* Por Fernanda Accioly Moreira e Raquel Rolnik

O Senado realiza nesta quinta-feira (24) uma audiência pública sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 3 de 2022. O projeto, em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania sob relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), revoga a Constituição para acabar com o instituto dos “terrenos de marinha”, hoje sob domínio do Governo Federal, e transferir a propriedade dessas áreas para estados, municípios e “foreiros, cessionários e ocupantes”.

O que parece ser um simples ato administrativo defendido como uma forma de desburocratizar e desonerar o uso destas áreas representa, no entanto, uma grave ameaça ambiental às praias, ilhas, margens de rios, lagoas e mangues brasileiros e um aval para a indústria imobiliária degradar, além de expulsar comunidades tradicionais de seus territórios. Mais do que nunca, em tempos de crise socioambiental e climática, a gestão dos terrenos de marinha é estratégica! Entenda aqui por quê.

O que são os terrenos de marinha

A criação dos terrenos de marinha remete ao período colonial, quando através do Aviso Régio de 1818 a Coroa Portuguesa estabeleceu que uma faixa de terra de 15 braças de largura, a partir do ponto máximo da maré alta, deveria ser conservada como área da Coroa em função da necessidade de controlar o acesso e a defesa do território colonial sob jugo português. A navegação, manutenção dos sistemas de defesa e exploração econômica –, como o acesso ao mar, aos rios navegáveis, às áreas estratégicas para instalação de portos e fortalezas e às áreas com presença de madeiras para a construção naval –, eram centrais para a exploração colonial e, portanto, seu controle era de interesse da Coroa.

Após a independência, como bens públicos da União, no período Vargas (1946) os terrenos de marinha ganham contornos mais técnicos, definidos então como “uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofram a influência das marés. Essa faixa é reconhecida pela demarcação, pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) da Linha Preamar Médio do ano de 1831 (LPM), um procedimento administrativo, declaratório de propriedade.”

A forma de gestão destes bens, bem como sua finalidade sofreu a influência das coalizões que assumiram o governo federal ao longo do tempo. Entre um sentido puramente arrecadatório – já que os ocupantes formalmente registrados pagam uma taxa anual à SPU, recolhendo também um valor no momento da venda do imóvel – a um instrumento de política socioambiental.  Até hoje, o instituto tem servido para garantir um controle público sobre as formas de uso e ocupação da faixa costeira.

Segundo Alexandra Reschke, que comandou a SPU nas duas primeiras gestões do presidente Lula, os terrenos de marinha deveriam ser tratados como bens públicos de uso coletivo com finalidade socioambiental, logo patrimônio de todo povo brasileiro, que tem como objetivo contribuir para a redução das desigualdades sociais e territoriais, e para a promoção da justiça socioambiental, seja pelo simples cumprimento do interesse público garantindo o livre acesso às praias, seja promovendo o direito à moradia, o reconhecimento do direito de uso de terras para subsistência e permanência de povos e comunidades tradicionais – caiçaras, quilombolas, ribeirinhas – em seus territórios, ou mesmo apoiando o desenvolvimento local.

Não há dúvidas de que a gestão dos terrenos de marinha pode ser um importante instrumento de ordenamento territorial e, no contexto atual de agravamento da crise climática, pode contribuir para garantir a proteção de mangues, restingas e ecossistemas marinhos, controlar erosão costeira e, consequentemente, auxiliar no enfrentamento das mudanças climáticas. A perspectiva ambiental estratégica da Zona Costeira esteve presente inclusive desde 1988, ainda sob o governo José Sarney,  através da aprovação em 1988 da Lei Nacional de Gerenciamento Costeiro que, em 2004, é regulamentada instituindo o Projeto Orla sob o comando do Ministério do Meio Ambiente em parceria com a SPU. As áreas costeiras e as margens dos rios são consideradas prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade.

O que está em disputa?

De acordo com dados da Secretaria do Patrimônio da União, hoje são cerca de 500 mil imóveis da União, em 240 municípios no país, utilizados por particulares a partir de diferentes instrumentos jurídico-administrativos (como a inscrição de ocupação, aforamento e concessão de uso) de forma onerosa (pagamento de taxa de ocupação, foro e laudêmio diante da transferência do imóvel). Para além das dimensões de gestão ambiental que assinalamos acima não podemos dissociar esta PEC de outro processo, que é o longo e constante processo de privatização dos bens comuns no país – grande parte expropriados de seus ocupantes originais – em um esforço de institucionalização da propriedade privada como única forma legítima de posse. A PEC nº 3 de 2022 é mais um capítulo dessa longa novela.

A extinção dos terrenos de marinha e acrescidos, pretendida pela proposta, visa basicamente atender a interesses particulares com consequências graves. Ao realizar a pronta e gratuita transferência de domínio pleno para atuais foreiros, cessionários e ocupantes inscritos no cadastro da União, a lei poderá impulsionar a criação de praias privadas e fomentar ainda mais a ocupação predatória e rentista das áreas costeiras, como já vimos acontecer em inúmeras beiras de rio e mar pelo país.

Vale lembrar que a PEC 03/2022, ganhou maior relevância em 2011 por mobilização da bancada de Santa Catarina na Câmara dos Deputados, associada ao turismo costeiro no estado. E foi aprovada em dois turnos na Casa Legislativa em fevereiro de 2022, quando foi levada ao Plenário, repentinamente, pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), no momento em que se discutia a liberação dos jogos de azar no Brasil.

Uma eventual abertura a esse tipo de mercado para a construção de hotéis, resorts e cassinos em beira de rio e mar, áreas extremamente valorizadas economicamente, e de enorme valor ambiental, poderá resultar na privatização do acesso à bens de uso comum, como as praias; trazer degradação ambiental e tornar mais vulneráveis diversas populações caiçaras, quilombolas, ribeirinhas e povos indígenas que terão seu direito de permanecer e subsistir em seus territórios ameaçados.

Enormes desafios e problemas de gestão das terras da União devem ser enfrentados para melhorar substancialmente a forma como estes bens públicos da União são controlados, manejados e destinados. O objeto da gestão das terras da União e, portanto, dos terrenos de marinha e acrescidos, deve ser uma política nacional do patrimônio da União norteada pela finalidade socioambiental, e não por sua dimensão arrecadatória. Para isso é fundamental que a SPU avance na identificação das áreas, caracterização, demarcações, registros (jurídico cartorial e controle cadastral) para devida e justa cobrança pelo uso dos terrenos públicos e isenções, nos casos de interesse social.

A PEC 03/2022 nada faz nesta direção e pior: sem a prerrogativa de gestão desse patrimônio, o governo federal terá muito mais dificuldades de implantar políticas socioambientais de enfrentamento às mudanças climáticas. É muito importante que diferentes setores da sociedade se comprometam com a defesa desse instituto e possam contribuir com a melhoria da gestão desse patrimônio público, com a adequada, justa e efetiva destinação e uso dessas terras por entes públicos e por particulares, e de modo a promover a garantia de direitos fundamentais e a justiça socioambiental.

 

(*) Fernanda Accioly Moreira é pós-doutora pela FAUUSP e Secretária Executiva do Instituto Pólis; Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade.