Débora Ungaretti*, Amanda Silber Bleich*, Paula Freire Santoro**

Em novembro de 2024, o LabCidade FAU-USP e a Sehab da Prefeitura de São Paulo, com apoio da FAPESP, Observatório Global de Aluguéis Temporários e Fundação Rosa Luxemburgo, organizaram o “Seminário Internacional Políticas Habitacionais de Aluguel Social”, que traçou um panorama crítico destas políticas e do papel crescente do aluguel como fronteira para acumulação do capital imobiliário financeiro. 

Os resultados, disponíveis no canal do LabCidade no Youtube e nos Anais de Resumos Expandidos, estão sendo sintetizamos em uma série de textos analíticos: um Panorama das políticas habitacionais de aluguel social; uma análise das diferentes visões de Estado e modelos em curso nas Políticas habitacionais de aluguel social; e uma análise da crescente estruturação da financeirização do aluguel via fundos imobiliários e títulos de base imobiliária, bem como suas articulações com as parcerias público-privadas (PPPs).

O presente texto trata da expansão do modelo das PPPs na política de locação social, discutindo suas limitações para responder às necessidades habitacionais que se pretende atender e às dificuldades enfrentadas pelas políticas de locação social.

 

Edifício no bairro da Luz, no centro de São Paulo. Foto: Amanda Silber Bleich, 2019.

 

As parcerias público-privadas (PPPs) como conhecemos hoje no Brasil foram estruturadas a partir da década de 2000 – em especial a partir da aprovação da Lei Federal nº 11.079/2004 – Lei das PPPs. Naquele momento, houve um esforço no sentido de formulação de um modelo de concessões que superasse problemas apontados por gestores públicos e agentes do mercado para viabilizar juridicamente a realização de contratos complexos que envolvessem obras e serviços não econômicos, como a implantação e manutenção de infraestrutura estatal com remuneração a longo prazo e com a possibilidade de remuneração pela performance da concessionária. Assim, ampliou os arranjos possíveis de fontes de receitas e sistema de garantias contratuais, bem como os contratos de longo prazo para investimento e manutenção de infraestrutura, equipamentos e serviços públicos. As PPPs são contratos de concessão administrativa, marcados pela sua complexidade: sempre incluirão a realização de investimentos em infraestrutura pela concessionária a ser posteriormente operada pela mesma concessionária. Assim, o modelo da PPP estruturado pela legislação federal aprofundou as reformas neoliberais que tinham se iniciado na década de 1990 no Brasil.

Embora as parcerias possam ter sentidos mais amplos, nas últimas duas décadas, a agenda das PPPs passaram a tomar espaço no campo da habitação e como forma de implementar projetos de reestruturação urbana, especialmente em áreas centrais, como descrito por Lacerda, Felix Neto e Dantas (Mesa 7, 7.3) (Mesa 7, 7.3) a partir do caso de Recife apresentado no Seminário.

No âmbito da locação social, as PPPs passaram a ser ensaiadas sob a justificativa de resolver problemas de gestão do parque público, como os problemas frequentemente mobilizados no caso de São Paulo de altos índices de inadimplência e irregularidades nas ocupações das unidades, muitas vezes atribuídos à falta de capacidade estatal de gestão predial e social dos empreendimentos. Na prática, no entanto, parecem estar respondendo a um contexto de crescente financeirização do aluguel. Como descreve Raquel Rolnik, a exploração dos serviços acoplados à moradia como ativo financeiro se expandiu internacionalmente a partir da compra de estoques imobiliários por agentes financeiros detentores de grandes quantidades de capital no contexto da crise financeira de 2008. Edifícios multifamily, aluguéis temporários oferecidos por meio de airbnb e outras plataformas digitais passaram a se expandir na América Latina, amplamente estimulados por políticas públicas, seja através de projetos de transformação urbana combinados com lançamentos de empreendimentos corporativos, seja por meio da voucherização impulsionando a exploração de aluguéis em territórios informais.

Foi nesse contexto que pelo menos desde 2010 passaram a ser ensaiadas as PPPs de locação social no Brasil. Se até o momento as formulações não foram de fato implementadas, ganharam hegemonia na agenda quando se discute a viabilização da modalidade de locação social, a ponto de ser considerada pelo Governo Federal como opção no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida. Passamos a descrever e detalhar esta trajetória. 

No caso de São Paulo, embora a cidade tenha constituído um parque público de locação social piloto com gestão da municipalidade desde 2002, houve diferentes tentativas de modelar e viabilizar a criação de parque público por meio de PPPs. A primeira delas ocorreu durante a gestão de Gilberto Kassab, no âmbito do projeto Renova Centro, sendo a SEHAB a responsável pela estruturação do projeto. Em 2010, o Conselho Municipal de Habitação (CMH) aprovou um aporte de R$ 30 milhões do Fundo Municipal de Habitação (FMH) para a realização de desapropriações na área central. A condição estabelecida era que os empreendimentos resultantes se destinassem, em sua maior parte, à locação social, adotando um modelo de “mix” de renda entre os beneficiários e de posse dos edifícios. A justificativa apresentada pela SEHAB para o projeto foi que a titularidade pública do imóvel não era a única solução para a locação social e que, para atrair o mercado, seriam necessários incentivos públicos (Moraes, 2018, p. 133). 

