Publicado originalmente em 10 de junho de 2024.
Por Raquel Rolnik
“Sinto-me num filme de ficção científica, no qual vejo na televisão uma propaganda de prédios exuberantes, que não dialogam com a arquitetura, uma ficção científica em cima da minha vida, enterrando a minha história, literalmente. Aqui no Brasil a gente apaga muitas histórias e isso é ruim. Me sinto mal, não durmo, estou abalado, porque não tem nada claro para nós”. O relato é do professor da rede pública estadual de São Paulo Odair Paulo, que há mais de duas décadas trabalha no bairro Campos Elíseos, no Centro de São Paulo, onde, encantado pela região, comprou um apartamento próximo à Praça Princesa Isabel.
No local onde construiu sua história, teceu relações e imaginava seguir no futuro, Odair Paulo soube pela imprensa que seria desapropriado, ou “literalmente despejado de seus sonhos”, como compartilhou comigo e dezenas de pessoas que acompanhavam audiência pública realizada na última quinta-feira (6) na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
Odair é um dos 800 moradores que correm o risco de perder suas casas para o projeto do governo de São Paulo de transferência de sua sede para a região central. Um plano repleto de ilegalidades, que ignora a população local para promover terra arrasada sob o argumento de que uma suposta concentração de órgãos promoverá economia e revitalizará o Centro. Mas o que o governo do Estado de São Paulo não tem revelado é que dos 54 órgãos estaduais localizados na capital de São Paulo – entre secretarias, empresas e autarquias, com exceção de universidades e hospitais – 27 deles já estão instalados na área central, como expõe levantamento do pesquisador Pedro Lima do LabCidade.
Esse mesmo levantamento revela que destes 27 órgãos, já localizados no Centro de São Paulo, 21 estão concentrados nos distritos da Sé e República, especialmente na área do triângulo histórico. Já podemos, portanto, imaginar o efeito perverso que terá a saída dessas secretarias e autarquias da região para os Campos Elíseos, numa cidade onde a problemática do “esvaziamento” do Centro que, aliás justifica a idéia de “trazer o Centro Administrativo para esta região”, sustenta a constatação da existência de vários prédios vazios. Ou seja, tudo o que a população paulistana não precisa na área central da capital são mais 21 prédios vazios.
Mas, e os demais órgãos estatais que estão fora do Centro e que o governo promete deslocar para o Centro Administrativo? Vários estão na mesma situação que os institutos de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), ambos localizados no Campus Butantã da Universidade de São Paulo, de onde, evidentemente, não sairão.
E até mesmo entre os seis órgãos que hoje estão no Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, – e que têm servido como base para os discursos de muitos defensores do projeto de transferência –, pelo menos quatro deles vão seguir no mesmo local, como já garantiu o próprio coordenador do plano de Parceria Público Privada (PPP) do Polo Administrativo Campos Elíseos, Afif Domingos. Segundo ele, o gabinete e a moradia do governador, a Casa Civil e Militar e a comunicação seguirão distantes do Centro, no Morumbi.
Se não se trata, como vimos, de trazer os órgãos do governo estadual para o centro da cidade, perto dos cidadãos, então para que destruir cinco quadras inteiras do Campos Elíseos, apagar a história e a memória da cidade, seu urbanismo e arquitetura, desapropriar, remover e deixar sem casa 800 pessoas para fazer esse Centro Administrativo?
Na verdade, estamos falando de um negócio: o negócio da PPP na região que se transformou numa verdadeira zona de guerra. Ouvindo o relato dos moradores, preocupadíssimos com uma desapropriação que está acontecendo após um processo intenso de desvalorização em função de políticas absolutamente equivocadas em relação à chamada ‘cracolândia’, começa-se a desenhar mais explicitamente as intenções: a destruição de pedaços dos Campos Elíseos para serem capturados de forma mais barata, por terem sido desvalorizados, para a abertura de uma frente imobiliária e de negócios em pleno centro da capital paulista.
Desde o fechamento e a demolição do Shopping Fashion Luz, das demolições e fechamentos administrativos e demolições que se sucederam, esta ação transformou esse local em um local em ruínas. E esse local em ruínas foi o lugar que também atraiu as pessoas em ruínas, os refugiados urbanos, deserdados e desconectados da sociedade que encontram na ‘cracolândia’ uma alternativa de sobrevivência.
A “guerra às drogas” justifica então a radicalidade e a violência da destruição e eliminação das existências. E dessa forma se abre uma frente desvalorizada para o investimento imobiliário que ali poderá então ter lucros extraordinários com o cenário transformado.
(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade
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