Por Gisele Brito*
Formado a partir da articulação de artistas, trabalhadores da cultura e frequentadores da intensa cena de cultura popular, saraus, artes cênicas e Hip Hop em bairros periféricos de São Paulo, o Movimento Cultura das Periferias conseguiu, em 2016, a aprovação e sanção de uma lei gestada por sua própria mobilização. Com o bordão de “lutar pelo óbvio”, a Lei de Fomento à Cultura da Periferia (Lei Municipal nº 16.496/2016) traz um mecanismo inovador: a distribuição dos recursos orçados conforme a vulnerabilidade dos territórios, de forma que os bairros mais afastados e historicamente menos providos pelo Estado recebam a maior parcela de verbas, sem que isso prive territórios em regiões centrais, ainda que estas fiquem com a menor parte dos repasses. A aprovação da lei, cujos primeiros beneficiados já são conhecidos, fortaleceu a articulação do coletivo, que agora disputa o orçamento municipal para a cultura. O movimento tem lotado as galerias da Câmara Municipal, junto com outros grupos ligados à pauta cultural, exigindo que 3% de todo o orçamento da cidade, em debate na casa legislativa, seja destino à pasta correspondente, mas com um diferencial: 50% dos recursos da pasta devem ser aplicados em atividades culturais produzidas e realizadas em regiões periféricas e em bolsões de vulnerabilidade na região central. A reivindicação não é por mais recursos para essa ou aquela linguagem artística, mas sim para territórios, com enfoque nas margens da cidade.
Na entrevista a seguir, o músico e artesão Jesus dos Santos, da Casa do Meio do Mundo, da Zona Norte, e Aurélio Prates Rodrigues, ator, dançarino e morador da Cidade Ademar, ambos integrantes do Movimento Cultural das Periferias, apresentam alguns dos eixos de mobilização do coletivo e as razões que colocaram a cultura no centro do debate nas bordas da cidade.
ObservaSP: Os movimentos populares nas periferias dos anos 80 estão na base da formação da esquerda no Brasil. Naquele momento, pautas ligadas a infraestrutura e moradia eram as principais reivindicações. Atualmente, os movimentos culturais têm mostrado grande articulação. Por que houve esse afloramento?
Jesus dos Santos: Eu acho que, na verdade, só estamos colocando a cultura no lugar dela. Quando falamos “cultura”, estamos falando de algo que vai além do fazer artístico. Estamos falando também sobre saneamento, da questão de gênero, questão racial, educação, saúde. Até hoje se colocava cultura como fazer artístico, mas o movimento cultural das periferias, sem inventar a roda, traz dentro do seu diálogo essa outra perspectiva. A Lei de Fomento à [Cultura da] Periferia é resultado disso. Nela fica explícito que estamos falando, na verdade, da disputa da cidade, da descentralização dos recursos que hoje estão concentrados. Porque, do mesmo jeito que eu preciso do fazer artístico, eu preciso de moradia, de saúde, me alimentar. Não tem como desconectar uma coisa da outra. Acredito que a maturidade do discurso, da narrativa está cada vez mais presente.
Aurélio Prates Rodrigues: Poderíamos produzir tecido e estar aqui dizendo que a indústria têxtil está precariezada. Mas como nosso fazer é artístico e nossa ferramenta é a comunicação, a gente consegue olhar para todas as outras áreas e ver que elas estão falidas. Como eu vou falar de arte, se eu não falo de educação precarizada? Tem o caso do Kaio [Martinez Pacheco. Em novembro, o ator foi preso enquanto encenava peça sobre assassinatos cometidos por policiais], na periferia da Baixada Santista. O fazer dele é cênico, mas como ele vê os amigos sendo assassinados pela Polícia Militar, o teatro dele fala sobre isso e ele foi preso. Não é que somos melhores ou piores que os movimentos de moradia, de educação ou do que o Conselho Tutelar. É que como somos tão híbridos que acabamos pegando as dores todas dos nossos territórios.
J: É uma questão histórica também. No início da década de 80, esse setor tinha uma agitação maior, reverberação maior. Só que, naquele momento, a periferia estava presente, mas falava muito através dos sindicatos. Mas a crise de representação de esquerda permitiu que houvesse retrocesso nas lutas e na agitação. Nos últimos 15 anos, houve acomodação do movimento sindical e por parte dos movimentos sociais por estarem dentro da gestão pública. A falta de renovação dos quadros desmobilizou parte daqueles movimentos. A esquerda não dialogou com os negros, com as mulheres, com a periferia. Embora eu seja contra o Prouni, ele permite que as pessoas que estão nas periferias, essa nova classe trabalhadora que não se enxerga dentro dos sindicatos, precisassem se organizar em alguma outra coisa. Os sindicatos não são mais representativos, os partidos não são mais representativos, o que me representa? A rua. As pessoas começaram a formar coletividades, entendo que cultura não é só o fazer artístico. É nossa tarefa falar de acesso e democratização da cidade. Falar de cultura é falar disso. Os movimentos culturais das periferias ou as periferias organizadas através dos seus fazeres artísticos ocorreram também por um processo de desgaste nas outras formas de se organizar.
A lei de fomento reconhece periferias no centro da cidade. O que isso significa?
J: Nos últimos anos, o que significa território, comunidades, passou para além de uma questão geográfica, embora a geografia seja ainda muito importante. Quando a gente fala de periférico, a gente fala do indivíduo que, apesar de estar do lado dele, não tem acesso ao Teatro Municipal porque não tem um sapato, uma roupa, e a estética dele é alvo de exclusão. A periferia é isso. Há muito tempo deixou de ser um recorte geográfico e passou a ser uma questão de situação. Por isso que, apesar do centro receber todo esse aporte de recurso, ainda existe uma parcela da população de lá que não tem acesso a esse recurso.
Nessa concepção de democratização da cidade, é mais importante ter uma casa de cultura no bairro periférico do que ter acesso ao Teatro Municipal?
J: As duas coisas são importantes. Eu vejo naquele espaço que já existe, o Municipal no seu exemplo, como um lugar de compartilhamento do conhecimento, do fazer artístico, de trocas, de encontro. No seu território, é o local onde você experimenta, onde você é fomentado, é o lugar onde você cai, onde você levanta, é o local também onde compartilha, se apresenta. O Teatro Municipal precisa ter mais equidade para todos os cidadãos. Mas você poderia estar fazendo milhares de outras coisas, em vez de ter que se deslocar da sua quebrada até lá.
A: A gente já produz a nossa arte. Quando a gente ouve outros setores da cultura dizerem “nós levamos arte para vocês”… É ótimo que isso aconteça. Mas não se pode menosprezar que a também periferia produz arte. Quando a gente fala isso para eles, eles se assustam e percebem que estamos sentando na mesma mesa, para dividir o pão…
J: Queremos dividir o pão, mas jogar mais fermento para o nosso lado.
Dentro do movimento cultural mais geral, agora que vocês estão disputando recursos do orçamento municipal, o recorte territorial é bem aceito?
A: Quando a gente foi amadurecendo enquanto território e pautando as nossas quebradas, isso incomodou muito uma pequena parcela de artistas que estava fadada só a lutar por questões individuais. Tanto que, dentro desses encontrões que nós temos com o pessoal da Cooperativa de Dança, de Teatro, com o Circo, eles nos chamam de arteiros, bagunceiros, baderneiros. Mas a gente foi provando que temos conhecimento, não somos coitadinhos. Somos precarizados, isso sim. Eles têm medo da periferia. Eles sabem que a gente é inteligente, que a gente está tão sofrido que não vamos engolir qualquer coisa.
*Gisele Brito é jornalista.
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