Dois anos depois, em 2012, a prefeitura lançou consulta pública de um projeto-piloto de PPP chamado HIS Barra Funda, com 600 unidades habitacionais de HIS e HMP, baseado nos mesmos princípios de renda mista, uso misto e posse mista. O projeto era inspirado na experiência de Nova York, com um modelo que combinaria a concessão de obra pública de HIS com a prestação de serviços de gestão condominial, patrimonial e social das UHs. O valor do aluguel representaria menos de 25% da renda familiar. No entanto, apenas 20% das unidades seriam destinadas à faixa de renda 1, entre 0 a 3 salários mínimos, enquanto o restante seria ocupado por famílias com renda entre 4 a 16 salários mínimos. A licitação do projeto foi adiada e, eventualmente, cancelada devido a questionamentos do Ministério Público, deixando a proposta de locação social em um limbo (Moraes, 2018, p. 134).

Duas outras tentativas de emplacar a locação social via PPP foram ensaiadas na cidade, como apresentado no Seminário. Em 2016, no último ano da gestão Fernando Haddad, foi proposta uma estratégia de requalificação de oito empreendimentos por meio de uma PPP de Locação Social, que envolveria uma concessão administrativa de 20 anos para reabilitação e manutenção predial, com os edifícios públicos como garantia do contrato. A contraprestação mensal do poder público cobriria os custos de reabilitação, manutenção e retorno aos investidores, independentemente do pagamento do aluguel social. Embora não tenha sido implementado, esse modelo foi apresentado como alternativa para o financiamento da ampliação do parque público de locação social. Em 2021, durante a gestão Bruno Covas, iniciou-se a modelagem de uma nova PPP, voltada para a concessão de moradias como serviço, incluindo três empreendimentos na região central para atender à população em situação de rua com autonomia. Além disso, foi estruturado um chamamento público para a locação de imóveis privados na região central, com o objetivo de viabilizar unidades habitacionais a curto prazo. Apesar das consultas públicas realizadas em 2021 e 2022, esses projetos não avançaram (Ungaretti et. al, 2024, p. 48-51).

A modalidade de locação social por meio da PPPs ganhou projeção nacional a partir de 2022, quando foi firmada uma parceria entre a Casa Civil, por meio da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos, e o Ministério das Cidades para desenvolvimento de um projeto piloto de PPP de locação social, utilizando o Fundo de Estruturação de Projetos. Um destes pilotos se deu em Recife que, dentre outros motivos, apresentava capacidade estatal e possibilidade de recursos para serem comprometidos com PPPs. O modelo da PPP de locação social, segundo técnicas do Ministério das Cidades, difere das parcerias anteriores voltadas para alienação, e procura aportar desafios sociais e enfrentar os desafios de gestão habitacional, geralmente atribuídos aos municípios. A escolha por parque público de locação em área central, por sua vez, se deu para garantir provisão habitacional em áreas bem localizadas, enfrentando a ociosidade dos imóveis subutilizados nessas áreas, e ofertando moradia popular acessível em área central, enfrentando a valorização destes imóveis bem localizados. 

Esta iniciativa federal foi contemplada e institucionalizada com a retomada e reestruturação do Minha Casa Minha Vida, quando foi incluída no novo Programa a possibilidade de “fomento à criação de mercados de locação social de imóveis em áreas urbanas” (Lei Federal 14.620/23, art. 2o, IV). A referência aos mercados de locação social parece estar voltada especialmente ao mercado de gestão e serviço, delineando uma resposta via mercado aos problemas de gestão pública existentes no setor da provisão pública de habitação, um dos objetivos correlatos das PPPs de locação social. 

Assim, impulsionada pelo projeto piloto do Governo Federal, Recife passou a apostar na PPP como um modelo para viabilizar a locação social,utilizando  imóveis públicos federais em área central que compõem o Programa de Democratização de Imóveis, bem como interesse e capacidade orçamentária e administrativa para compor uma estrutura administrativa municipal para gestão de PPPs. 

Inserida no Plano Local de Habitação de Interesse Social – PLHIS (Decreto no 35.235/2021), a PPP Morar no Centro foi criada em 2021 pela Secretaria de Habitação e pela Secretaria Executiva de Parcerias Estratégicas de Recife, como uma política pública transversal. Além da provisão de habitação de interesse social, o projeto se estrutura como uma iniciativa de requalificação urbana de forma ampla, por meio da implementação de infraestrutura para comércio, serviços, equipamentos públicos, transporte e cultura. De acordo com Campos, Firmino e Bahia (Mesa 2, 2.3), o projeto é fundamentado por dois conceitos de serviço: o serviço de moradia, através da locação social com oferta de moradia digna, fundamentada em uma PPP, cuja essência é a prestação de serviço por meio de concessão (Campos et. al, 2024, p. 63).

