pelo governo estadual pelos respeitáveis investimentos que tem feito no Estado de São Paulo, e que, no entanto, se beneficiou sistematicamente de material reciclável obtido através da superexploração de recicladores do “fluxo”, pagos com bebida alcóolica e forçados a trabalhar até a exaustão física.

É a constituição e expansão de um mercado que, em uma ponta, se liga aos circuitos globais e, na outra, se funda na exploração da vulnerabilidade existente nas ruas e calçadas da “cracolândia”. A produção e exploração da precariedade como possibilidades de frentes de mercado e de renda para agentes públicos corruptos, corporações privadas e grupos criminais – sabendo que as delimitações entre eles (e seus negócios) nem sempre são fixas e delimitadas. 

No mesmo sentido, a gestão violenta da população vulnerável operada por estes mesmos circuitos ilegais/criminais pode ser capturada para viabilizar os próprios projetos de Estado: em intervenções urbanísticas públicas, como a urbanização de favelas, PIUs e PPPs que implicam remoções para a liberação de frentes de obras, a negociação com grupos territoriais armados tem sido historicamente utilizada por governos como um expediente de efetivação dos projetos. Ou seja, a realidade é mais contraditória e complexa do que a retórica oficial, de beligerância pura e cruzadista, tenta representar, assim como mais porosas são as fronteiras entre o Estado oficial e “paralelo”, e entre mercados lícitos e ilícitos.

O que vemos em Campos Elíseos é como a existência e presença de circuitos ilegais e criminais servem como ponta de lança para criminalizar territórios inteiros e as pessoas que ali vivem, tornando socialmente aceitável – e, por muitos, desejável – que a população residente de toda uma localidade seja estigmatizada e, como consequência, removida.

Nesse processo, todos são “bandidos”, todos são “suspeitos”. Por conta também dessa operação de combate a “o PCC” que cinco quarteirões devem ser demolidos e qualquer oposição é deslegitimada, sem que a multiplicidade de vidas que constituem esse espaço possa sequer ser ouvida ou manifestar o que deseja e necessita.

E é assim, portanto, que pessoas moradoras de ocupações de moradia vão ser removidas; pessoas que moram – em muitos casos há décadas – em pensões serão removidas; proprietários de imóveis comprados com muito suor e a muito custo serão removidos; pequenos comerciantes perderão (e já estão perdendo) seus locais e meios de trabalho – e ficando sem renda, podem não conseguir arcar com seus custos de moradia, ficando eles também em estado de ameaça e insegurança habitacionais. Portanto, reduzir toda oposição a esse processo como ligada ou servindo a “o PPC”, não só é mentira, como é parte de uma  tática de guerra rasteira. 

As remoções acabam legitimadas porque se está combatendo “o crime”, e desse modo todo um território e seu tecido social é atingido e arrasado. Isso vem acontecendo em Campos Elíseos, mas diante da magnitude das intervenções e destruições previstas pelo atual projeto, o raio de ameaça se amplia para além do perímetro alvo, atingindo o entorno como, por exemplo, outras ocupações de moradia fora dos cinco quarteirões e, agora, também o Moinho, a última grande favela da área central.

Há tempos sua remoção completa é desejada e anunciada por diferentes políticos, muito já se fez e aconteceu em torno dessa disputa: incêndios suspeitos e criminosos, tentativas jurídicas e políticas de assegurar a posse dos moradores, muitas idas e vindas, e uma grande espera e indefinição.

Agora o risco e possibilidade desse fato finalmente acontecer são imensos diante dessa nova ofensiva que está em desenvolvimento, porque por mais que o Moinho não esteja previsto dentro do perímetro da intervenção da PPP da transferência da sede, ele fica ameaçado pela possibilidade e precedente que a intervenção abre, pelo ímpeto e embalo do movimento maior criado por ela, pela conjuntura e correlações de força postas, em uma atmosfera política e social de “agora vai”, de “força total”, de “luta do bem contra mal”. 

Para além das ameaças e remoções realizadas por conta dos projetos urbanísticos e demolições na região nas últimas décadas, como mencionamos, resultados de trabalhos em desenvolvimento por pesquisadoras/es do LabCidade, no âmbito do Observatório de Remoções, corroboram a hipótese de que há uma confluência de interesses estatais e privados sobre esse território, produzindo a dinâmica do conflito na região, representados por dois outros processos: a expulsão de moradores por meio de ações de despejo por falta de pagamento de aluguel e o avanço da atividade imobiliária e especulativa na região.

Os dados apresentados abaixo foram obtidos a partir do Banco de Sentenças do Tribunal da Justiça de São Paulo (TJSP) e da Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (EMBRAESP), respectivamente.

Ao observarmos a territorialização dos fenômenos nos mapas abaixo, nota-se que ambos compõem duas faces de uma mesma moeda: o incremento das dinâmicas imobiliárias vem acompanhado pela valorização fundiária e por um consequente aumento dos preços dos aluguéis, que representam quase metade das formas de moradia na região central, segundo o Censo 2010 do IBGE.

Dessa forma, é instaurada uma conjuntura de insegurança habitacional pelo risco crescente de despejo de centenas de famílias por conta da inadimplência, pressionada pela expansão da fronteira imobiliária, que avança em direção à região. É possível ver nos mapas, justamente, que as “barreiras de contenção” para esse avanço, não por acaso, são – eram – os quarteirões alvos das PPPs implementadas e os do futuro projeto de transferência da sede.

Elaboração: Lara Giacomini
Elaboração: Lara Giacomini

O que vemos então é que este amplo processo – que tem a PPP Campos Elíseos como linha de frente, mas que se amplia por contágio e por senso de oportunidade (e oportunismo) político e econômico –, não por acaso, está atingindo áreas há muito desejadas pelas forças do mercado, como a região da conhecida “cracolândia” ou do Moinho, que antes essas forças não conseguiam “chegar” e alcançar.

Para conseguir isso, como finalmente está acontecendo, foi/é preciso o acúmulo dessas muitas e diferentes intervenções (pontuais e grandiosas, planejadas e improvisadas, intencionais e como efeito colateral) que se sucedem e acumulam historicamente. Mas foi também necessário – e continua sendo, por ser fundamental para o sucesso da empreitada – a mobilização e uso de um recurso e procedimento clássicos das histórias de conquista: a violência. 

Por isso tudo que somos contra o que está ocorrendo, e pela forma como vem acontecendo. Acreditamos em outro modo de fazer cidade. Um jeito que não seja autoritário e truculento, que não seja de projetos feitos e implementados de cima para baixo, desconsiderando e fazendo tabula rasa do que já existe. Acreditamos que é possível criar instâncias e canais efetivos de escuta, de perguntas, de diálogo.

Acreditamos que, mais do que possível, é preciso respeitar as histórias, necessidades, desejos e realidades das pessoas que vivem e constroem espaços e territórios. Acreditamos que se deve abrir possibilidades para o novo (inclusive para novas pessoas chegarem), mas que preserve a memória; que se possibilite investimentos e recursos para que melhores condições existam, mas garantindo permanência e dignidade para que as pessoas que vivem e construíram os lugares possam ficar para usufruir, e não ser removidas para que as melhorias possam acontecer. Acreditamos que mudanças devem acontecer, mas em respeito e diálogo com a cidade, que não pode simplesmente se fazer destruindo a diversidade e potência que a constituem.

(*) Renato Abramowicz Santos é doutorando FFCLCH-USP e pesquisador do LabCidade e do Observatório de Remoções; Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade; Lara Giacomini é graduanda da FAUUSP e pesquisadora de iniciação científica no LabCidade; Vitor Inglez é doutorando da FAUUSP e pesquisador do LabCidade e Débora Ungaretti é doutora pela FAUUSP e pesquisadora no LabCidade.