Por IBDU/RJ*
Está em curso no Rio de Janeiro tentativa de capturar a urgência do cenário de catástrofe social agravado pela pandemia de covid-19, para justificar medidas ilegais e de efeitos perversos para ordem urbana já fraturada da cidade. Este texto busca contribuir com debate público, alertando para gravidade da temática e, ainda, divulgando recentes materiais técnicos produzidos pelo IBDU-RJ.
Os últimos seis anos da Política Urbana Brasileira foram marcados por retrocessos normativos e institucionais que agravam o quadro de desigualdade socioespacial das nossas cidades. O IBDU nacional vem, continuamente, se pronunciando sobre Projetos de Leis que representam o “ativismo do atraso” (Ver nota técnica sobre a Proposta de Emenda Constitucional 80/2019). O Instituto identifica no esvaziamento da Política Urbana indicativo do agravamento de um processo amplo de “desdemocratização” (conceito do sociólogo norte-americano Charles Tilly) e de descaracterização da ordem jurídica urbanística como função pública: a ‘cidade do pensamento único’ é a cidade da governança empresarial e da negação da política, onde o valor de troca se impõe sobre o valor de uso, assim como o lucro se impõe sobre a vida.
A pandemia de covid-19 acelera nosso cenário de crise urbana, expondo a realidade de segregação e de acentuada desigualdade socioespacial no tecido da cidade, e uma perspectiva cada vez mais distante da universalização da rede de infraestrutura técnica e social, de precarização do trabalho e de violência nos territórios populares. Este contexto de crise que inflaciona o discurso do esgotamento financeiro dos entes-federados, apresenta o risco, ainda, de dar força às estratégias arrecadatórias vinculadas à pauta da austeridade. Na cidade do Rio de Janeiro, esse movimento de retrocessos legislativos busca promover “ajustes urbanos” desconsiderando os estudos técnicos prévios, a participação da sociedade e a necessária compatibilização das normas com o Plano Diretor, em processo de revisão.
Ainda em outubro de 2019, o Poder Executivo Municipal propôs o PLC 141, que trazia em seus dispositivos alterações substanciais das normas urbanísticas. Este PLC foi apresentado em regime de urgência em pleno processo de revisão do plano diretor, e acabou retirado de pauta pelas controvérsias e reações contrárias. Na ocasião, o IBDU-RJ preparou Nota Técnica à parlamentares a fim de subsidiar as discussões e ações contra tal projeto (acesse o documento aqui: https://drive.google.com/open?id=1r_fXpHC7ymkCKtlKI7T6mA-x8HOR3CVd )
Apesar da “derrota” sofrida pelo Executivo em vista da retirada de pauta do referido PLC, a municipalidade vem insistindo em propor mudanças urbanísticas estruturais de forma ilegal e antidemocrática. No contexto de agravamento da emergência sanitária, com a cidade assolada por recordes sucessivos de casos e óbitos, foi apresentado neste mês de maio mais um PLC que busca alterar normas urbanísticas. O projeto absorve parcialmente o conteúdo do vencido PLC 141/19 e se apoia na justificativa de enfrentamento ao estado de calamidade por meio de suposto aumento na arrecadação municipal. Novamente, o IBDU-RJ se manifestou de forma crítica à proposta, por meio de documento público, encaminhado a parlamentares (acesso o documento aqui: https://drive.google.com/open?id=1ZyPLu5r1FzbYohR6MvKTCPlP0fxZlQlc). É muito importante incidir para que este Projeto de Lei seja anulado.
Ambos os projetos buscam se descolar do processo de revisão do Plano Diretor, embora regulem questões tipicamente de conteúdo deste Plano. São propostas que carecem dos necessários estudos de impacto e de participação popular efetiva, criando incentivos à regularização/formalização de arranjos territoriais existentes e projetos imobiliários que impactam o cenário futuro da cidade, em detrimento do regramento concernente ao uso e a ocupação do solo, às funções sociais da cidade e da propriedade e à garantia do direito à moradia adequada, previstas no Plano Diretor vigente. Impressiona, especialmente no PLC 174/20, a explicitação do objetivo arrecadatório por parte do Executivo Municipal, uma vez que essa flexibilização de parâmetros urbanísticos e de licenciamentos de edificação, mais do que ampliar a captação de recursos ao ente, pode vir a beneficiar grupos criminosos que atuam, em dimensão cada vez maior, na produção de moradias e na dinâmica de produção da cidade, em última instância.
Ademais, os Projetos de Lei ferem frontalmente a Constituição Federal e a fixação pelo STF (RE 607.940) da tese concernente ao princípio da compatibilidade material das leis urbanísticas em face ao Plano Diretor municipal. Segundo este princípio, as normas que se qualificam como normas de Plano Diretor (formal ou materialmente) somente podem sofrer inserções, mudanças ou extinções se observarem o procedimento próprio de aprovação das leis de Plano Diretor, ou seja, respeitarem o processo democrático-participativo qualificado e a apresentação de estudos de impacto de vizinhança e ambientais. No caso dos referidos PLs, a situação é agravada pelo fato de não haver qualquer justificativa para a realização de debates sobre seu conteúdo decolados do processo de revisão do Plano Diretor municipal em curso.
A denúncia pública e a ampliação do debate sobre o tema se tornam fundamental neste contexto, não apenas a título informativo, mas também como instrumento de fortalecimento político das críticas em face deste tipo de atitude de gestores públicos, por vezes invisibilizado frente às inúmeras urgências atreladas à pandemia.
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