Por Raquel Rolnik
Frustrando as expectativas de mobilidade urbana e, principalmente, desconsiderando a legitimidade e importância da demanda por preservação da história e da identidade do Bixiga, no centro de São Paulo, o governo estadual paulista acaba de declarar que a Estação Saracura Vai-Vai, da futura Linha 6-Laranja do Metrô, pode ser excluída do projeto da linha.
Em um documento enviado em junho ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), exposto pela mídia no último dia 19, o Estado afirmou que a obra está com apenas 10% de conclusão e justificou o risco de interrupção como uma consequência dos adiamentos sucessivos da obra em função de toda a movimentação em torno dos achados arqueológicos encontrados durante as escavações no local.
O anúncio abre mais um capítulo nesta história que, entre suas várias batalhas, cobra também pela denominação da estação como Saracura Vai-Vai. Inicialmente denominada como Estação 14-Bis, o futuro Metrô incluiu o nome Saracura ao final após pressão social, mas ainda deixou de fora a referência à escola de samba Vai-Vai, removida para a construção da linha. Esta é mais do que uma simples questão de nomenclatura. Representa a resistência de um bairro que há muito tempo clama por seu legado negro. O Bixiga não é apenas um território, mas um símbolo vivo da história afro-brasileira em São Paulo. Além do samba, é onde o quilombo do Saracura, cujos vestígios arqueológicos foram descobertos por estudos arqueológicos, desempenhou um papel crucial na formação dessa comunidade.
A confirmação dessa história por meio dos achados, portanto, não deveria ser motivo para abandonar o projeto da estação. Pelo contrário, deveria ser vista como uma oportunidade única para integrar essas ruínas históricas ao novo equipamento urbano. Exemplos internacionais, como a Estação Campo 24 de Agosto no Porto, em Portugal, onde um antigo reservatório de águas do século XVI foi integrado ao projeto da estação, demonstram que é perfeitamente viável conciliar as infraestruturas modernas com a preservação do patrimônio histórico.
A ameaça de cancelamento da estação, sob a justificativa de atrasos e dificuldades técnicas, parece mais uma estratégia de pressão do que uma decisão fundamentada em verdadeiros compromissos com a preservação cultural e histórica. É uma chantagem que ignora a necessidade premente de revisitar e adaptar o projeto para incluir questões que não foram consideradas quando de sua elaboração, mas que, ao surgirem no processo de debate público durante sua implantação, merecem ser integradas ao projeto.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tem o dever de reconhecer a importância desses vestígios e determinar que sejam devidamente preservados e integrados ao projeto da estação, como pede o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai em ofício enviado nesta quarta-feira (24) com apoio de entidades, comércios e coletivos do bairro — leia na íntegra aqui. Mais do que uma demanda local, isso se torna uma questão de responsabilidade histórica e cultural para toda a cidade de São Paulo.
A mobilização e pressão de entidades negras que exigem a revisão do projeto, assegurando que a Estação Saracura Vai-Vai não apenas seja construída, mas também celebre e reafirme a identidade negra do Bixiga, revelam que processos de transformação, mesmo que positivos como a chegada de um metrô, não precisam servir à lógica do tratorado, que se vale de arrasar com a história e geografia. A transformação pode trabalhar junto com elas. E o reconhecimento da Estação Saracura Vai-Vai é uma oportunidade imperdível que a cidade de São Paulo está dando de presente para si mesma ao fazer essa afirmação.
Por cidades antirracistas, que respeitem a memória e a história da população negra e pela continuidade do território negro do Bixiga, eu assinei um manifesto em defesa da Estação Saracura Vai-Vai e conclamo a tod@s a assinar também. O documento pode ser acessado aqui.
(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade
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