A modelagem prevê a provisão, gestão, manutenção e operação de empreendimentos habitacionais como responsabilidade da concessionária, enquanto o Governo Federal fica encarregado de apoiar a estruturação de estudos prévios e editais, através do PPI e da CAIXA, e pela doação de imóveis públicos federais pela SPU para compor os imóveis inseridos na PPP. O programa pretende entregar 1.128 unidades habitacionais no centro de Recife, que serão divididas entre o Parque Público de Locação Social e a venda subsidiada para o Programa Minha Casa Minha Vida. De acordo com os gestores de Recife, “ao inserir na PPP uma parte das UH para venda subsidiada pretende-se trazer uma parte das UH da PPP para uma lógica que o mercado local de HIS já trabalha e gerar recursos que diminuirão o valor da contraprestação mensal que a gestão municipal deverá pagar à concessionária” (Campos et al., 2024, p. 65).

No Seminário, ao realizar uma análise crítica da PPP Morar no Centro (Mesa 2, 2.4), o trabalho de Bernardino (2024, p. 70) afirma que, dado o estágio embrionário do programa, não há clareza se a locação social será considerada uma solução “provisória” ou uma política perene, oferecendo imóveis que atendam às necessidades familiares em diferentes fases da vida. Além disso, entre os critérios de priorização dos beneficiários estabelecidos pelos marcos legais, não há evidências de que sejam levadas em consideração as características de autorreferência e atomização dos mercados imobiliários nos territórios populares do Recife, o que comprometeria o respeito às dinâmicas socioespaciais e culturais das comunidades. 

Lacerda, Dantas e Neto (Mesa 7, 7.3), por sua vez, denunciam a vinculação da PPP Morar no Centro de locação social a medidas mais amplas de reestruturação com estímulo ao mercado financeiro na área central de Recife, promovidas pelo Porto Digital. Com financiamento do BNDES, foram propostas modelagens urbanística e econômico-financeira para a intervenção no centro histórico de Recife, com possibilidade de replicabilidade para outras cidades brasileiras (Lacerda et al., 2024). Na modelagem, um Fundo de Investimento Imobiliário iria capitalizar recursos para as obras de reabilitação de imóveis, que seria feita por meio de PPPs combinando propostas de produção de HIS e HMP, inclusive na modalidade de locação social. É nesse contexto que se insere a mobilização de imóveis públicos para a PPP Morar no Centro para locação social. As autoras apontam que a reestruturação urbana voltada à valorização imobiliária pode, a médio e longo prazo, inviabilizar a constituição de um parque público de locação social, e denunciam a mobilização de terras públicas para essas finalidades. 

Seja em São Paulo como em Recife, as formulações de PPPs de locação social parecem ter dificuldades para atender as necessidades habitacionais complexas da população. Para Raquel Rolnik, as diferentes modelagens de PPPs de locação social devem ser analisadas levando em conta o contexto de valorização do capital em que se situam. O capital passou a encontrar na produção de habitação de aluguel “um match perfeito” no sentido de uma possibilidade de ganho por meio da exploração de aluguéis e serviços ao longo do tempo, ou seja, o estoque imobiliário habitacional constitui ativo capaz de valorizar no longo prazo. As PPPs de locação social, assim, passaram a ser estruturadas a partir de modelos econômicos que possam garantir a rentabilidade desejada do investimento. Com isso, as operações são subsidiadas pelo estado, por meio da mobilização de terras, investimentos e subsídios públicos. Não só: também dependem de garantias contra a inadimplência dos locatários – por exemplo, por meio da oferta de unidades para locação para faixas de renda mais altas, da criação de travas que impedem a diminuição do preço do aluguel em caso de variação da capacidade de pagamento das famílias, e da previsão de rescisão contratual e despejo de famílias inadimplentes. Assim, “[a política de locação social] aparece modelada para ofertar esse novo produto, e portanto, ao fazê-lo, ela terá, ou sofrerá exatamente o mesmo problema que as políticas históricas habitacionais de produção de casa própria sofreram: que elas foram ofertadas apenas para os sujeitos de créditos, ou aqueles que puderam, que podem pagar isso, retornar a esse investimento” (ver Palestra de Raquel Rolnik na abertura do Seminário).

Contraditoriamente, como apontam Ungaretti, Suzuki e Bleich (Mesa 1, 1.5) a partir do caso de São Paulo, os esforços da administração pública – ao mobilizarem terras e recursos públicos, além de dedicação dos gestores –, quando estruturados a partir de uma lógica de retorno do investimento (e não a partir da contenção da valorização e da geração de renda da terra) podem entrar em conflito e impedir a garantia de acesso e permanência dos que mais necessitam de habitação e vivem nos territórios populares das áreas centrais dos municípios brasileiros.

*Pesquisadoras do LabCidade **Professora doutora da FAUUSP, coordenadora do LabCidade